quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Memórias de 40 anos atrás

Da série Crônicas da Vida Operária 



                                    ☆


Um dia desses aí fiquei gripada e me lembrei de quando descia do ônibus no Brás pra entrar na fábrica. Coisa de memória olfativa, como se o cheiro no meu nariz 40 anos depois fosse o mesmo de um determinado instante em que chegava no trabalho, num tempo já remoto. Curioso, né. Um cheiro, uma sensação olfativa agora que me remete à vida operária de outrora, mais especificamente de um momento exato em que eu adentrava a fábrica. 

E era uma fábrica de pão, muito grande, vários setores, gente indo e vindo, homens descarregando sacos de farinha, de açúcar, as companheiras do setor de embalagem trazendo os pedidos, me dizendo que se incomodavam da quentura que vinha dos fornos, que não aguentavam mais cheiro de pão. Imagina, que loucura, um cheiro tão popular, tão aclamado entre poetas e pessoas do povo. Mas a gente não aguentava mais cheiro de pão. Eram fornadas e fornadas. O dia inteiro saindo pão. Oito, nove, dez horas por dia com aquele mesmo cheiro na cara da gente.

Depois o cheiro da gripe no nariz me lembrou outras passagens da vida, de antes, de depois, de tantos momentos diferentes. Daquele tempo me lembrei de um dia em que eu tava no supletivo, o professor de matemática explicando equações, riscando um estridente giz na lousa. Os colegas atentos, a maioria com cara de não entender a matéria. 

Fiz supletivo numa escola fuleira da rua Sete de Abril. Chegava lá depois do turno da fábrica, direto, sem passar em casa, sem jantar. E na correria. Saía com a rua escura e semi-deserta, ia chegar em casa depois das onze da noite e com o estômago revirando de fome. Nessa época a gente morava na zona norte, de modo que eu circulava por diferentes regiões da cidade ao longo do dia. Sacudia no ônibus o dia inteiro, tomando cuidado com os tarados, tirando breves cochilos, sempre com cara de sono, meio descabelada, preocupada com os horários, inventando possíveis desculpas para eventuais atrasos. Na bolsa sempre uma cartelinha de comprimidos pra azia. Se o patrão dava bronca já me surgia uma queimação na boca do estômago. Um comprimido pra dentro. A gente não podia responder, não havia condições de contestar. O silêncio era a melhor estratégia 

Em casa também era bom tomar cuidado com o que se dizia. Certa vez, tava me lembrando esses dias, levei um esporro da mãe por comentar que um turco do mercado municipal tinha me chamado pra sair.

 _ Maria Aurélia, você nunca mais me fale isso! Tá entendendo?!

 _ Mas o que foi que eu fiz? Eu, hein.

 _ Mulher rampeira é que fica com esse tipo de conversa. Entende isso de uma vez. Se um homem te chama pra sair, você diz que não e morre o assunto. Esse tipo de coisa moça de família não fica falando por aí! 

Era assim que era naquele tempo. A mãe esculachava e o pai dava bordoada se ficasse contrariado. Os meninos eram mais soltos. Já a gente tinha que andar na linha pra não dar ocasião de reprimenda. Em casa era assim, na fábrica também. 

O ambiente podia ser muito hostil. Até a cidade, pra dizer a verdade, me parecia hostil. Tinha coisas bonitas. Claro, sempre tem. Mas a cidade tinha suas feiuras, suas maldades. De manhã a gente saía de casa com os dentes rangendo pelo frio. Sair da cama quente pra rua gelada era um choque térmico razoavelmente mordaz. Tínhamos repetidas doenças respiratórias. Do quentinho da cama pro frio da rua, e dali pra quentura da fábrica. A alimentação precária, lanches e salgadinhos pra forrar a barriga nos horários de trânsito até a escola. Frio de novo à noite, muitas vezes chuva. Era uma loucura. E nos meses de chuva tinha as enchentes. A cidade parava, tudo intransitável. Uma vez perdi a sandália perto da marginal Tietê. A enxurrada levou embora. Cheguei em casa descalça. A gente descia com água pelas canelas nas chuvas mais amenas do verão. Nas chuvas torrenciais a coisa era muito feia mesmo. Quantas vezes andei com água pela cintura! Dava um frio na espinha indizível quando a água começava a bater na virilha. Uma tristeza, um desgosto profundo. Dava vontade de morrer.

Chegava em casa e tomava um banho de meia hora. A mãe esmurrando a porta do banheiro. Dizia que puxava muita eletricidade. Antes de cair na cama um comprimidinho de azia e um banho de álcool nos pés. Dia seguinte tinha labuta de novo. Era preciso pôr o sono em dia. Mesmo com a mãe resmungando pelos cantos. Em dia assim ela ficava quase tão puta como em dia de chegar a conta do telefone. A gente tinha que ter artimanhas pra fugir do embate. Antevíamos as datas espinhosas e tratávamos também de preparar o espírito pras palavras duras que fatalmente nos seriam lançadas. 

No mais era isso que vivíamos em São Paulo naquela época. Correria, dificuldades. Todo mundo trabalhando pra dar conta da vida. Foi mais ou menos por essa época que conheci o primeiro marido. Ele tinha bigode e dirigia carros de segunda mão que trocava duas ou três vezes por ano. Era bom comigo, atencioso, delicado. Depois de umas semanas que estávamos namorando fiquei sabendo que ele tinha dado um treme-terra na Cecília do departamento pessoal. Em alguma das salas do escritório da fábrica. Foi assim que falou a Neusa, minha colega de seção, que me adiantou a história pensando que ia azedar o namoro. Mas eu fui uma das primeiras moças lá que se casou.

Até virem as crianças a gente saracoteou bastante pelos bailes, pelas festinhas. Antes do casamento tinha sempre que ir um irmão comigo no passeio. A gente andava muito pela cidade. Eu gostava de ver os anúncios, as placas da publicidade. São Paulo nessa época era um emaranhado de informações visuais, um outdoor do lado do outro. E as ruas eram sujas no centro da cidade. Muita gente circulando, vendedores ambulantes, crianças de rua, pastores fazendo pregações nas praças. Muitas fábricas jogando no ar fumaça até não poder mais, a poluição dos automóveis, nos engarrafamentos, nos pontos de ônibus. O trem, por exemplo, ia e vinha dos subúrbios sempre apinhado de gente, uma massa de trabalhadores atrás do sustento. São Paulo era uma loucura. E nossa vida não era muito diferente não.




terça-feira, 21 de dezembro de 2021

As ideologias no chão de fábrica

Quarta crônica da série Crônicas da Vida Operária 


                                  ☆





Filho da puta tem em todo lugar. Não tem jeito. Em todo lugar se encontra esse tipo de gente. No chão de fábrica também tinha. A começar pelos chefes. A maioria era de filhos das putas profissionais. Sabiam ser carrascos, gostavam de tripudiar a peãozada, de gozar da nossa cara. Às vezes de forma muito sutil, com um risinho de canto de boca, uma palavra maldosa disfarçada em meio a um pretenso conselho. Canalhas, cínicos. Dava pra sentir o gozo deles ao soltarem as listas de dispensa, ou quando afixavam no quadro de avisos a escala da hora extra, fudendo com a gente que ia perder a sexta feira à noite. 

Mas os que nos metiam mais raiva eram os puxa-sacos, os peões como a gente que ficavam lambendo os caras da chefia. O mais filho da puta conheci numa indústria têxtil em que passei uns meses. Ali era mais mulher trabalhando, operando as máquinas. Os poucos homens faziam os trabalhos acessórios. Um deles era o Antônio Justino. Filho da puta de marca maior. Cagueta. Tinha o péssimo costume de entregar os deslizes da turma. Gente que chegava atrasada, e que um companheiro batia o cartão por camaradagem; pequenas avarias nas máquinas, por distração na operação. Esse tipo de coisa. O filho da puta entregava mesmo. E se achava no direito de entregar. Se envaidecia, se inchava de orgulho, achava que era o peão padrão de qualidade, caxias, irrepreensível, o peão que qualquer patrão queria em sua firma.

Pois bem, foi assim até que uns mal-elementos primos de uma operária delatada resolveram amaciar a carne do Justino. Pegaram o sujeito num beco perto da fábrica, a tarde caindo, o dia quase escuro. Pegaram e judiaram. Deixaram o Justino todo moído de porrada. Era o aviso pro cara deixar de ser filho da puta. 

Depois disso não passei lá muito tempo. Difícil um filho da puta se emendar. Lembro bem do regozijo coletivo da turma ao saber do acontecido. Até o Elói da portaria de certa forma apreciou o corretivo. E o Elói era extremamente religioso. Elói foi um dos primeiros crentes da Vila Operária. Desses que vão de terno e gravata pela rua, bíblia debaixo do braço, dando a paz do senhor pro pessoal. Elói era religioso mas também não gostava de filhos da puta. 

Os crentes da Vila Operária eram como os crentes de todo lugar daquela época. Trabalhavam duro de dia e à noite faziam alguma atividade da igreja. Não tinham tv em casa, e isso numa época em que a tv se popularizava muito nas casas operárias. Eram discretos de dia, e à noite rezavam meio alto nas igrejinhas improvisadas em portas de garagem. Banquinhos de madeira mal-arranjados, luzes amarelentas, um cidadão empunhando uma viola à frente dos fiéis, regendo os hinos, o pastor pregando o reino dos céus. E era um discurso esquisito, mas tirava muita gente da cachaça, atraía umas donas de casa. Sempre tinha meia dúzia de gente nas igrejinhas. As mulheres de cabelos compridos e saias abaixo das canelas, entravam no templo e ajoelhavam aos pés dos banquinhos de madeira, olhos fechados, a boca murmurando orações. E cantavam, cantavam, mal afinados, vozes sôfregas, o ar faltando. Cantavam e rezavam lá dentro. Fora da igreja tentavam incorporar novos membros. No começo não dava muito certo. Teve uma época depois que o movimento deles ficou mais encorpado. Eram conservadores, mas não eram exatamente reacionários. Não todos. Eram pessoas simples, de pouca leitura. Na Vila Operária as igrejas juntavam menos gente que na favela. Tinha lá um morro em que prosperaram umas quatro ou cinco igrejinhas. No mesmo morro havia uma só capelinha católica, igualmente improvisada.

Era curioso observar a movimentação dos religiosos. Depois de tantas décadas tenho uma noção mais aclarada da coisa, obvio, mas na época já dava pra, de alguma forma, observar as tendências.

Na Vila Operária, por exemplo, teve uma época em que chegou um padre operário. Padre Inácio, homem inteligente, meio calvo, olhos brilhantes, rosto pacífico. Sujeito calmo, de bom humor. Se meteu numas fábricas como se peão de fábrica fosse. E isso numa época da pesada, em que a repressão comia solta. O homem era politizado, esclarecia os operários, tinha coragem. Me mudei e depois não tive mais notícias. 

A Vila Operária era assim. Tinha filho da puta, tinha padre. Tinha de tudo na Vila Operária. A Vila Operária nos dava uma boa medida do mundo. Éramos cosmopolitas nas ruas da Vila Operária. O nosso mundo era sim muito pujante e muito vivo.