Da série Crônicas da Vida Operária
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25/09/90
Hoje cheguei no serviço meio em cima da hora, atrasado por culpa da Sílvia. Ela quis porque quis que eu a levasse na casa de uma amiga. Fui. A contragosto, receoso de me atrasar. Tive sorte de bater o cartão com uns minutos de antecedência. Corri lá. Fiz um trajeto complicado, torcendo pros semáforos me ajudarem, pensando que o seu Manoel me deu uma bronca das bravas no dia que a Ritinha foi parar no hospital. O cara é durão. A gente fica ressabiado. Melhor não criar caso.
Aqui na firma as coisas andam como sempre. Nada de muito novo. Dia desses o Sergião teve outro tremelique. O mano é epilético mesmo. Confirmadas nossas suspeitas. Ano passado convulsionou aqui. De madrugada, eu e ele no turno. Não falei nada pra ninguém. Essa semana deixei ele tranquilo, disse que não conto pra ninguém. Só pedi que procure o médico, disse que é bom estar medicado e tal. Desenrolei uma conversa bacana aqui com ele. O Sérgião é um cara gente boa. E mesmo que não fosse, seria sacanagem falar pro patrão uma coisa que talvez o prejudique. Sempre pensei assim nas coisas do trabalho, e foi assim na vida. Na época da escola os caguetas já me soavam o tipo mais desprezível. E é bom também ajudar as pessoas. Princípios...princípios...É bom tê-los.
O Sergião cobre o setor sul. Fica lá averiguando de hora em hora, volta e senta na guarita rente ao muro da esquina. De lá me faz sinal de luz com a lanterna. Qualquer problema me chama no rádio. E eu faço mais ou menos a mesma coisa, só que do lado de cá. Às vezes a gente caminha até o meio do caminho das guaritas e bate um papo rápido. O tempo de um cigarro, coisa rápida mesmo. Ficamos lá, observando a rua pelas frestas da cerca. Menos em dias de chuva. Na chuva a gente evita até a averiguação de praxe. Nos entocamos nas guaritas e ficamos ouvindo rádio.
O rádio é um bom companheiro de madrugada. A gente dorme um pouco de vez em quando, mesmo não podendo. O certo é não dormir. Somos pagos pra vigiar, né. Não que eu me importe muito com a integridade do patrimônio. Zelo pelo meu ganha-pão. E se é preciso ficar acordado, a gente fica. Aí o rádio distrai a gente, além de dar as horas e ajudar no serviço. E ouvindo rádio me sinto de alguma forma ligado às pessoas. Sei que estão ouvindo por aí, em outros bairros, nessa cidade imensa, e fora da cidade, do estado. O pessoal liga na estação, pede música. O locutor vai citando os lugares e eu vou imaginando, criando mapas na minha cabeça, pensando como são os rincões desse país, ou como são as pessoas por trás dos nomes. Rabisco aqui o papel, pego do caderninho e vou escrevendo, lembrando das coisas, inventando na minha cabeça o que teria sido se as coisas não tivessem acontecido como aconteceram na vida. O pensamento vai muito longe.
Hoje fui levar a Sílvia. E se não tivesse levado? E se tivesse chegado aqui vinte minutos antes? E se tivesse vindo pela avenida da estação ao invés da avenida que meio por acaso peguei no apuro da hora? Será que isso de alguma forma me alteraria a percepção do mundo? Talvez o trajeto da avenida da estação me desse mais possibilidades de refletir a vida. Ver as pessoas com suas malas, os carregadores vindo com o uniforme amarelo gema de ovo, o chapeuzinho engraçado à moda antiga; as moças de cabelos esvoaçantes, no vento cortante da noite.
Nossa, o pensamento foi longe aqui...O rádio tocando um blues. Mudo de estação, vou escutar música popular brasileira. É bom que as letras em português me dão ocasião de pensar de outro jeito, de acompanhar as histórias e os raciocínios. Tem coisa que a gente nunca entende, desses letristas metidos a refinados, mas é bom também. Aí a gente fica mais poesiado, admira aqui o luar ao embalo da melodia, a cabeça planando em esferas outras. É assim. A noite fica mais amena. A noite que pode trazer o medo, o terror às vezes.
Trabalhar de noite requer da gente saber enfrentar os silêncios. Pode ser fugindo, pode ser enfrentando só um pouco. Trabalhar à noite não é pra qualquer um. De jeito nenhum! O cara tem que ter cabeça boa pra trabalhar à essa hora, trocar o dia pela noite, ir dormir na hora em que o povo tá acordando. Ademais, é aquele negócio, a noite pode ser medonha, pode mexer com a cabeça do cabra. Parece que dá uma angústia na gente, a gente pensa agoniado. Não sei, que eu nunca entrei nessas clínicas de coisas da cabeça, mas tenho comigo que os médicos dos malucos devem ter bastante conhecimento de histórias envolvendo vigilantes. Eu sou um cara tranquilo, graças a Deus. Mas devo admitir que bate uma melancolia na gente. Melancolia de vigilante, de gente que fica sozinho a noite inteira, só ouvindo os pequenos barulhos da noite, às vezes o barulho do silêncio, ou dos grilos no mato.
Aí a gente tem que ligar o rádio, encontrar um locutor com voz alegre, pra distrair. Vez ou outra trago uns livros aqui, umas revistinhas. Fico pensando em mulher pelada, trago uma caixa de bombons, um pacote de balas de goma. Ser vigia é saber fugir do silêncio pertubador da cabeça da gente.
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05/10/90
Agora são três horas da manhã. O tempo tá agradável. Passamos um pouco de frio no inverno, o que era de se esperar. De lá pra cá o tempo não nos tem importunado. São tranquilos os plantões. Hoje saí bastante pra esticar as pernas, não queria ficar sentado. Até cinco minutos atrás eu tava ali na frente tomando um pouco do sereno da noite. Comi umas bolachinhas de chocolate e tomei café. Fiquei olhando uns vira-latas que deram pra ficar por aqui agora. O Sergião tava tirando um barato aqui. Disse pra eu não conversar com os cachorros, que eles não iriam me entender. Esse Sergião é uma figura!
Tava sentindo cheiro de borracha queimada na rua. Parece vir do lado do morro que tem aqui perto. Hoje é sexta feira, era pro ar estar cheirando a churrasquinho, da turma que fica nos bares tomando cerveja e comendo uma carninha. Mas não.
A Sílvia me preparou uma marmita de macarrão parafuso com salsicha ao molho de tomate. Não consegui comer. Foi bater a fome só agora e fiquei nas bolachinhas. A Sílvia hoje tava boa, atenciosa. Me beijou na testa de tarde. Me deu outro beijo agora à noite. Fiquei esperando ela pedir dinheiro. Acho que pensei mal da Sílvia.
Agora escrevo aqui pra fazer uma hora. Em trinta ou quarenta minutos desço pra olhar a fábrica. Vazia, silenciosa, as luzes no esquema de contenção. Deixam cerca de um terço delas acesas só. Passo entre as máquinas imaginando a loucura que deve ser de dia aquilo ali. Os operários transpirando no calor do dia, o barulho chato das engrenagens, os soldadores empunhando seus maçaricos.
A fábrica aqui é de peças automotivas. Nunca trabalhei com isso. Aqui na firma entrei para a função da vigilância. O lugar é grande, com máquinas e apetrechos de valor. Precisamos garantir que nada saia do lugar enquanto a linha de produção fica inoperante. De manhã entregamos pros encarregados dos operários, que dão uma olhada pra ver se tá tudo ok. É essa a nossa função aqui.
Daqui a pouco amanhece o dia. Quero tomar um café de máquina na padaria. Dia desses sonhei com esse café. Por falar em sonho, ontem sonhei que me mudava de casa e ia morar num apartamento de décimo quinto andar. Ficava angustiado. Não tanto pela altura, mas com medo de ser atraído a me lançar da janela. Me dava uma vertigem...Estranho. Logo mais chega o Tarcísio pra me render na guarita. Hoje parece dia de sol. Tá claro o céu. Aposto que vem sol aí.
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30/10/1990
O vento tá uivando lá fora, me lembrando filmes de suspense. Meio da madrugada. Não tem uma viva alma na rua. O vento empurra as folhas das árvores como se fosse outono. Estou ansioso pelos passarinhos. Já garoou, a grama molhada. Esse tempo me entedia um pouco. Tô aqui lendo um jornal que deixaram na cabine. Caderno de economia. Ontem tinha um Notícias Populares. Joguei na lixeira quando deu minha hora. Era de dar embrulhos no estômago aquela porra. Prefiro ler sobre economia, mesmo sem entender muito. Mas eu me esforço.
O pessoal deve passar aqui no pátio e pensar que a gente mal sabe ler, como esses senhorzinhos nos pontos de ônibus que ficam perguntando que linha tá vindo lá na frente. Mas os putos pedem ginasial completo pra isso aqui. Mesmo sem planilhas a se preencher, sem livro de ocorrências, nada que envolva as letras.
O problema quando a gente não estuda muito é que confundem a gente com o pessoal que mal sabe assinar o nome. Não gosto disso. Me olham como se fosse um ignorante. Se acham uns doutores...mas são incultos, rasos e fúteis.
Jurei pra Ritinha que ela vai se formar em faculdade, e em faculdade boa, como os filhos do primo Jurandir. Não compensa essa vida de ficar tratando de cuidar da propriedade dos milionários, com os fudidos enchendo o saco da gente, porque os doutores colocam uma meia dúzia de fudidos como a gente só pra encher o nosso saco. Nossa, tô meio revoltado hoje. Quase dei uma bordoada na Sílvia. Deus que me perdoe. Perdi o sono. Apareceram olheiras, a cachorrada latia sem parar, uma vizinha resolveu escutar rádio alto, umas músicas de mal gosto.
Tô numa fase difícil, preciso reconhecer. E o tempo lá fora continua entre o tenebroso e o taciturno. Apago um cigarro e acendo outro. Já foi quase um maço em umas seis horas de plantão. Talvez fosse mesmo o caso de procurar um outro emprego, voltar a trabalhar de dia, em coisa produtiva, ao invés de ficar aqui chutando pedregulho na cerca, emputecido de ver o tempo passar assim tão sem razão de ser.
Pode ser que surja alguma coisa. É difícil, mas pode ser. Quando eu trabalhei na peixaria, muitos anos atrás, moço novo, pique de dar duro sem sentir muito as consequências, a gente tinha aborrecimento. Mas era mais em se tratando de aguentar gente chata. Aqui não tem nem quem aguentar. É bem diferente. Fico aqui sentado e descansado, e disso acho que não posso mesmo reclamar. Mas tem seu preço. Na peixaria tinha o cheiro ruim. Que a gente acostumava uma hora. Mas tinha moças bonitas passando, tinha o movimento da rua. Colocando assim numa balança, acho que era mais vantagem aquele tempo. Saía com a Sílvia pra passear no bairro dos japoneses, comer espetinho de camarão, ou ver o pôr do sol no lago, jogando comida pros patinhos. Dormia com a Sílvia, acordava com a Sílvia. Na peixaria quando muito tinha dois ou três minutos de silêncio, onde ficava olhando pros azulejos portugueses que formavam um mosaico tosco mas simpático. O tempo corria logo. Em tempo assim, de horário de verão, a gente jantava com dia ainda claro, tomava cerveja no bar do Zé Cláudio, vendo os homens contar vantagem com suas cartas de baralho à mão, ou apreciando um jogo de mesinhas de sinuca caindo aos pedaços. A alegria singela dos trabalhadores em hora de descanso. Sempre um bebum pra contar uma história engraçada, pra distrair ou até amolar a gente. E a gente ria, esperava sair um tira-gosto, tomava umas pingas, fazia hora, pra chegar em casa com o jornal da noite, não ter que disputar a tv no horário da novela. Eu me dava melhor com o tempo naquela época, com as pessoas, comigo mesmo.
Sempre um ótimo texto! Embora eu valorize a literatura, gostaria que a luta atual dos trabalhadores não fugisse de nossas preocupações!
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