Conto
Aconteceu numa loja de calçados. Num shopping que não vou nem mencionar o nome. Entrei lá pra procurar um tênis de corrida. Tava me remoendo num canto, minha angústia era ter de pagar 120 contos num tênis simples de corrida. Ok, tinha um de 100, mas esse só tinha amortecedor no calcanhar. Teria que desembolsar mais 20 pra garantir amortecedor atrás e na frente e sair com a consciência tranquila por proteger meus joelhos do impacto da corrida. E olha que tem gente que leva tênis de 500, 600 pilas! Eu queria uma coisa barata, que caísse bem ao meu bolso e que não me deixasse pesaroso depois por arrebentar rapidamente em alguma pista de terra nas quais me aventuro a ser atleta amador.
Como dizia, tava lá num canto, entretido com minhas próprias lamúrias. Mas foi impossível não notar o que começava a acontecer na minha frente. O primeiro movimento mais brusco foi um empurrão numa caixa de sapatos que repousava num dos balcões. Foi então que a moça começou a xingar, com xingamentos que iam dos menos para os mais ofensivos, progressivamente. Foi aumentando o tom de voz, num crescendo de fúria. Em menos de um minuto estava aos berros.
Eu já ouvi muito sobre casos de Burnout, já vi cenas de fúria pela tv, nessas reportagens curiosas de fim de telejornal. Enfim, nada parecido com a experiência de presenciar um de perto. Confesso que tive medo. Nunca se sabe, podia sobrar uma braçada pro meu lado, qualquer coisa assim.
Acho que a sorte do pessoal lá é que em uma loja de calçados não há muita coisa a se quebrar em momento de fúria. Até que a moça fosse contida, voaram pelos ares alguns poucos ítens de escritório: o teclado do computador, um telefone, um negócio que parecia ser um grampeador, coisas do tipo.
O mais constrangedor não ficou pelo déficit material da encrenca, mas pelas coisas que a vendedora dizia. Pois é, vendedora. Isso deu pra perceber pelo conteúdo dos berros.
- Sai daqui seu filho da puta! - gritava pra um colega da loja. - Eu tenho que bater essa meta!! Eu tenho que bater essa meta!! O que vai ser da minha filha se eu perder esse emprego?!
- Calma, Júlia, fica quieta! - dizia uma mulher tentando acalmá-la. Parecia ser a gerente do estabelecimento.
- Desse jeito eu vou voltar a fazer programa, Cláudia! - respondia a jovem entre soluços, o rosto vermelho feito um pimentão.
O clima ficou tenso por uns dez minutos. Esperei pra efetuar o pagamento do tênis. As coisas foram se acalmando e logo veio um rapaz trazendo um copo d'água. Acariciou-lhe o cabelo, ajeitando alguns fios revoltos.
- Tá tudo bem, fica tranquila, tô aqui com você.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2016
segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
Natal polêmico
Não dá pra jogar a polêmica pra debaixo do tapete. Natal é uma data polêmica mesmo. Eu sou católico e sempre comemorei a data, mas não da mesma forma todas as vezes. Quando pequeno, participava das ceias de família, porque criança não tinha outra alternativa a não ser fazer o que o pai e a mãe achavam melhor. Na adolescência comecei a me rebelar. Um dos melhores natais vivi aos 16. Fui com um pessoal de uma comunidade da igreja passar o natal com os pobres, na rua, na Praça da Sé pra ser mais específico. Pronto, meus natais nunca mais seriam os mesmos. Larguei aquela coisa clichê, cafona e hipócrita de aguentar parente chato depois de se empanturrar de peru e arroz branco com passas, quando não bêbado, e fui encontrar um sentido mais genuinamente cristão e virtuoso pro meu natal. Por que tanta gente se empanturrando enquanto outros estão na miséria? A pergunta que não quer calar, a indignação a transpassar o peito. A contradição colocada.
Ninguém merece um tio do pavê, ou um primo pra sorrir e abraçar e nunca mais trocar palavra até o próximo natal a menos que haja um velório antes. Não, ninguém merece. Tudo bem que natal é tempo de congraçamento, unidade, todas essas coisas. Mas também não dá pra forçar a barra de aguentar gente chata e fazer uma média como se tudo estivesse muito bem. A menos que a gente tope se render ao cinismo e à dissimulação e conviva bem com isso nos meses subsequentes.
Tudo bem, há muita gente que não se importa com isso, mas se vc, assim como eu, não suporta falsidade ou fingimento, o melhor a fazer é romper com o velho ciclo do natal das aparências, esse natal inautêntico das famílias decadentes, pra ir caçar coisa melhor a fazer.
Como católico praticante, eu sugiro algo pra espiritualizar a ocasião. Já que o natal foi cooptado e degenerado pelo sistema, sabemos como a antiquada lógica do consumismo, que nada tem a ver com o espírito natalino, perverteu uma data que nasceu pra celebrar o nascimento do menino Deus que veio ao mundo anunciar o amor e a concórdia, o melhor a fazer seria retornar às origens da festividade, num movimento de meditação, que sugerisse arrependimento dos equívocos, aspirações positivas, etc, tudo o que sugerisse um verdadeiro encontro com aquilo que há de bom em nós.
E não precisa nem ser cristão pra isso. Ou já que a maioria se diz cristã e a data tá aí pra ser tirada como feriado nacional, uma boa forma de vivê-la sem se rebaixar ao senso comum, com todos seus vícios e banalidades, seria permitir-se a uma introspecção capaz de perscrutar o que de mais autêntico existe dentro de nós, aquilo que somos e que ninguém pode nos tirar. Porque a paz também é algo interior, e resistir ao barulho e à mediocridade que viceja em torno é permitir que o exterior não nos contamine com coisas que não nos dizem respeito.
Eu desejo aos leitores um feliz natal, autêntico e singular. Não hesitem em tocar o ''foda-se'' se tocar o ''foda-se'' for o melhor a se fazer. Esse pode ser o último natal, nunca se sabe. A vida é muito valiosa pra perder em comilanças e conversa fiada.
Ninguém merece um tio do pavê, ou um primo pra sorrir e abraçar e nunca mais trocar palavra até o próximo natal a menos que haja um velório antes. Não, ninguém merece. Tudo bem que natal é tempo de congraçamento, unidade, todas essas coisas. Mas também não dá pra forçar a barra de aguentar gente chata e fazer uma média como se tudo estivesse muito bem. A menos que a gente tope se render ao cinismo e à dissimulação e conviva bem com isso nos meses subsequentes.
Tudo bem, há muita gente que não se importa com isso, mas se vc, assim como eu, não suporta falsidade ou fingimento, o melhor a fazer é romper com o velho ciclo do natal das aparências, esse natal inautêntico das famílias decadentes, pra ir caçar coisa melhor a fazer.
Como católico praticante, eu sugiro algo pra espiritualizar a ocasião. Já que o natal foi cooptado e degenerado pelo sistema, sabemos como a antiquada lógica do consumismo, que nada tem a ver com o espírito natalino, perverteu uma data que nasceu pra celebrar o nascimento do menino Deus que veio ao mundo anunciar o amor e a concórdia, o melhor a fazer seria retornar às origens da festividade, num movimento de meditação, que sugerisse arrependimento dos equívocos, aspirações positivas, etc, tudo o que sugerisse um verdadeiro encontro com aquilo que há de bom em nós.
E não precisa nem ser cristão pra isso. Ou já que a maioria se diz cristã e a data tá aí pra ser tirada como feriado nacional, uma boa forma de vivê-la sem se rebaixar ao senso comum, com todos seus vícios e banalidades, seria permitir-se a uma introspecção capaz de perscrutar o que de mais autêntico existe dentro de nós, aquilo que somos e que ninguém pode nos tirar. Porque a paz também é algo interior, e resistir ao barulho e à mediocridade que viceja em torno é permitir que o exterior não nos contamine com coisas que não nos dizem respeito.
Eu desejo aos leitores um feliz natal, autêntico e singular. Não hesitem em tocar o ''foda-se'' se tocar o ''foda-se'' for o melhor a se fazer. Esse pode ser o último natal, nunca se sabe. A vida é muito valiosa pra perder em comilanças e conversa fiada.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2016
Sobre ingenuidades e poder
Não se dá ponto sem nó em política. É muita ingenuidade pensar que os movimentos, quaisquer que sejam, tal como esse do Vem Pra Rua, que promete tomar as ruas no domingo, agem por pura motivação cívica e moral, por justiça ou contra a corrupção deslavada que há no país.
Quem está por detrás disso, levantando entre coxinhas a bandeira do Fora Temer e de novas eleições, sabe bem o que deseja colocar no lugar. Outra ingenuidade era pensar que o golpismo conformava um grupo homogêneo em torno a Temer, e que não houvessem disputas pelo poder entre a turma que deu o golpe no primeiro semestre.
Por falar em ingenuidades, outra delas seria acreditar na boa vontade dos procuradores do ministério público federal, que foram à mídia se fazer de coitadinhos após o congresso incluir a possibilidade de punição a magistrados em casos de excessos e perseguições.
O imbróglio não é de hoje, e vem na esteira de uma disputa intestina entre os poderes da república. Judiciário e legislativo, a despeito do complô criado em torno do golpe que ascendeu Temer à cadeira de presidente, andam em pé de guerra pra ver quem pode mais.
Para fazer uma analogia entre disputa política e xadrez, poderíamos dizer que o judiciário faz de tudo pra jogar como uma dama: quer executar o movimento que bem entender, na direção que bem lhe aprouver; quer dominar o jogo, coordenar a porra toda.
Por sua vez, o legislativo não quer abrir mão de sua magnitude no jogo político. O parlamento anda mais pra cavalo no xadrez de Brasília; de tiro curto embora, ao contrário das demais peças, tenha a prerrogativa de se movimentar em L e assim cortar atalhos e passar por cima de outras figuras do tabuleiro. Ainda assim o cavalo pode ser a melhor pedra a se movimentar pra iniciar o jogo no ataque, mas não será decisivo quanto uma torre ou a própria dama. A torre ao menos pode cumprir a função tática do roque para blindar seu rei do xeque. E deputados e senadores desejam continuar a determinar o mate, como no processo do impeachment, onde orquestraram toda o jogo sujo para o imperialismo e o setor financeiro, para só contar com o STF como chancela, mera formalidade jurídica do processo.