No início desse mês de Agosto perdemos uma grande referência da teologia da libertação e dos direitos humanos no Brasil. Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Aos 92 anos, tendo lutado muitos anos contra o Parkinson e a pressão alta, Casaldáliga faleceu na Santa Casa de Batatais, interior de São Paulo. A notícia de sua morte foi omitida pelos grandes meios de comunicação, mas tomou as redes sociais. Faço questão de deixar aqui uma pequena resenha de um excelente livro sobre a vida e as causas de Pedro.
"Não poderia ser a vida de uma pessoa uma obra de arte?" E aqui cabe ainda lembrar que a estética aristotélica definia ser belo aquilo que encanta. Pedro gozou, sem dúvida, de uma vida encantadora. Uma verdadeira obra de arte.
Esse parágrafo acima é um trecho do livro "Um bispo contra todas as cercas. A vida e as causas de Pedro Casaldáliga, da Editora Vozes, escrito pela jornalista Ana Helena Tavares. Essa primeira frase do excerto é uma pergunta que Foucault faz em alguma parte de sua obra. Pergunta muito interessante. Excelente mote pra qualquer assunto referente à vida.
De fato, a vida de uma pessoa deveria ser uma obra de arte. E se a vida ainda não se converteu em obra de arte é porque esse mundo, com seu modo de produção dominante, com seus sistemas econômico, político e social não permite que assim seja. E arrisco dizer que se a vida deste santo, Pedro Casaldáliga, foi uma obra de arte, uma vida encantadora, inspiradora, o foi por conta de suas firmes decisões que em tudo contrariaram a lógica desse mundo. Pedro foi um revolucionário. Ele mesmo se auto-classificava como revolucionário. Chamado de subversivo pelas forças da ditadura militar, pelos setores conservadores da sociedade, fazia questão de assumir. E acrescentava: Não só sou subversivo. Sou revolucionário.
Vejam a coragem do homem, a firmeza de propósito. Pedro era um religioso. Padre da congregação dos claretianos. E se tornou bispo pouco tempo depois de chegar ao Brasil, para onde veio em missão após um período na África. Era de origem espanhola, mais precisamente da Catalunha; de um pequeno povoado próximo a Barcelona.
Nascido numa família de pequenos produtores rurais, família tradicional, de pensamento reacionário, Pedro tomou outro caminho. Desde cedo se decidiu pelos pobres.
Foi no Brasil, já depois dos 50 anos de idade, que alçou um degrau na hierarquia da igreja, sendo promovido a bispo. Não queria aceitar o cargo. Foi convencido pelos amigos, que argumentavam que na condição de bispo, teria mais condições de seguir seu trabalho com os pobres. Ganhou visibilidade com seu trabalho junto aos povos indígenas e ribeirinhos da região do Araguaia, se indispôs com o regime militar nos anos de chumbo, quase foi expulso do país, ganhou projeção nacional e internacional. A cúpula da igreja brasileira o defendeu. O próprio papa à época, Paulo VI, mandou recado aos militares para que estes não tocassem em Pedro, que não admitiria que Pedro fosse alvo de hostilidades por parte do estado brasileiro.
E assim se tornou um dos principais nomes da nascente teologia da libertação, movimento que surgiu na igreja da América Latina e que dialoga com o marxismo.
Pedro se colocava claramente contrário ao latifúndio, mesmo que este fosse produtivo. Há na Internet uma histórica entrevista de Casaldáliga ao programa Roda Viva, em que o bispo menciona essa opinião.
Pedro, praticamente até o fim da vida, foi alvo de ameaças de morte por conta de sua indisposição com os grandes latifundiários da região amazônica. Havia na região uma terrível concentração de terra, com marginalização e miséria dos trabalhadores rurais, casos de trabalho escravo, torturas aos trabalhadores, mortes, etc. Uma situação realmente muito delicada. E Pedro nunca se calou, nunca se vergou diante das ameaças.
Em determinada ocasião, dentro de uma delegacia, onde reclamava a soltura de duas mulheres negras que sofriam tortura das autoridades, Pedro foi testemunha do assassinato do padre João Bosco Penido Burnier, que o acompanhava. Contrariado com a presença dos religiosos no distrito, um dos policiais o assassinou com um tiro na nuca. Acontece que o tiro não era para o padre Burnier, mas para Pedro. Só que, nas próprias palavras de Pedro, "o padre Burnier tinha mais pinta de bispo". Estava com um clérgima no pescoço, aquele colarinho que os padres usam.
Pedro andava como um homem simples do povo, de chinelos de dedo. Não havia em seu visual deferências clericais. Trazia um anel de tucum na mão, ao invés do anel de bispo. Foi condição estipulada por ele na nomeação a bispo. Não queria trazer consigo nenhum sinal de poder. Seu báculo de bispo foi um remo indígena. Tinha uma concepção de igreja muito próxima do que tem agora o Papa Francisco. Defendia uma igreja pobre, que se misturasse no meio do povo, sem distinção, sem privilégios, parceira do povo trabalhador em seu cotidiano.
Na sua casa em São Félix, uma casa simples, de paredes sem reboco, em nada parecida com um palácio episcopal, por muito tempo não teve nem geladeira. Se recusava a ter. Não queria ter em casa um eletrodoméstico que muitos ribeirinhos não tinham condições de ter. Muitos anos depois foi convencido pelo padre e pela freira que também moravam na casa. Era um homem democrático. Sabia ser voto vencido. Tinha profundo respeito pela opinião das pessoas, pela autonomia da comunidade.
Embora bispo, nunca almejou conforto ou notoriedade. Coisas que são muito próprias aos bispos. Por exemplo, nunca aceitou ter ar condicionado em casa. Se refrescava com um ventilador em meio ao clima de altas temperaturas do Mato Grosso. Falou que quando morresse queria ser enterrado num cemitério Karajá às margens do rio Araguaia, entre um peão e uma prostituta.
E assim aconteceu. Foi sepultado descalço, com uma estola (item litúrgico utilizado pelos padres) nicaraguense. Pedro foi defensor de primeira hora da revolução na Nicarágua. Esteve em Cuba, onde foi recebido pelo presidente Fidel Castro. Era um homem confessadamente de esquerda. Um santo dos nossos dias.
Muito em breve será conhecido como São Pedro Casaldáliga dos indígenas e pobres. Patrono da floresta, dos rios, da libertação. E da poesia. Pedro foi exímio poeta.
Tudo isso e mais um pouco está lá no livro da Ana Helena. Recomendo muito a leitura.
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