segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Conheço o meu lugar / Parte 2

Vamos seguir com a análise da canção Conheço o Meu Lugar, do grande Belchior

Paramos, no texto anterior, na quarta estrofe da letra. Vamos partir agora pra estrofe seguinte.

''Fique você com a mente positiva
Que eu quero é a voz ativa (ela é que é uma boa!)''. É assim que Belchior inicia a quinta estrofe da canção, fazendo referência ao pensamento positivo, que critica como filosofia fajuta. É sempre bom lembrar, Belchior lança esse disco em 1979, tempo de decadência do movimento hippie. O movimento hippie foi uma tendência de contracultura muito importante na década de 60, mas que não durou muito tempo como alternativa anti-sistema, fracassando e caindo em descrédito. Belchior viveu tudo isso; era jovem, observou os movimentos políticos de sua época, como jovem intelectualizado, universitário, concluindo primeiro a faculdade de filosofia para depois ingressar em medicina, que, como dissemos anteriormente, abandonou no terceiro ano para seguir carreira musical.
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Em outras letras Belchior já havia pontuado o fim do sonho hippie, estabelecendo contundentes críticas a sua geração, como é o caso das emblemáticas Velha Roupa Colorida e Como Nossos Pais, ambas gravadas por Elis Regina. Essas duas canções integraram o álbum Alucinação, obra prima do cantor a qual já fizemos referência aqui. É importante frisar que esse disco é uma pancada. Do início ao fim um disco recheado de belíssima poesia e categórica crítica à contemporaneidade.

Belchior conclui a estrofe com outra bela sequência de frases, dizendo:"Eu sou pessoa!
A palavra pessoa hoje não soa bem.
Pouco me importa!" Tá aí mais uma sequência de críticas ao sistema social de seu tempo, ao individualismo, à banalidade das relações humanas, ao desrespeito à pessoa. Belchior intervém taxativo: ''Eu sou pessoa!'' Rebelde, insubmisso. Belchior, no bom português, pra não ficar em meias palavras, toca o ''foda-se'' com relação às expectativas de sua época. A crítica é fina, mas cortante. Por falar em cortante, outro verso famosíssimo de Belchior é o do refrão de A Palo Seco: ''Eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês''. Outra pérola da MPB registrada em Alucinação. Como diz no fim da estrofe, pouco importa o que é convenção para essa sociedade degradada pela desigualdade e pela hipocrisia. Urge constituir-se o homem novo.

Na estrofe seguinte Belchior começa falando de felicidade:  ''Não! Você não me impediu de ser feliz!''. De algum modo a felicidade é um movimento interior, que não depende só das circunstâncias exteriores, mas de uma resolução interna. É mais corrente esse pensamento com relação à paz, à paz de espírito, como deliberação do indivíduo que opta por uma disposição pacífica perante a vida. Aqui Belchior fala da felicidade como atributo de sua essência e como decisão perante a existência. É difícil ponderar a natureza específica da felicidade aqui. Pode soar como algo genérico. Mas soa como algo determinante na criação de um sentido, de um leitmotiv. Lembra o existencialismo de Sartre; a vida não tem um sentido; o homem é livre pra criar esse sentido. É um peso a responsabilidade, mas a decisão cabe ao homem.

Me perdoe o leitor o zigzag de temas. Como havíamos dito, a letra é muito rica de conteúdo e permite uma ampla gama de considerações.

A conclusão da estrofe é outra provocação muito recorrente em Belchior; a crítica à negligência com o Nordeste. Esse ponto é determinante em Belchior. Ele é nordestino, nascido em Sobral, interior do Ceará. Estudou na capital Fortaleza. E como todos os músicos de sua época, teve que vir ao sudeste para seguir carreira. A geração anterior a de Belchior, também de muita importância na música brasileira, foi a dos baianos. Caetano, Gil, Tom Zé, essa turma da tropicália, Novos Baianos, Raul Seixas, etc. E todo esse pessoal fez o mesmo percurso. Êxodo do nordeste com direção a Rio de Janeiro e São Paulo.

Belchior surge em meio a uma turma muito talentosa, conhecida como pessoal do Ceará. Fagner, Ednardo, Amelinha. Uma turma da pesada também. Espaço aqui pra aspas: que extraordinária a riqueza da música popular brasileira dessa época! Em Minas a turma do clube da esquina, em São Paulo Mutantes, Arnaldo Batista. Da década de 70 também Secos e Molhados e uma gama enorme de gente muito talentosa que poderíamos ficar aqui citando.

Mas como a gente dizia, Belchior cantou a beleza da cultura e visão de mundo nordestina, mas não deixou de dar voz à tragicidade do nordeste esquecido e relegado a último plano.

E conclui a letra Belchior: "Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos!
Não sou da nação dos condenados!
Não sou do sertão dos ofendidos!
Você sabe bem: Conheço o meu lugar!"

Belchior, mais do que a esmagadora maioria das pessoas, conhecia seu lugar. Sua origem geográfica, mas acima de tudo sua nostalgia, sua inquietação, sua identidade e sensibilidade.

Belchior foi e é um dos maiores letristas desse país, coisa que não é simples diante de tamanha riqueza de acervo musical.

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sábado, 24 de novembro de 2018

Idioma Desconhecido / documentário

Ótimo documentário, Idioma Desconhecido é um filme sobre armadilhas ao inconsciente. Sobre como o inconsciente coletivo é manipulado.
A grande mídia é criminosa, a indústria cultural é criminosa. O neoliberalismo é uma máquina de moer gente. E usa da guerra ideológica pra introjetar a visão de mundo que o beneficia.
Resultado de imagem para idioma desconhecido. documentário.  imagensÉ preciso romper a lógica estabelecida, através do pensamento crítico, através da solidariedade, do afeto. É preciso renunciar à sociedade do descarte e ressignificar a existência; imprimir significado à vida, combater a lógica do mercado e do trabalho alienado, do consumismo, do individualismo, etc, todas essas desgraças do mundo contemporâneo.



https://youtu.be/6CULrgHuhRE


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sábado, 10 de novembro de 2018

Conheço o meu lugar


Um mergulho em Belchior


"O que é que pode fazer um homem comum neste presente instante senão sangrar?" É com essa frase, forte e cortante, que Belchior inicia sua canção "Conheço o meu lugar". Uma música lindíssima. Tava com essa música na cabeça esses dias. Resolvi pesquisar pra ver se encontrava algo sobre ela. Encontrei pouca coisa. Imaginei que fosse achar muito mais. Porque é uma letra realmente muito rica.

Queria tecer algumas reflexões em cima, tendo em perspectiva a obra de Belchior como um todo. Mas bora voltar à letra.

Resultado de imagem para Belchior. imagensApós essa primeira frase, Belchior conclui o verso dizendo o seguinte: "Tentar inaugurar a vida comovida, inteiramente livre e triunfante". Puta que pariu! Que verso maravilhoso! E tem tudo a ver com o nosso tempo, período de turbulências, de crises de todo tipo. Essa música Belchior lançou num tempo em que a crise não era muito diferente. Gravou-a em 1979, 6 anos antes do fim da ditadura militar no Brasil.

Mais pra frente a gente vai ver que Belchior fará referências ao regime político de então.

Também hoje não há muito mais a fazer senão sangrar. Estamos diante de uma conjuntura de sangramentos. Socialmente falando, psicologicamente, filosoficamente. A contemporaneidade, o mundo do pós Guerra Fria, do neoliberalismo, das fraturas sociais, do fim das utopias, enfim, o mundo, tal como se encontra, só nos rende mais e mais sofrimentos. Sofrimentos existenciais, de crises de perspectiva, depressão, uma série de patologias do sofrimento subjetivo; isso tudo em estreita correlação com as crises sociais de uma sociedade de classes em frangalhos, em profunda crise, atolada num pântano de capitalismo financeirizado e moribundo. Motivos não faltam para sangrar. Somos uma sociedade dessangrada.

Mas o que podemos fazer? Belchior diz que "Tentar inaugurar a vida comovida". Aqui estamos diante de um tema muito recorrente em Belchior. Sua poesia é de uma sensibilidade ímpar, de chamamento à  ternura, de apelo ao humanismo. Belchior era um sujeito introspectivo, sensível. Muito inteligente, crítico, mas sempre com essa perspectiva altruísta. Defendia justamente isso, uma vida comovida, "inteiramente livre e triunfante". Aqui a filosofia política de Belchior. O cara era de esquerda mesmo, um libertário.

Belchior era um camarada idealista. Não filosoficamente falando, porque Belchior tinha um pensamento materialista, e isso  apesar dos laivos religiosos expressos ao longo de sua obra. Mas era um camarada de grandes ideais. E isso permeia sua obra.

Durante muito tempo foi tido como só mais um cantor romântico, porque de fato sua obra carrega esse traço de romantismo. Mas é muito mais que isso. A poesia de Belchior traz em si significados muito mais abrangentes, de engajamento político, de contestação da ordem e da cultura estabelecidas. Belchior critica a hipocrisia, a superficialidade, a perversidade, enfim, Belchior é defensor do homem novo, da revolução não apenas social, mas da abertura ao outro, da fraternidade universal.

                 Coisas do porão


Na segunda estrofe da canção Belchior fala da juventude. É uma estrofe bonita também, mas vamos à próxima, a terceira estrofe. A letra diz o seguinte: "O que é que eu posso fazer, um simples cantador das coisas do porão?" Aqui a referência à ditadura militar. Cantador das coisas do porão porque foi aos porões que a ditadura relegou uma geração de músicos, artistas, intelectuais e opositores do regime. Porão que também é referência aos "porões da ditadura", onde milhares foram submetidos à tortura. Foi em meio a esse contexto nebuloso que Belchior abandonou a faculdade de medicina pra se dedicar à música.

Em 1976 lançou o álbum Alucinação, sua obra prima, um LP repleto de clássicos, certamente uma pérola da música popular brasileira, apesar de ser um disco de arranjos simples, que foi lançado às pressas pela gravadora após o sucesso de músicas de Belchior na voz de Elis Regina.

               Botas de sangue


Na terceira estrofe Belchior faz outra referência à sublevação diante de um regime ditadorial. Belchior faz referência ao poeta Federico Garcia Lorca, executado a tiros por tropas franquistas na guerra civil espanhola. A música diz: "Botas de sangue nas roupas de Lorca", fazendo referência ao sangue do poeta, que morreu declamando seu último poema.

                                Olho de frente a cara do presente...

"Olho de frente a cara do presente e sei que vou ouvir a mesma história porca", continua a letra. A mesma história porca porque Belchior escreve essa letra, como já mencionamos, no ano de 79, ano da anistia. Belchior prenunciava que, assim como os assassinos de Lorca não foram penalizados por sua morte, assim também ficariam impunes os carrascos da ditadura brasileira. E de fato não houve responsabilização direta dos torturadores, bem como responsabilização por assassinatos, omissão de cadáveres, etc. Indenizações foram efetuadas, o estado brasileiro foi obrigado a reconhecer seus crimes, mas nenhum torturador foi levado à prisão.

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* A segunda parte da música será analisada num segundo artigo.