Crônicas da vida operária.
Inicio aqui uma série de crônicas com a temática operária. Li recentemente Crônicas da Vida Operária, do Roniwalter Jatobá. O próprio é organizador de uma coletânea de contos sobre o trabalhador brasileiro. Meu amigo Rodrigo Silva me sugeriu. Fui atrás e fiquei encantado. Segue então a primeira história.
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Deco gordo, Zé Inácio, Alfredão, Vicente e Pubinha; Tonhão, Luís Carlos, Elias e Mauro; Claudinho e eu. Era esse o time titular da firma. Jogar bem a gente não jogava, mas nunca faltava disposição. Nossa especialidade era a marcação cerrada. O que faltava em caráter técnico a gente compensava com gana e certa dose de malandragem. Do Mauro não posso reclamar. O cara sabia me colocar na cara do gol. Metia bolas ótimas, não tinha muito vigor físico mas tinha uma visão inteligente do campo. Vez ou outra acertava passes que superavam o nível canhestro do futebol de várzea. A gente jogava naqueles campos de terra batida. Alguns tinham um rastro de grama nas laterais, dos gramados mais precários e vagabundos que se possa imaginar. Em dias de chuva ficava praticamente inviável o esporte. Saíamos tomados de barro, os uniformes de algodão fadados a uma condição de encardido insuperável. Banho gelado na sequência. Nossos corpos operários treinados para o infortúnio. Geralmente a gente jogava no sábado à tarde. Dali a turma sempre esticava pra uma caninha com petisco, ou pra uma cerveja em puteiro, coisa do tipo. Peão de obra também é dado a essas coisas. O pessoal muito dificilmente era moralista. Todos, ou quase todos, tinham suas casas, suas mulheres, seus filhos. Eram homens de fibra, que davam duro na semana, batendo o dia inteiro na obra, suando pra levar o sustento pras crias, pra colocar o pão na mesa da família. Podiam muito bem entrar numa birosca e ficar lá umas horas no fim da semana, passar a mão na bunda das moças da vida, pagar uma cervejinha pra elas, falar um pouco mal do chefe, afinal as moças eram exímias psicólogas pra gente, davam atenção, não faziam mal juízo, muito menos nos davam preleção de como agir. Dessas coisas que o homem não encontra em casa. Elas davam carinho e pegavam um pouco do nosso dinheiro, a coisa justa do sistema.
Dessa turma de peões, da época de canteiros de obra, lembro com consideração de praticamente todos os homens. O peão de obra, diga-se, é um patrimônio do povo brasileiro, é uma jóia da nossa sociedade. As pessoas não costumam dar muito crédito, mas o peão de obra traz nos ombros esse país, e não fica nisso. O peão é o homem que bota a mão na massa mas que não deixa de pensar a sociedade. Tem suas convicções, sua personalidade, é homem experimentado, de vivência vasta, de horizontes expandidos. Ninguém dá muito pra reparar nisso. Prestam atenção nos eruditos, nos letrados, nos salões de homens afetados da alta sociedade. Eu, que vivi entre peões, os operários da construção civil, os pedreiros, ajudantes, mas não só, entre as tias da cozinha também, os moleques aprendizes, as vendedoras de café, os motoristas, entregadores, as moças da vida que circulavam entre todas essas categorias de trabalhadores, enfim, toda essa gente, por anos a fio observei o brio das pessoas comuns do povo. Como peão de obra especialmente vivi as histórias mais marcantes, mais inusitadas, engraçadas, que muitas vezes não tive sutileza de pensamento pra notar, fui reparar depois, no correr dos anos, no acúmulo das memórias. Histórias que dariam livros, histórias de amor, sofrimento, de richas de família, de mortes, vinganças. Histórias mais leves, corriqueiras, brejeiras, da infância daquele povo na roça, da chegada nas cidades, das primeiras experiências, das dificuldades mas também da nostalgia, das moradias improvisadas, das camas compartilhadas, dos dias de frio, a fogueira na porta dos alojamentos, as festas noite afora, das namoradas, as mocinhas das famílias operárias atrás de marido nos clubes, nas quermesses. enfim.
São muitas memórias. Dessa turma que citei o nome aí, por exemplo, tenho histórias ótimas. A começar pelo Deco gordo, nosso goleiro. Deco gordo era azulejista de primeira. Sujeito engraçado, de cara rechonchuda e um pouco infantil. Tinha um jeito curioso de andar, como que a calcular os movimentos, pra economizar energia, evitar esforço. Tinha as mãos pequenas, uma habilidade extraordinária no manuseio dos instrumentos. Teve uma época em que tentamos emagrecer o cara. Mandamos que ele comesse no máximo duas vez ao dia de trabalho. O cara comia toda hora! Antevendo problemas, pegamos no pé pra figura perder peso. Orientamos o Deco a beber um copo d'água toda vez que sentisse fome. Foi quando de vinte em vinte minutos passamos a vê-lo entornando canecas d'água no meio da obra. Boas lembranças dele. Era muito amigo do Vicente. Se entendiam muito bem na nossa pequena área. Tinham personalidades parecidas, os dois mais quietos, contemplativos, de palavras mais objetivas. O Vicente uma vez arrumou a maior confusão numa obra. Era numa igreja. Dávamos reparo completo no templo. Lá de cima do forro, ajudando o Elias nas telhas, ouvi um grito de mulher. Demoramos a descer, ficamos sabendo no fim da tarde que a polícia tinha baixado e levado o Vicente. Nosso camarada Vicente, vejam vocês que loucura, foi flagrado por uma das senhoras da igreja em pleno ato masturbatório. A dona disse que o Vicente estava de calça arriada, de joelhos em frente a uma imagem de santa. Não me lembro que santa era. Sei que a dona chamou a polícia e a situação foi delicada na firma. Levaram um advogado pra tirar o Vicente da cadeia, chamaram todo mundo e deram ordem pra que ninguém tocasse mais no assunto. Um dos diretores segurou a bronca dele, não deixou que o demitissem. Tiveram que ligar pra esposa do cara e dar uma desculpa pro atraso. Abafaram o ocorrido e quase mais nada foi falado entre a gente.
Que a gente soubesse, só o Deco gordo ali era dado à punheta. Circulava com revistas de sacanagem, de mulher pelada. Mas era discreto. Os homens em geral eram modestos. De hábitos regulares, gente simples e de bom trato. Ficamos sem entender direito o acontecido. Até hoje me lembro disso e dou risada sozinho, tentando compreender o que se passa pela cabeça de um sujeito pra se excitar com as curvas de uma imagem de gesso, pra se dar a esse ato libidinoso em lugar público e de devoção.
É como eu dizia, o operário é um homem de vida interior considerável. Não dá pra resumir o operário à vida funcional. Nunca. Eram homens que traziam pensamentos próprios, alguns mais criativos, introspectivos. Uma vez peguei o Jacinto com um livro do Sartre em cima da surrada maleta com emblema do Sport. A Náusea. Imaginem um peão de obra existencialista!
Vi coisas muito interessantes entre os peões de obra.
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