quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Corrida presidencial / Tendências e apontamentos


Rodrigo Maia disse ontem que a chapa Baleia Rossi na Câmara prefigura um campo conjunto pra 22. Mencionou como prováveis cabeças de chapa os seguintes nomes. Dória, Huck, ACM Neto, Ciro Gomes!, e Paulo Câmara, do PSB de Pernambuco.

Acredito que o Ciro não consiga reunir o apoio da direita liberal. Mesmo em cenário de profunda crise econômica e social.  Nem um Paulo Câmara da vida, nome de segundo escalão. Acredito que o próprio Rodrigo Maia possa se colocar como candidato a presidente. 

Mas apostaria no Luciano Huck. Um elemento que expressa bem o poder econômico, mas com fachada populista, de discurso identitário, com apelo popular, mais carismático, com esse ar de "não político".

A tendência, me parece, é o estabelecimento de um novo outsider. Dessa vez menos improvisado do que foi com Bolsonaro. Vão limpar o terreno, aparar arestas, remover o discurso truculento e fascistoide e colocar no lugar uma postura civilizada. Por isso que acredito que o Luciano Huck seja alçado a esse posto de presidenciável das elites e do próprio imperialismo. 

O neofascismo bolsonarista foi um erro de cálculo do golpismo. Agora eles precisam controlar o monstrengo. Bolsonaro até que gostaria de terminar de destruir tudo. Mas é um cão de guarda da elite que faz muito barulho e que não entrega serviço. Um golpista sem cacife pra efetivar golpes. Um golpista juvenil. 

O estado nacional, verdade seja dita, começou a ser desconstruido nos estertores da gestão Dilma Rousseff, mas foi com Temer que imprimiram um forte choque. Bolsonaro não fez nada. Só ocupou o vácuo político.

Bolsonaro capitalizou o discurso de ódio desse período de crise política, de acirramento da luta de classes. Se beneficiou dessa guerra ideológica pra se alçar à presidência. Mas a gestão dele é de neoliberalismo aguado. Ele bem que queria uma gestão pinochetista: truculência e repressão social aliadas à privatizações e desmonte da soberania. Graças a Deus não imprimiu esse ritmo. Muito por conta de sua inaptidão política. 

As elites querem passar uma porção de ajustes e reformas. E precisam de um elemento que tenha mais habilidade e traquejo político pra engabelar o povo. O Bolsonaro mais atrapalha do que ajuda. Por isso que tende ao descarte. A mesma lógica do que aconteceu com Trump. Grosso modo. A verdade é que essa política de populismo de direita à la Bannon tem um limite já colocado. 

No Brasil foram os militares que ficaram como bucha de canhão dessa política, dando suporte a esse gabinete da insanidade que é o projeto bolsonarista. Se queimaram com isso, mas já foram longe demais pra declinar da aliança. Resta a eles a desfaçatez mais sórdida. O cinismo virou a arma política dos canalhas de verde oliva. Vivem na iminência do caos como se tudo estivesse absolutamente sob controle. São os bolsominions do núcleo racional e pragmático. Porque os bolsominions são verdadeiras antas. Seu obscurantismo e sua visão completamente obtusa da realidade os fazem colocar Bolsonaro em patamar de herói. Já os militares estão muito cientes da loucura de Bolsonaro, mas se vendem por poder e dinheiro. 

Mas vejam vocês a gravidade da situação. Tudo está sendo armado para a troca de seis por meia dúzia na política. A mudança mais significativa foi a do golpe de 2015-2016. De lá pra cá as mutações foram epidérmicas. O projeto econômico é exatamente o mesmo. Aplicar ajuste fiscal e privatizar tanto quanto for possível. O país segue sendo destruído. Isso é cada vez mais visível. Nem precisa falar do desemprego e da crise social. Até uma criança é capaz de notar.  Que Deus nos ajude, companheiros.

sábado, 31 de outubro de 2020

Caminho da Fé / Uma jornada nas montanhas



Fazia uns três anos que eu tava querendo fazer o Caminho da Fé. Desde que ouvi falar pela primeira vez. Ouvi de um padre jesuíta, numa missa. Fiquei encantado com a proposta. Decidi fazer agora, no fim dessa pandemia. 

Pra quem não conhece, o Caminho da Fé é o seguinte: é uma espécie de Santiago de Compostela pra quem não tem dinheiro pra ir pra Europa. O caminho começa no interior de São Paulo, passa pelo sul de Minas e volta a São Paulo, contornando a Serra da Mantiqueira, tendo como destino a cidade de Aparecida. Por dentro de fazendas, no meio do mato, subindo e descendo montanhas, por estradinhas de terra, poucas vezes pegando asfalto. 

Nem é preciso dizer que o caminho oferece lindas paisagens aos peregrinos. No meio da natureza, com os bichos, excelente ocasião de meditação. Nem todo mundo que faz é religioso ou crente. Muitos fazem por esporte, turismo, fazendo trekking, de bicicleta, de jipe, enfim. Há outras motivações. Mas em geral o Caminho é trilhado por motivações devocionais mesmo. Há um clima de espiritualidade no ar, de oração, de introspecção e auto conhecimento. Porque, como eu disse, o trajeto envereda pelo meio do mato, por lugares ermos. Às vezes não tem ninguém na estrada, às vezes só bichos, às vezes nem bichos. É só o caminhante e o silêncio. 

Eu adoro natureza, mato, tudo isso! Fui todo empolgado. Resolvi sair numa segunda feira pela manhã. A idéia era madrugar. Mas a cama me segurou até às 10. Saí de casa às 11. Pensando ingenuamente que conseguiria um ônibus lá pela hora do almoço. Plano frustrado. Só tinha ônibus pras três e meia da tarde. Ônibus para Paraisópolis, cidadezinha do sul de Minas. Resolvi começar por lá. Era uma das propostas de trajeto no site do Caminho da Fé. 136 km até Aparecida. Uma caminhada de 6 dias, com média de 22 km por dia. Não podia gastar muito, tava indo com dinheiro contado. Pensei que tava bom por hora. Uma semana fora de casa. Seria uma experiência. Poderia voltar em outra ocasião pra um trecho mais longo. Partindo de Águas da Prata, que é a cidade mais comum de início do caminho, o pessoal costuma levar de 10 a 12 dias na estrada.

O problema foi que eu cheguei às 19:30 em Paraisópolis. Havia "perdido" o primeiro dia de caminhada. A solução seria ficar numa pousada e sair pela manhã. No ônibus vinha enjoado. Muitas curvas na Serra. Curvas intermináveis. Conheci duas senhoras. Uma delas estava com um cajado feito de bambu, com fitinhas coloridas de Nossa Senhora. Puxei assunto.

- Vocês também estão indo fazer o Caminho da Fé?

- Sim! Por que, você vai?

E já fui me enturmando. As tias não estavam indo pela primeira vez. Eram veteranas de peregrinação. Todo ano fazem. Aproveitei pra fazer perguntas. Muito simpáticas as senhoras. Chegando lá me ofereceram carona num táxi que pegaram. Pesquisei o preço das três pousadas que haviam no centro da cidade. Todas tinham o mesmo valor. Resolvi que iria ficar na mesma pousada das tias. A dona, muito simpática, me perguntou se eu ia jantar.

- Depende. Quanto custa a janta?

- 20 reais.

- Não vou não. Obrigado. 

Jamais que ia gastar 20 pilas numa janta. Fui todo franciscano fazer o caminho. A idéia era economizar o máximo possível. Fui no mercado, comprei um pacote de pão integral e um suco de uva. Não era a janta. O pão era pro lanche do dia seguinte. O suco era pra aproveitar uma garrafa de um litro e meio que me serviria de cantil na caminhada. 

A janta eu iria descolar franciscanamente mesmo. Pedindo. Nenhum problema, tinha em mente que pediria água pelo caminho. Eventualmente comida também. As pousadas incluem café da manhã. Eu comeria bem antes de sair, andaria tomando bastante água e comendo uma ou outra fatia de pão ao longo do dia. Só a janta que tava em aberto. 

Fazia um tempo que eu não pedia comida na rua. Tava destreinado. Passei pela frente da igreja matriz da cidade e tive a brilhante idéia de manguear ali a refeição. Já passava de oito e  meia, a igreja estava fechada. Procurei pela casa do padre. Um servo de Deus não iria negar o jantar de um peregrino. Bati no portão da casa paroquial. Absoluto silêncio, luzes apagadas. Pelo jeito o padre não estava. Outro filho de Deus teria que me dar de comer. Saí andando pelas ruas escuras da cidadezinha. Ponderava as possibilidades. Me sentindo um desses personagens de literatura beatinik, viajante, andarilho, on the road na vida.

As ruas estavam praticamente desertas. Um ou outro comércio aberto. Onde, meu Deus, eu iria descolar um prato de comida? Não sabia. De repente surge um trabalhador a meio quarteirão de distância. Com uniforme de gari, vários sacos de lixo à mão.

- Companheiro, licença. Boa noite. Tô aqui de passagem, fazendo o Caminho da Fé. Você sabe me dizer onde que eu consigo alguma coisa pra comer?

O rapaz disse que tinha pizzaria, que tinha isso, aquilo, aquilo outro. Foi me falando dos lugares.

- Mas tô sem dinheiro. 

O rapaz fez uma cara pensativa por um segundo. Olhou o chão. Levantou a cabeça e disse: Não seja por isso. Eu pago alguma coisa. 

Fiquei sem jeito. Falei: Não. Você tá aí trabalhando. Não quero incomodar. Imagina. 

Ele sorriu. Disse que eu esperasse na frente de uma casa de batata recheada que havia ali a poucos metros. Que ele já voltava. Fiquei lá na frente. Tirei um livro da mochila, procurando entre os postes de iluminação um lugar com mais claridade pra me acocorar e esperar. Folheando meu livro. Fiquei ali bem uma meia hora. Passou o caminhão da coleta de lixo. Olhei. Será que esse cara tava ali? E agora? Vou ter que repensar a janta. Mas baixei os olhos novamente em direção ao livro. Depois de cinco minutos aparece o mano dentro de um carro. Me estende a mão com umas notas e pergunta se é o suficiente. 

- Tá ótimo! 

Nem tinha visto quanto tinha. Mas tava ótimo. Daria um jeito. Entrei no negócio da batata recheada. A moça caprichou no prato. Viu que eu era peregrino, que o rapaz do carro tinha me dado o dinheiro da janta. E resolveu ajudar também. Queria me dar um refrigerante. Não aceitei. Tinha o suco. Peguei a embalagem e fui pela rua saboreando a batata. Agradecendo a Deus pela providência. Parei na frente da igreja fechada. Queria rezar. Iria rezar ali mesmo. Agradecido pela janta, por estar ali, por ter a oportunidade de trilhar aquele Caminho da Fé. Seria uma coisa interessante pra mim. 

Fazia frio. Fiquei num banco da praça, o que me parecia mais próximo do que imaginei que seria a capela do santíssimo. Fiquei ali uns bons minutos papeando com Jesus. Ventava forte. Resisti por uns minutos mas tive que me retirar pra pousada. Fui descansar.

Acordei 20 pras seis. Garoava. Desci pro café da manhã. Um belíssimo café da manhã. Comi tudo que eu podia. Iogurte com granola e mel, queijo, bolo, café com leite. Entreguei a chave na recepção e fui embora. As duas senhoras já estavam iniciando a jornada. Estavam com dois rapazes de Pirassununga. Um deles se aproximou de mim. Muito gente boa o rapaz. Conversamos. Ele disse que era católico também. Ficamos de rezar o terço mais a frente. 

As mulheres não paravam de falar. Chovia. E elas falavam, falavam... Me impacientei um pouco. Tomei distância à frente. Umas das tias era mais dondoca, cheia de pulseiras de prata. Notei que era bolsonarista. A tia disse que não ia tomar a vacina chinesa, que tinha visto não sei o que lá numa entrevista da Jovem Pan. Criei um ranço. Também notei que não eram de igreja. 

Resolvi puxar o terço. Chamei as tias. Elas não quiseram rezar. Rezei eu e os meninos de Pirassununga. Na estrada fomos ultrapassados por outros dois peregrinos. Eles estavam na pousada ao lado em Paraisópolis. Acordaram mais tarde mas caminhavam em passo apertado. Eles também vinham com o terço na mão. Acabamos a reza do terço e as mulheres vinham atrás na mesma falação. Queria apreciar mais o silêncio do caminho e decidi que seria melhor caminhar sozinho mesmo. O grupo vinha num ritmo ameno atrás de mim. Apertei o passo e tomei distância. Não voltaria mais a vê-los. 

A chuva parou mas eu já estava praticamente encharcado. Muita lama no caminho, estrada escorregadia. Havia fortes subidas. Imaginei que as tias teriam dificuldade naquele trecho. Eu vinha em ritmo acelerado.

Cheguei no povoado seguinte pela hora do almoço, com uma pausa de uma meia hora num bairro rural em que havia dois botecos. Num deles vários matutos conversando.

Outro elemento interessante da viagem é a simpatia do pessoal da roça. Vez ou outra cruzam a estrada em sentido oposto. Muito simpáticos. Cumprimentam a gente de cima de seus cavalos, de dentro de seus fusquinhas. Na roça todo mundo dá bom dia e boa tarde. E são muito solícitos, muito solidários. O homem da roça é um patrimônio da cordialidade brasileira. E o interior nos possibilita essa proximidade que dificilmente temos nas cidades grandes.

Pela hora do almoço alcancei os dois peregrinos que haviam nos ultrapassado de manhã. Eram de Monte Alto, guardas civis municipais. Um aposentado e outro da ativa. Vinham de longe, de um dos ramais do Caminho da Fé. Já estavam na estrada havia uma semana. Vinham pelo caminho apontando os passarinhos. Falando das espécies de passarinhos. Eu, guri da cidade grande, não entendo nada de passarinhos. Eles também vinham rezando dezenas do terço. Ao invés de rezar o terço todo numa carreira só. E vinham esbaforidos na subida. O próximo destino seria a famosa pousada da Dona Inês, cinco ou seis km ladeira acima de Luminosa, que foi onde nos encontramos no almoço. 

Chegamos na Dona Inês quase três horas da tarde. Um dos policiais estava com a perna contundida. Eles queriam avançar mais na caminhada, mas não seria possível. Eu já tava satisfeito com os quase 30 km que tinha andado. Impressionantes 30 km. Tava exausto. Não tinha comido muito. Me furtei de um almoço por um pão de queijo de padaria, pra economizar. Tava decidido a pousar na Dona Inês. 

Mas fui pego por uma surpresa; ela não passava cartão. Uma pousadinha simples. A pousada era uma extensão da casa da mulher. Só trabalhava com dinheiro ou transferência bancária via celular. E eu não trazia dinheiro em espécie. Nunca fiz transferência via aplicativo. Ainda tentei baixar no celular, mas o banco só liberaria a senha em 24 horas. Pronto, tava ferrado. Me vi diante de um dilema dificílimo. Ou descia pra Luminosa, mas teria que subir tudo de novo no dia seguinte (seis km, uma hora na caminhada), ou ia adiante, mas a próxima pousada estava a 13 km, quatro horas de caminhada. Ali seria o trecho mais íngreme do caminho. A chamada subida do Quebra Perna. Passa-se de 900 metros de altitude, mais ou menos, em Luminosa, para 1750 metros próximo a Campos do Jordão, na divisa de Minas com São Paulo. Resolvi ir adiante. Não queria descer pra subir de novo no dia seguinte. Era melhor ganhar terreno.

A subida do Quebra Perna me pegou completamente desprevenido. Não imaginava que pudesse haver uma subida como aquela no caminho. Trechos muito íngremes, terreno escorregadio, cheio de lama. Um escorregão aqui, outro ali. O tênis todo enlameado. Não era o calçado mais adequado para a caminhada. A sola tinha frestas em que a lama formava pequenos blocos, o que me fazia perder o equilíbrio, pendendo o corpo para um lado. Parecia que eu ia torcer o pé. Eu parava em alguma pedra, tirava o excesso. Às vezes me detinha em alguma poça de água pra tentar eliminar aquela terra. 

Nos primeiros metros depois da dona Inês eu já comecei a sentir o estorvo que seria aquele trecho. Em alguns lugares já era impossível empreender a marcha sem parar pra tomar fôlego. De Paraisópolis até a pousada da dona Inês eu me julgava um atleta. Dali em diante principiou realmente a dificuldade. Não estava tão bem fisicamente quanto acreditava que estivesse. Mas a subida era tenebrosa. Estava no meio das montanhas. A cidade ficou lá pra baixo, os animais, tudo. Estava no meio do nada. Temia uma possível chuva. Seria meu fim. 

Já perdia muito das minhas forças quando me aproximei de um vilarejo. Ali, encravado no meio do nada. E tinha um bar. Estava aberto. Um bar bonito, com um deck com mesas, de frente para o vale. Saiu um rapaz. Falei pra ele que eu tava super exausto. Tava praticamente passando mal, esgotado. O rapaz falou pra eu sentar, pra respirar com calma. Fui recuperando as energias. Conversamos ali por uma meia hora. Ele me deu água. Eu comi pão integral. Falei pra ele da minha exaustão, do receio de não aguentar a subida. 

Ainda havia muita subida. Ele me disse que eu tinha subido bastante. Mas que tinha mais umas duas horas de caminhada. Que a temperatura lá em cima caia bastante, que eu passaria por uma mata de eucaliptos. Que até lá eu subiria cerca de 200 metros de altitude. Era o pico da altitude ali. 1700 metros. 

-Será que eu aguento?

-Acho que sim. Se você quiser eu te levo de carro até lá. 

-Me leva?

Puxa vida. Eu tinha encontrado uma boa alma. Esse pessoal da roça é maneiro mesmo.

O rapaz levantou, deu uns passos, voltou, pensativo. E arrematou:

-140 reais e eu te levo.

Tava bom demais pra ser verdade. O rapaz queria me ajudar mas queria levar uma graninha. 

-Nem a pau que eu gasto 140 reais, irmão. 

-É que a estrada é ruim. Você tem que ver isso aí. 

- Sei.

Levantei arrumando minhas coisas. Não podia perder muito tempo. Meia hora de descanso me fez reacreditar na minha capacidade de subir montanhas. Peguei estrada.

O primeiro trecho dali em diante não era tão severo. Ali tinha casas, animais circulando, galinhas cacarejando pela estrada. O sol apareceu. 

Foi dali a uns dois quilômetros que a subida voltou a judiar de mim. Um trecho intensamente íngreme. Tinha sol no céu, mas a temperatura caia. E eu com uma blusa fina. Mal tinha me secado da água da chuva. Transpirei muito. A roupa seguia úmida. A subida extenuante me maltratava. Jurei que nunca mais eu me metia numa aventura daquelas. Pensei: nossa, isso aqui não é de Deus não. Não é possível. Como é que o pessoal mais idoso consegue transpor essa montanha? Andava três ou quatro passos e precisava parar. Não tinha como. A duras penas empreendi esse trecho. Uma tortura. 

No alto da montanha uma porteira. Olhei. O que eu faria? Pedia ajuda ou seguia adiante? Havia uma casa lá distante. Não dava pra ver se tinha gente. Na frente desse sítio tinha um banco. Sentei. Do lado tinha uma placa com uma reflexão, que falava sobre dificuldade, superação. Alguma coisa assim. O suor me escorria pelas têmporas. Trêmulo; com um misto de frio e fraqueza. Tinha consumido muita energia. A água já estava terminando. Saquei o pão da mochila. Precisava de carboidrato. Estava no limite. O sol começaria a baixar. Mais de cinco e meia da tarde. Por um minuto me ocorreu o pensamento de ficar ali. Sem água, sem agasalho, sem abrigo. Olhava lá pra baixo e me dava quase uma vertigem. O lugar era muito alto. Presumi que o duro da subida terminava ali mesmo. Tomei coragem, levantei.

Precisava passar pela mata de eucaliptos. E estava logo em frente. São muitos quilômetros, as coisas nunca estão tão próximas. A gente acha que tá chegando e caminha ainda quilômetros e mais quilômetros. Parece que a subida termina, mas adiante tem outras pequenas subidas. 

A paisagem mudou. Já não era possível vislumbrar o caminho, tampouco parar e contemplar as montanhas atrás. Caminhava por entre um bosque de mata fechada, de árvores muito altas. No ar o cheiro refrescante de eucaliptos. O som dos passarinhos, das cigarras. Aquele eco típico de lugares análogos. Lembrei de um filme. Na Natureza Selvagem. Estava ali no meio da natureza. Podia contemplar embecido seus mistérios. Mas ela não era tão amistosa. Me exigia, me assustava. 

No meio do caminho algumas referências religiosas. Cruzeiros, pequenas capelas, com fitinhas de Nossa Senhora Aparecida, objetos deixados ali por devotos. Na Divisa de estado uma placa com a altitude, em cima de um muro rústico. 1750 metros.

Estava ansioso pelo asfalto. Sim, havia um trecho de asfalto. O rapaz do bar tinha falado. E quando eu menos esperava lá estava ele. Tinha um carro parado no acostamento. Uma esperança de carona me encheu o peito. Mas o pessoal seguia no sentido oposto ao meu. Três meninos de Paraisópolis. Falei brevemente com eles. Entrei pelo asfalto. Uma estrada muito pouco movimentada. Ainda era dia. Mesmo ali havia subidas. Mas o asfalto já me facilitava a vida. Tentei carona com os pouquíssimos veículos que transitavam por ali. Sem sucesso. Mas resignado segui meu trajeto. Estava no automático. Caminhei ali por mais uma hora e começou a escurecer. Cheguei na pousada Barão Montês. Tinha andado incríveis 42 km! Uma maratona. E quase passei direto. A pousada fica num nível mais baixo que a estrada. De longe as luzes eram mínimas. Mal se via o lugar. Parei pra pedir água. Pensei que fosse um restaurante. Não sei porque pensei isso. Um restaurante naquele fim de mundo. Era a famosa pousada!


O resto da viagem conto num próximo post. 



domingo, 30 de agosto de 2020

Um bispo contra todas as cercas





No início desse mês de Agosto perdemos uma grande referência da teologia da libertação e dos direitos humanos no Brasil. Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Aos 92 anos, tendo lutado muitos anos contra o Parkinson e a pressão alta, Casaldáliga faleceu na Santa Casa de Batatais, interior de São Paulo. A notícia de sua morte foi omitida pelos grandes meios de comunicação, mas tomou as redes sociais. Faço questão de deixar aqui uma pequena resenha de um excelente livro sobre a vida e as causas de Pedro. 


"Não poderia ser a vida de uma pessoa uma obra de arte?" E aqui cabe ainda lembrar que a estética aristotélica definia ser belo aquilo que encanta. Pedro gozou, sem dúvida, de uma vida encantadora. Uma verdadeira obra de arte.


Esse parágrafo acima é um trecho do livro "Um bispo contra todas as cercas. A vida e as causas de Pedro Casaldáliga, da Editora Vozes, escrito pela jornalista Ana Helena Tavares. Essa primeira frase do excerto é uma pergunta que Foucault faz em alguma parte de sua obra. Pergunta muito interessante. Excelente mote pra qualquer assunto referente à vida. 


De fato, a vida de uma pessoa deveria ser uma obra de arte. E se a vida ainda não se converteu em obra de arte é porque esse mundo, com seu modo de produção dominante, com seus sistemas econômico, político e social não permite que assim seja. E arrisco dizer que se a vida deste santo, Pedro Casaldáliga, foi uma obra de arte, uma vida encantadora, inspiradora, o foi por conta de suas firmes decisões que em tudo contrariaram a lógica desse mundo. Pedro foi um revolucionário. Ele mesmo se auto-classificava como revolucionário. Chamado de subversivo pelas forças da ditadura militar, pelos setores conservadores da sociedade, fazia questão de assumir. E acrescentava: Não só sou subversivo. Sou revolucionário. 


Vejam a coragem do homem, a firmeza de propósito. Pedro era um religioso. Padre da congregação dos claretianos. E se tornou bispo pouco tempo depois de chegar ao Brasil, para onde veio em missão após um período na África. Era de origem espanhola, mais precisamente da Catalunha; de um pequeno povoado próximo a Barcelona. 


Nascido numa família de pequenos produtores rurais, família tradicional, de pensamento reacionário, Pedro tomou outro caminho. Desde cedo se decidiu pelos pobres.


Foi no Brasil, já depois dos 50 anos de idade, que alçou um degrau na hierarquia da igreja, sendo promovido a bispo. Não queria aceitar o cargo. Foi convencido pelos amigos, que argumentavam que na condição de bispo, teria mais condições de seguir seu trabalho com os pobres. Ganhou visibilidade com seu trabalho junto aos povos indígenas e ribeirinhos da região do Araguaia, se indispôs com o regime militar nos anos de chumbo, quase foi expulso do país, ganhou projeção nacional e internacional. A cúpula da igreja brasileira o defendeu. O próprio papa à época, Paulo VI, mandou recado aos militares para que estes não tocassem em Pedro, que não admitiria que Pedro fosse alvo de hostilidades por parte do estado brasileiro.


E assim se tornou um dos principais nomes da nascente teologia da libertação, movimento que surgiu na igreja da América Latina e que dialoga com o marxismo. 


Pedro se colocava claramente contrário ao latifúndio, mesmo que este fosse produtivo. Há na Internet uma histórica entrevista de Casaldáliga ao programa Roda Viva, em que o bispo menciona essa opinião. 


Pedro, praticamente até o fim da vida, foi alvo de ameaças de morte por conta de sua indisposição com os grandes latifundiários da região amazônica. Havia na região uma terrível concentração de terra, com marginalização e miséria dos trabalhadores rurais, casos de trabalho escravo, torturas aos trabalhadores, mortes, etc. Uma situação realmente muito delicada. E Pedro nunca se calou, nunca se vergou diante das ameaças. 


Em determinada ocasião, dentro de uma delegacia, onde reclamava a soltura de duas mulheres negras que sofriam tortura das autoridades, Pedro foi testemunha do assassinato do padre João Bosco Penido Burnier, que o acompanhava. Contrariado com a presença dos religiosos no distrito, um dos policiais o assassinou com um tiro na nuca. Acontece que o tiro não era para o padre Burnier, mas para Pedro. Só que, nas próprias palavras de Pedro, "o padre Burnier tinha mais pinta de bispo". Estava com um clérgima no pescoço, aquele colarinho que os padres usam. 


Pedro andava como um homem simples do povo, de chinelos de dedo. Não havia em seu visual deferências clericais. Trazia um anel de tucum na mão, ao invés do anel de bispo. Foi condição estipulada por ele na nomeação a bispo. Não queria trazer consigo nenhum sinal de poder. Seu báculo de bispo foi um remo indígena.  Tinha uma concepção de igreja muito próxima do que tem agora o Papa Francisco. Defendia uma igreja pobre, que se misturasse no meio do povo, sem distinção, sem privilégios, parceira do povo trabalhador em seu cotidiano. 


Na sua casa em São Félix, uma casa simples, de paredes sem reboco, em nada parecida com um palácio episcopal, por muito tempo não teve nem geladeira. Se recusava a ter. Não queria ter em casa um eletrodoméstico que muitos ribeirinhos não tinham condições de ter. Muitos anos depois foi convencido pelo padre e pela freira que também moravam na casa. Era um homem democrático. Sabia ser voto vencido. Tinha profundo respeito pela opinião das pessoas, pela autonomia da comunidade. 


Embora bispo, nunca almejou conforto ou notoriedade. Coisas que são muito próprias aos bispos. Por exemplo, nunca aceitou ter ar condicionado em casa. Se refrescava com um ventilador em meio ao clima de altas temperaturas do Mato Grosso. Falou que quando morresse queria ser enterrado num cemitério Karajá às margens do rio Araguaia, entre um peão e uma prostituta.  


E assim aconteceu. Foi sepultado descalço, com uma estola (item litúrgico utilizado pelos padres) nicaraguense. Pedro foi defensor de primeira hora da revolução na Nicarágua. Esteve em Cuba, onde foi recebido pelo presidente Fidel Castro. Era um homem confessadamente de esquerda. Um santo dos nossos dias. 


Muito em breve será conhecido como São Pedro Casaldáliga dos indígenas e pobres. Patrono da floresta, dos rios, da libertação. E da poesia. Pedro foi exímio poeta. 


Tudo isso e mais um pouco está lá no livro da Ana Helena. Recomendo muito a leitura.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Paulo Guedes acuado? / Paulo Guedes é só mais um detalhe da miséria brasileira




Bozo e Guedes representam o mesmo programa. Se o Guedes tá sendo apertado, é porque esse aperto passou pelo Bozo antes.


Não tem como os caras passarem incólumes por uma barbárie social como esta que estão engendrando. 


A diferença do Guedes pro Bozo é que não precisa de processo de impeachment pra tirar um ministro de estado. Aí ele paga o pato. Apesar de ser muito estimado pelo imperialismo e pela especulação. 


Que é o mesmo caso do Bozo. Se a coisa apertar, ele também vai embora, descartado. 


Ele percebeu que se não baixasse a bola ia dançar. Aí fez essa notória movimentação de ficar mais calado nas últimas semanas. Mas, reparem, arguido sobre os cheques da Michele, deu um coice no repórter e voltou a ser contestado. Tem que ver como que a coisa vai evoluir agora. 


Mas a gente tem que notar que ninguém no estado burguês tem cadeira cativa. Ainda mais em se tratando de Bozo. Trump tá pra ser descartado lá em cima. Os donos do poder, ao que parece, não são muito simpáticos aos fascistões. Não que os donos do poder não queiram baixar o cacete no povo. Mas é que o político de plantão deles tem que baixar o cacete ao passo em que simula uma certa conduta democrática. Como é o caso da chapa Biden/Kamala. 

Isso se aplica em escala global. O tacão de ferro do neoliberalismo contemporâneo conta com sutis (às vezes não tão sutis, porque as contradições tomam vulto) mecanismos ideológicos. E nessa toada eles seguem com a política de rapinar o povo. Queimam um ministro aqui, um presidente ali, trocam nomes, seis por meia dúzia, rearranjam a logística e é capitalismo tardio que segue. Até o Paulo Guedes pode ser rifado. Por impressionante que isso nos soe.


Aí vem alguém e pergunta: ah, mas e o teto de gastos?! Pois bem. Eles não vão furar o teto. A questão não é essa.

O Renda Brasil não vai alterar a estrutura orçamentária. A banca não permitiria. Não agora. 


Esse dinheiro vai sair de outro lugar. O problema deles é que não existe muita margem orçamentária pra fazer esse populismo. O Renda Brasil vai ser um dinheiro de pinga. Um Bolsa Família 2.0. 

A questão do Guedes é a economia em frangalhos. Que era bem evidente que seria assim. 


Se a coisa piorar muito, aí eles dão um recuo e permitem uma política mais desenvolvimentista. Com um Huck da vida, alguém assim. 


Isso é o que temos para o Brasil a curto prazo. Infelizmente. Por isso que a gente fala que tem que haver um projeto de esquerda revolucionária pro país. O quadro atual é desolador. E com tendências bem claras de piora. Não só a qualidade de vida das massas tá em risco. É a própria vida das massas que tá em jogo. O corona mostra isso com bastante nitidez. Um país sem rumo, como o Brasil, verga ante qualquer obstáculo. E o povo morre, órfão de direção.

sábado, 22 de agosto de 2020

A versão populista do Bozo / Um ardiloso arranjo das elites

 


Bozo se estabilizou no populismo. A versão fascista iria levá-lo ao impeachment em tempo recorde. Foi obrigado pelas condições a se reposicionar. 


A sociedade brasileira, a despeito desse terço fascista que a gente descobriu que tem, não tá disposta a aceitar um outro vôo bonapartista. Há tentativas nesse sentido por parte do capital atrófico. Mas a resistência da sociedade impossibilita essa política da maldade no grau máximo. As elites se bateram tanto nesse um ano e meio de governo que acabaram chegando a um meio termo. A banca faz a festa mas deixa o Bozo liberar um pixuleco pra conter a fúria da massa. E aí a gente vê essas cenas miseráveis de pessoas se acotovelando em portas de loja de eletrodomésticos, ou lotando os shoppings, ou formando filas intermináveis nas calçadas das agências da Caixa ou das lotéricas país afora. 


A lógica é a mesma do Bolsa Família. Distribuem umas migalhas a pretexto de girar a economia, mas quem lucra mesmo são os bancos e os grandes lojistas. Esse dinheiro dura pouco na mão dos pobres, mas ajuda a amortecer o impacto da miséria e da desigualdade social. É uma maquiagem, uma política pra ludibriar sorrateiramente as camadas mais pauperizadas da população. A economia mesmo continua em frangalhos, com larga margem de desemprego, subemprego, etc. Carteira verde amarela, cortes nos direitos trabalhistas, perseguição aos servidores públicos, etc, etc. 


Uma política de destruição do patrimônio. Há resistência. A dilapidação só não é maior por conta dessa pequena resistência, que não é organizada da forma correta pra inviabilizar o governo, mas que consegue impor alguns limites civilizacionais. 


Bozo por sua vontade acabaria com tudo. Mas percebeu que pra se manter presidente precisa levar em fogo brando a situação. O rearranjo caiu no populismo. As instituições se equivalem em força. A correlação tende à estabilização. Rodrigo Maia e STF preferiram não levar adiante o impeachment. Deixaram passar a oportunidade. Certamente que há interesses poderosos por detrás. A política bolsonarista segue à risca a cartilha neoliberal. Realmente não há motivos pra uma interrupção agora que Bozo foi domesticado pelo cerco à rachadinha e aos filhos. Agora só resta a ele estabelecer uma maior base de apoio ao passo em que se entende com os donos do poder que marionetam Maia e STF. Eles chegam a um entendimento e é vida que segue. 


Pro povo brasileiro isso é extremamente negativo. Porque a médio e longo prazo esse arranjo político vai jogar o Brasil ainda mais na indigência. Não tem política de desenvolvimento, a privatização vem aí, a desindustrialização também, já não temos incentivo à tecnologia, etc. É um país sem rumo, destinado a um lugar de segunda linha na divisão internacional do trabalho, relegado a um papel marginal na geopolítica mundial. Um pária, uma espécie de Arábia Saudita dos trópicos, um quintalzão dos Estados Unidos. Sem soberania, sem progresso, sem grandeza, maltratando sua classe trabalhadora, superexplorando seu povo. 


A situação é realmente dramática. Pasma que a esquerda esteja praticamente inerte diante de uma tal conjuntura, sem sair às ruas, se apegando à alternativas jurídicas e parlamentares que já se sabem nulas. 


É preciso apresentar um programa de revolução brasileira, de organização popular, de resistência. Só a esquerda revolucionária poderá apontar um horizonte de rupturas com o que tá posto no Brasil de hoje.


domingo, 19 de abril de 2020

Que mundo maluco esse!



Gente, eu não sei vocês, mas eu acho maluco esse mundo que a gente vive. Eu praticamente não me surpreendo mais com as coisas. Aprendi que a gente não pode confiar nas pessoas, ou esperar que exista racionalidade nas relações sociais em geral, ou mesmo que o mundo vá melhorar progressivamente, assim, sem eventuais movimentos de grandes choques e contradições . O mundo é essa loucura mesmo que a gente tá vendo.

E toda geração vai passar por momentos decisivos como o nosso. Pode ser uma grande guerra, com grande destruição e terror, uma pandemia terrível, uma hecatombe ambiental, enfim...

Mas a vida, apesar de tudo, segue seu fluxo. Com adaptações, com novidades, mas segue seu fluxo. A gente precisa se alimentar, precisa comprar comida, precisa metabolizar da melhor forma possível, não só a comida, mas a vida, o fluxo dos pensamentos, o sono, o amor, o ritmo do corpo. De modo que a vida segue (às vezes quase que maquinalmente) a sua trilha.

Eu, por exemplo, encontrei na atividade física a válvula de escape necessária pra lidar com a adversidade desses dias. Em geral eu corro no parque, duas vezes por semana, pra manter o peso, visto que engordo com facilidade. Por conta do covid, fecharam o parque aqui perto de casa. Então eu corro na rua. Corro em um bairro vizinho aqui. Numa ladeira. Tem um mirante lá em cima. Lugar interessante. É recompensador chegar lá em cima vivo...rs... É recompensadora a vista de lá de cima. Eu brinco dizendo que subo a montanha.

Pra chegar lá eu corro por uma grande avenida da cidade, e passo por um bairro residencial. É interessante correr pela cidade e observar o movimento, as pessoas. Me dá um parâmetro bom do estado de espírito coletivo. Nas portas dos bares, nas praças, na fumaça de churrasco que vem de algumas casas em sábados à noite. Eu sempre corro de noite. No mirante jovens fumam maconha e namoram, enquanto observam as luzes da cidade. Nos dias mais esvaziados a rua é dos motoqueiros, que passam em alta velocidade, em bando, donos das vias. Quase fui atropelado algumas vezes nas últimas semanas.

Observo os bichos. Muitos gatos. E eu adoro os gatos. Perambulam tranquilamente na noite. Brinco com eles. E com os cachorros de rua, com os cães de guarda de alguns estabelecimentos maiores. Falar com os bichos me faz bem.

Subo exausto a derradeira ladeira da corrida, ladeira da rua detrás da minha casa. É o fim do meu cooper. Venho um quarteirão andando, recuperando o ar. O suor escorre pelas têmporas. Passo por um carro do qual vem um gemido de mulher. Olho pro lado, é um casal. A mulher no banco reclinado do carona, com as pernas abertas. O rapaz no banco do motorista inclinado sobre ela, chupando a moça. A mulher toma um susto. Encabulado eu me viro e sigo meu caminho.

Entro no condomínio, comento com o camarada porteiro. Sexo oral faz bem pra saúde. Será que os motéis estão fechados por causa da quarentena? Não sabemos.

Subo as escadas e ouço uma vizinha cantando alto um mantra que me parece hindu. Descobri há alguns meses que tenho essa vizinha mística. Todos os dias, por volta da meia noite, pasmem, essa criatura começa a cantar o tal mantra. Me lembro que de tarde ela estava cantando música evangélica. Brasileiro gosta de sincretismo religioso, né. Eu sei. Isso aconteceu ontem. Hoje de tarde ela tava se esbaldando com pagode dos anos 90 e algumas coisas de sertanejo universitário. O som alto me incomoda. Não tanto os ouvidos. É mais pelo mal gosto mesmo.

Enquanto deploro o gosto musical da figura, tomo café e leio que os bolsonaristas de São Paulo fecharam a Paulista em manifestação contra o Dória, e a favor de um golpe militar, porque segundo eles o congresso e o STF estão atrapalhando o Jair Capiroto de governar.

Ontem vi o episódio de uns católicos tresloucados que foram ao jardim do Alvorada pra presentear o homem com um quadro de Jesus misericordioso. Um quadro muito bonito, pintado originalmente por Santa Faustina, mística que tinha visões de Jesus. Hoje se celebra a festa da divina misericórdia. Acontece sempre no primeiro domingo depois do domingo da Páscoa.
Que Jesus tenha piedade da gente. Essa Páscoa tá sendo melancólica...

O negócio é rir dos malucos, se enternecer com os bichos, e rezar... Rezar pra Jesus que escuta a oração do pobre, do oprimido, dos condenados da terra. Rezem, camaradas. Encontrem uma montanha pra subir. Eu tô quase fazendo como o cabo Daciolo. Lembram dele? Vou subir o monte pra orar.




sexta-feira, 3 de abril de 2020

Fake atrás de fake / Pode isso, Brasil?!



Olha, eu não me impressiono com mais nada nesse mundo. A que ponto chegamos!

Bolsonaro convocar um jejum é um negócio completamente sem propósito. Eu não vou nem ao ponto de ainda estarmos num estado laico. O Bozo até podia chamar o povo pra jejuar. Mas isso se o Bozo fosse um sujeito piedoso. Acontece que ele passa muito longe disso. Bozo é reconhecidamente um homem ímpio. Esse jejum dominical dele é uma tremenda de uma fake.

A lógica do Bozo é a lógica da fakenews. Bozo é mitômano, ou seja, um mentiroso compulsivo. Ele tá jogando pra torcida evanjegue. É ridículo. Mas é bom que cada tentativa de manobra dele só faz o povo perceber que ele é sim um débil mental com propósitos maquiavélicos. Um Napoleão de hospício com pretensões nazistoides.

Vocês imaginam o Bozo fazendo jejum? Esse cara não deve jejuar nem pra fazer exame de sangue. Enquanto os evanjegues jejuam, estejam certos, Bozo estará comendo pão com leite condensado e refrigerante no café da manhã. E o brasileiro simples tá se fudendo, meio alheio ao circo bozolino.

Bozo é uma imagem política da degradação civilizatória em tempos de crise do capital. É um fenômeno mundial esse populismo direitista caricaturesco. O Bozo retrata as peculiaridades nacionais. Entre elas, destaque para a anciã hipocrisia daqueles que vivem de engabelar incautos e religiosos tontos.




quinta-feira, 2 de abril de 2020

Covid 19 > Socializar ou barbarizar?



A situação de crise que tá colocada exige uma política de renda mínima. Mundialmente isso tá sendo posto.
E é uma tendência que já vem de antes do covid. Não tem emprego. É cenário de crise sistêmica do capital. O covid é um assunto sério. Mas também tá servindo de blindagem pra essa crise financeira internacional.



É uma oportunidade de um reset no sistema, de um reordenamento de capitais e investimentos. A gente já vem colocando isso aqui no debate há umas duas semanas. E temos que observar atentamente as análises dos economistas de esquerda. Dar ouvidos à crítica da economia política. Ouvir atentamente o Pepe Escobar, observar as movimentações da geopolítica.

Não podemos cair no distracionismo da mídia mainstream. Não podemos incorrer em movimentismos típicos da esquerda pós moderna, em histeria ou paranóia. Temos de ser o baluarte da razão materialista e dialética. Correlacionar com ponderação os dados que a realidade tá nos apresentando.

O Lula não vai dar ao povo a alternativa. Nem o Ciro, ninguém, nenhum desses caras. Porque eles não vão às raízes da questão. Somos nós que temos que avaliar o peso da crise e suas implicações. Temos de ter autonomia intelectual, desenvolver apurado senso crítico.

Com relação às medidas que estão sendo votadas no congresso nacional, temos de observar que são medidas mirabolantes até, em vista do que é usual sair dali. Em geral são pacotes de maldade e ajuste fiscal que recebemos desses caras. De sorte que medidas de distribuição de renda nos soam como coisas espetaculares. Mas essa é a tendência mundial. O sistema precisa injetar dinheiro pra movimentar a economia. Altas remessas de dinheiro já foram encaminhadas aos bancos e à especulação. O dinheiro pro povo é café pequeno. É migalha. Deveria ser mais dinheiro. E deveria estar na conta das pessoas já.

Temos de exigir esse dinheiro. É dinheiro nosso. Temos de lutar por investimentos também, na saúde principalmente, na construção de infraestrutura de saúde, de obras públicas imediatas pra sanar esse gargalo e pra salvar vidas. Temos de exigir a reconversão da produção nas indústrias. As linhas de produção deveriam estar ocupadas por EPI pros trabalhadores da saúde, por respiradores mecânicos para os doentes que terão de ser entubados.

E tudo isso temos de fazer sem perder de vista que não podemos deixar que o poder público nas mãos da burguesia transforme a nossa vida num inferno de cerceamentos e restrições. Porque esses malditos estão em pleno laboratório de controle social.

O Netanyahu em Israel mandou fechar o parlamento. Vamos deixar isso acontecer por aqui?! Tem governador mandando a polícia descer o cacete nos trabalhadores ambulantes, nas juventudes que frequentam praias, praças, etc. Isso é inadmissível.




São os trabalhadores do mundo que devem apontar a direção.
Temos de ver com bons olhos a insubmissão e a rebeldia daqueles que se colocam contra os poderosos desse mundo. Aqueles que ao ver seus filhos com fome, não se furtam de saquear mercados, de ocupar fábricas, de expropriar milionários.

O bom das situações de emergência é que elas engendram conjunturas revolucionárias.  Estamos diante de um embate entre revolução e contra-revolução. Ou esmagamos a ordem do capital ou ela termina de nos esmagar.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Dissecando um pouco o bolsonarismo



O Bolsonaro tem uma política kamikase. Ele vai se isolando cada vez mais, querendo nutrir esperanças de um vôo bonapartista. O que é possível mas improvável.

O establishment não quer lançar mão de um impeachment, até porque a política econômica de Bolsonaro, apesar de ruim, é a política que favorece a banca e os rentistas. Mas Bolsonaro cava a própria cova ao se indispor desnecessariamente contra todo mundo. Ele mesmo se queima. E provoca os demais poderes e o centrão a tomarem alguma medida contra ele. Que pode não ser o impeachment, mas algo mais sutil que o desabone completamente. Eventualmente a condenação ou prisão de um dos filhos, o comprometimento da esposa nas investigações que envolvem a família, etc. Ou algo que o envolva diretamente, num processo de desgaste que o faria perder o apoio da parcela de bolsominions nutella, como diz a pesquisadora Esther Solano, ficando só com o apoio dos bolsominions raízes, aqueles que são abertamente proto-fascistas e que estão dispostos à barbárie contra a civilização, ou seja, uma política abertamente regressiva e em oposição aos protocolos de liberdades políticas da democracia formal e de direitos civis básicos.

Existe a discussão se Bolsonaro é  fascista ou não. Evidente que ele não é a reencarnação de um Mussolini ou de um Hitler. E não se trata disso a discussão. Quando tachamos Bolsonaro de fascista, o fazemos por constatar em sua política o espírito do autoritarismo e da violência, da paranóia anti-esquerdista, do obscurantismo, da eleição dos intelectuais como inimigos, da perseguição à classe artística, etc.

A política econômica é outra coisa, é um sabugismo vergonhoso, um claro alinhamento ao imperialismo estadunidense em detrimento da soberania nacional. Uma política risível de tão subserviente.

Isso em nada o garante no posto de presidente. Pode ser rifado a qualquer momento a depender das demandas políticas do sistema e dos interesses americanos. Ou seja, esse seu comportamento kamikase pode o levar a ser defenestrado em tempo recorde.

Pra um politico da burguesia, não basta aplicar a política econômica do neoliberalismo. Ele teria que transitar com habilidade entre as diferentes frações da burguesia. E talvez nem isso o garantisse em tempos de tantas contradições e crises.

Lula e o PT, por exemplo, fizeram tudo o que podiam para agradar ao sistema. Poderíamos elencar aqui uma enorme lista de concessões. Não é o caso. O ponto é que a política espelha a conjuntura macroeconômica, a geopolítica mundial, os interesses dos bancos e das grandes corporações, a correlação de forças das classes sociais, etc, etc.

O fenômeno Bolsonaro veio pra ficar, porque é uma resposta comum ao espírito do nosso tempo, porque dialoga com o ressentimento da clssse média arruinada e reacionária, porque envolve uma psicologia fascista que faz a cabeça de uma parcela de uns 20% da população. Como eu cheguei a dizer num outro artigo, o bolsonarismo é a versão contemporânea do lacerdismo, uma espécie de malufismo digital. Trata-se de uma força política que tem seu espaço garantido e que vai ser um player significativo na política dos próximos anos, ainda que seja desmascarada em suas falcatruas.

Lembram do "rouba mas faz"? Pois então, o bolsonarismo pode muito bem entrar aí como um "rouba mas é de direita", "rouba mas não é o PT", "rouba mas odeia as domésticas e os pobres". E a crise econômica do neoliberalismo, nós sabemos, agudiza a luta de classes e mexe profundamente com as classes médias, um fenômeno ideológico que veio à tona e tá aí mostrando seu barbarismo e perversidade.

Mas, voltando ao tema inicial, cumpre dizer que isso em nada garante Bolsonaro na presidência.
Ele que fique esperto!

Bom, tá certo, o cara é um débil mental, né.  Azar o dele. Sorte nossa. As coisas ficam mais claras assim. Ele queima logo o filme e fica mais próximo de voltar para o lugar de onde saiu.



                   

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Dando nome aos bois... / Quem é o rebanho do Bozo



O bolsonarismo tá criando um público cativo. Uma parcela da sociedade que não tá nem aí com nada. É só ideologia de ódio, puro irracionalismo reacionário.

Haja o que houver, o bolsonarismo quer garantir seu filão e continuar desfrutando das benesses do foro privilegiado e das rachadinhas. Bolsonaro apesar de burro é muito malandro. Ele sabe o que tá fazendo. Tá depurando o seu movimento pra reinar sozinho com os filhos. Pode cair da presidência amanhã, mas vai sair com um garantido eleitorado de gente que baba ódio contra a civilização e o razoável.

O monstro ideológico do neoliberalismo de crise é esse entulho neofascista. É puro ressentimento e espírito de barbárie. Anti intelectualismo, despolitização, ignorância, perversidade, fanatismo religioso, delírio paranóico, misoginia, sexualidade mal resolvida, etc, etc. É a psicologia do fascismo, do nazismo, com contornos próprios desse atual período histórico, claro, mas que remete a tudo de ruim e perigoso que a história da humanidade já observou e que sabemos bem onde pode dar.

Pois bem, no Brasil essa cultura se recria e dá indícios de se estabelecer, senão hegemônica, (afinal nosso povo em sua maioria não anda tão mal da cabeça) captando ao menos uma parcela de 15 a 20% da população, com as seitas neopentecostais na vanguarda desse crime ideológico de sequestrar a consciência e o espírito crítico de cidadãos incautos e baratinados pelo caos das condições gerais de vida, ou simplesmente arregimentando e dando guarida a elementos fascistoides das classes médias.

Pesquisas da sociologia dão mostras de diversos subgrupos desse emaranhado de fascismo comum. E é interessante observar pra notar o arco de alianças políticas que são entabuladas pra efetivar a organização dessa doutrina da destruição. Militares, maçonaria, sionismo, Estados Unidos, capital financeiro, Steve Bannon, movimentos católicos ultra conservadores, etc.

Estão gestando o ovo da serpente em troca de favores políticos do clã Bolsonaro. Tudo isso é criminoso e merece ser sistematicamente denunciado.

É esse tipo de gente que na prática conspira contra o progresso e o bem estar do nosso povo. É esse tipo de gente que garante agora a dilapidação do nosso patrimônio e da nossa soberania, da destruição dos direitos trabalhistas e dos programas sociais. É esse tipo de gente que agora ajuda o governo a tirar comida da mesa dos trabalhadores para garantir a farra dos grandes capitalistas.

E é esse tipo de gente que dá ao Bolsonaro, às milícias e aos demais criminosos em torno desse pessoal a condição de continuar a mamar nas tetas do estado. Um bando de picaretas que devia estar atrás das grades e que está liberado pra fazer política. Essa é a triste situação do Brasil.



                   
                                 

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Dois papas

Dois Papas, aclamado filme de Fernando Meireles. Um filme muito bom, muito bem feito. Esse Meireles é excelente diretor. Hopkins no papel de Bento XVI é magisttral.

Importante dizer que se trata de um longa ficcional, com algumas passagens que se fundem com a realidade. Excelente caracterização das personagens. Daria pra se fazer um Bento XVI mais afável. Mas dá pra entender que a rispidez de Bento em alguns momentos se tratou justamente de um recurso de caracterização, pra contrapor com a simpatia e popularidade de Francisco.

O filme trata exatamente das diferenças de personalidade e visões de mundo entre um papa e outro.
O ponto forte do filme, na minha opinião, foi a mudança do Bergolio jovem para o Bergolio maduro. Ele passa de um homem conservador com tendências autoritárias a um homem abertamente progressista e compreensivo.

Me lembrei de uma frase que o mestre Júlio Lancellotti sempre fala em suas pregações: "Quem ama muda".
O amor e a ternura são duas características imprescindíveis ao seguidor de Cristo. São características do próprio Cristo, e que devem se perpetuar na comunidade cristã, e que devem nortear nosso discernimento da história.

Bergolio se reiventou à medida que fez uma profunda experiência de humanização. Poderia ter optado pela estagnação e paralisia espiritual dos ressentidos; mas viu no sofrimento do outro o próprio Cristo que o chamava à reconciliação amorosa consigo mesmo e com Deus.

E quem ama muda. Quem segue os passos do Mestre, deixa de pensar pela lógica estanque farisaica e abraça a dinâmica natural da misericórdia. E quem faz isso faz história. Muda as estruturas, balança o edifício das velhas certezas.

E como diz no filme, Jesus não veio tomar chazinho com os poderosos desse mundo. Jesus veio viver no meio dos pobres. Francisco sabe disso.

Fernando Meireles captou com sensibilidade e acuidade intelectual o espírito de Francisco. E usou sua lente e criatividade pra tecer uma composição estéticamente muito aprazível. Quem não assistiu, procure assistir.