segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Entre identidades e identitarismos

☆ Breve comentário marxista-freire-gramsciano sobre o tema


O que é bom pra mim talvez não seja bom pra fulano, beltrano ou sicrano. O que você considera belo ou justo talvez não seja tão belo e justo na opinião do seu vizinho, colega de trabalho, ou de quem quer que seja. E isso vale pra tudo e é absolutamente natural. Desde pequenos nos habituamos a lidar com o contraditório. E não se trata aqui de advogarmos uma filosofia pós-moderna e relativista. Pelo contrário, trata-se de reconhecermos a legitimidade da opinião divergente, ao passo em que reconhecemos a singularidade da pessoa, suas especificidades materiais, de meio, cultura, suas impressões subjetivas e sua história. E aí poderemos pensar x sobre determinada pessoa ou situação, à medida que outros pensarão y, ou z, e assim sucessivamente, dependendo da complexidade do quadro analisado e de suas possíveis interpretações. O que cabe, e isso é essencial pontuar, é que haja a possibilidade democrática do pensamento, do posicionamento diante de qualquer coisa. Numa sociedade de regime político democrático, há que ser assim. Não há como ser diferente sem que haja uma enorme contradição de termos. Cientificamente, racionalmente, tendo em conta as circunstâncias, o contexto, os diversos fatores condicionantes de um caso, tem-se maiores condições de representá-lo com fidedignidade. Mas em ciências humanas as coisas evidentemente não são matemáticas. Como dizia, há o caráter subjetivo intrínseco a ser ponderado e levado em consideração. 

Um negro pode falar com mais propriedade sobre racismo, por exemplo. Pelo menos sobre suas próprias experiências, que estão longe de serem as experiências de vida das pessoas brancas. Não quer dizer que ele esteja mais certo, ou que só ele possa expressar opinião ou análise sobre o assunto. Longe disso. A questão não é o lugar de fala como balizador epistemológico. A questão é a escuta como um processo humanizador, capaz de despertar a empatia. E não só isso, mas também a busca da materialidade do tema, de uma base empírica sólida na teorização e no exercício de elaboração do tema em sociedade. 

E falo isso com o claro intuito de me deslindar do campo dos que se posicionam pelo identitarismo. Tenho veementemente feito isso ao longo dos últimos anos. 

O identitarismo peca porque coloca como centro a questão da identidade, seja cultural, de raça, gênero ou opção sexual. E isso tem ocorrido muito. É bem característico do espírito do tempo, neoliberal e individualista, anti-marxista e anti-moderno no sentido que se desloca do eixo da estrutura de classes em que está colocado o modo de produção.




Insisto, o que norteia os marxistas é o método da práxis, do pensamento articulado entre a base produtiva e social com o conceito crítico e dialético. Mais objetivamente, falando em termos de identidades, implica em observar com atenção as diversas demandas, advindas das mais diversificadas experiências, tratá-las de maneira ética, dando espaço para que tenham voz na sociedade, progressivamente, nas instituições, meios de comunicação, como sociedade que caminha, paulatinamente, e em meio a uma acirrada disputa hegemônica. Entendendo e possibilitando entender que, como dizia no início, nossos posicionamentos são distintos, nosso lugar no mundo, nossa visão de mundo, enfim, em tudo ou quase tudo existe distinção. E que há de haver, por questão de respeito e de humanidade, uma interlocução sadia. 

Além de outro fato mencionado acima, que pensamos melhor quando pensamos juntos, e que cada caso é um caso, cada experiência traz em si algo de único e inigualável. A sociedade tem que levar isso em conta.

Não será tal predisposição uma carta branca a obscurantismos e similares no convívio social. A menos que se trate de religião ou pensamentos metafísicos de caráter individual e sem relação direta com as questões sociais. Porque cada um é livre para escolher entre as também diversas narrativas a respeito da origem da vida e do sentido do universo. De resto, estamos em sociedade e um bom convívio, harmonioso e sem violência, deverá sempre ser imperativo. Ou seja, desde que não se atente contra os direitos humanos fundamentais, os direitos civis e democráticos dos cidadãos, cada um que pense como bem entende. Um contrato social moderno basilar estimulará este modo de vida. E, no socialismo, superada a dirigência política burguesa, os homens se aprimorarão em uma cogestão democrática da vida.

Por isso é que por agora é imprescindível lutar para que se implementem políticas públicas que garantam acesso à educação inclusiva, que dê aos sujeitos os atributos necessários para o desenvolvimento de um senso ético e comunitário. Freireanamente falando, fazendo aqui honras ao educador brasileiro que extraordinariamente pautou a educação pela via emancipatória, humanística, que tão bem pontuou a necessidade de se garantir aos sujeitos a condição de automamente pensar o mundo, e poder assim discordar, criticar, propor quebras de paradigmas, e para o seu lugar propor novas bases. 

Fazemos isso à medida em que nos educamos em sociedade para o convívio com o diferente, para a compreensão da alteridade. Isto é, à medida em que superamos nossos impulsos infantis de intolerância com tudo aquilo que de alguma maneira nos contraria. 

Isso não é nada simples, porque tudo que se move sob os céus é perpassado por relações materiais e de interesse. É um trajeto histórico notável e pertubador, que todavia tem se encaminhado para a progressiva conquista de direitos, muito embora à custa de muita luta, e passando por algumas etapas de retrocessos, como a atual, em que nos batemos contra os capitalistas na luta por direitos trabalhistas básicos, ou por serviços públicos também básicos.

Mas enfim, hoje se sabe bem que as diferentes características das pessoas lhes proporciona experiências que tanto podem ser diferentes das nossas, como que podem ser causa de sofrimento. Não é só a classe social que conta, ok. Da segunda metade do século passado pra cá a sociedade evoluiu muito nesse quesito. Tem sido assim com a questão do negro, com a questão  dos homossexuais, dos indígenas, etc. E cabe observar que essas pessoas, como sujeitos de direito, devem ter suas peculiaridades asseguradas contra qualquer manifestação de preconceito ou violência. É para isso que se tem produzido teoria decolonial, que se tem pensado as especificidades do sul global, para a produção de um conhecimento que tenha horizonte ético e político consolidado, um conhecimento que no limite nos ajudará na maior das conquistas, que será a emancipação deste ciclo de exploração do homem pelo próprio homem. O socialismo virá. Uma hora ele vem.





 





sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O que será da política brasileira nos próximos anos?


Segundo turno, eleição pra presidente em 2014. Vocês se lembram? Dilma estava fazendo um governo ruim. Mas o adversário dela era um playboy safado, que todo mundo sabia que não prestava e que queria assumir a presidência da república pra voltar com um neoliberalismo ainda mais violento do que o projeto que estava em curso. Pois bem, mesmo sendo um elemento altamente suspeito, um picareta de marca maior e com projeto maldoso de governo, aquele cidadão mineiro residente no Rio, um famigerado playboy usuário de droga e agressor da mulher, cínico, hipócrita, mentiroso, dissimulado maldito, teve mais de 48% dos votos, perdendo pra Dilma por uma estreita margem de 3 milhões e meio de votos. 

Notem que a polarização política era classista e muito acirrada. No entanto, não havia movimentação de extrema direita declarada. De 2018 pra cá que a situação tem evoluído neste sentido. 

O meu medo é que agora, nesta eleição de 22, tendo o Brasil passado pela trágica experiência de uma gestão de extrema direita, genocida inclusive, o país se consolide agora num modelo extremamente semelhante ao regime político norte-americano, com uma oposição de praticamente duas correntes políticas apenas: uma de extrema direita, e uma de centro-direita. Sim, o Partido Republicano é de extrema direita e o Partido Democrata é de uma direita mais amena. Aí a esquerda americana precisa toda eleição declarar voto útil no menos pior, pra não ver os malucos republicanos voltando ou permanecendo na Casa Branca.

E o meu medo é justamente porque mesmo o pior governo da nossa história tem tudo pra chegar agora nesse marco dos 48%, que o desgraçado direitista do Aécio já chegou 8 anos atrás. É uma loucura, mas é Brasil, é o regime político dos ricos, onde eles tem uma série de fatores pra manipular o eleitorado e pra mexer ideologicamente com a cabeça da população. 

Então o que seria uma polarização esquerda x direita se encaminha pra polarização extrema direita x centro-direita, ou centro. De esquerda não vai ser. O Lula vai governar acuado pelo sistema, com a sombra do Alckmin, do mercado, do centrão, do imperialismo, etc. Tomara que ele não ceda pras privatizações. Se estancar a sangria das privatizações, já está ótimo. 

Mas e o que será do bolsonarismo, este fenômeno neofascista assustador que deixaram se gestar no Brasil? O Xandão vai colocar o genocida atrás das grades? O STF vai pegar as maracutaias da milícia? Não sabemos. Se sim, aí o movimento reduzirá bastante, dando ensejo para uma nova conformação do bloco direitista. Se não, aí a coisa se consolida nessa polarização muito semelhante à americana. 

E isso seria extremamente deletério para o Brasil. 

Temos também que ver como vai evoluir a direção política pós Lula. O homem já disse que não será candidato à reeleição em 26. Outra liderança surgirá. Muito provavelmente uma sucessão encaminhada pelo próprio Lula. Sem corrida política pelas bases dos partidos, o que também é sinal da apatia nos movimentos sociais e na esquerda como um todo. 

Ou seja, os prognósticos para o próximo período são ruins. Não existe a curto e médio prazo a expectativa de uma movimentação política em direção a um projeto emancipatório ou pelo menos de desenvolvimento nacional. 

Alguém poderá dizer: Ah, mas, Mário, o Lula vai apontar pra isso, com o Lula o Brasil vai ser gigante, se industrializar e tal. Creio que é muita dose de otimismo pensar assim. As coisas aqui são extremamente complexas, geoestrategicamente falando, das correlações de força entre classes, dos interesses econômicos em jogo, da ausência de uma direção política operária, da própria natureza política do PT, inclinada à conciliação, disposta a encurtar o programa pra contar com o consentimento do andar de cima. Enfim, o cenário é de disputa contra a extrema direita, pelo mínimo de dignidade e por um regime que se mantenha democrático apesar do tempo da economia ser um tempo de profundos ataques aos trabalhadores. Não temos horizontes políticos de emancipação. Não nos tem sido permitido um imaginário político revolucionário. Isso é sintomático nas juventudes, observem. Os jovens ou estão circunscritos às ideologias identitárias e movimentistas, com coletivos disso e daquilo, que não se entendem como classe trabalhadora que aspira ao poder político; ou estão por aí atrás de algum consolo existencial ancorado na forma mercadoria. 

São tempos tenebrosos pra nação.








sexta-feira, 7 de outubro de 2022

O pensamento político de Maquiavel

(Que seu professor de história no ensino médio provavelmente não te falou).



Tido como o criador das ciências políticas, Maquiavel é um pensador da Renascença que antecipa pontos importantíssimos que seriam depois trabalhados por teóricos do quilate de Hobbes e Marx. A questão do contrato social, que seria trabalhada no século seguinte por Hobbes, Locke e Rousseau, e a questão da luta de classes, que seria super-elaborada por Marx no século 19, são questões determinantes do pensamento político maquiavelino. Apesar de ter entrado para a história com o sinônimo maquiavélico, que significa o desejo despudorado e antiético pelo poder político, Maquiavel tinha um pensamento bastante democrático e inclusivo. Prova disso são seus principais escritos: O Príncipe e Discurso para a primeira década de Tito Lívio. 

Ao longo de sua obra O Príncipe, o autor se dispõe a traçar os modos como um governante pode permanecer no poder. E estrutura sua escrita recorrendo a exemplos históricos, e colocando de modo pragmático quais seriam as astúcias e artimanhas de um homem disposto ao poder político. Mas não por isso Maquiavel prescinde de considerações morais e éticas. Com efeito, ao longo do texto lastima os exemplos tirânicos e faz questão de elogiar os governantes humanistas. 

Para entender Maquiavel é necessário compreender o homem do renascimento. Maquiavel era um moderno, que vinha de um rompimento com o mundo medieval e suas concepções teocêntricas de mundo e sociedade. Para Maquiavel importavam os valores de nobreza, hombridade, virtude, etc, mas era necessária também uma análise fria da política. E política são interesses em jogo. Os homens se unem em sociedade por interesse de auto-preservação, optam pela vida coletiva para fugirem de eventuais violências, mas precisam determinar para essa sociedade um código que resguarde internamente seus cidadãos, para que o convívio seja minimamente harmonioso e para que a vida siga funcional para todos. O homem para Maquiavel não é um ser naturalmente bom, mas um sujeito de interesses, e que em busca de seus interesses fará o mal. Cabe então que a sociedade civil se conforme politicamente para precaver a tirania e o despotismo, a violência e a injustiça. 

Há modos variados de se chegar a isso, distintos regimes políticos que podem ser empreendidos, mas que em suma precisam nascer de um pacto que se arranjará pela política. E a política é potência, o direito é potência, como diria o filósofo Espinosa.  Esse conceito é determinante em Maquiavel. As forças políticas em jogo se arranjarão de modo a estabelecer esse poder político no qual a sociedade encontrará seu funcionamento. 

Os grandes da sociedade naturalmente vão querer impor seus desejos, ao que o povo fará objeção, porque há os que querem oprimir e do mesmo modo há os que não querem ser oprimidos. E haverá então um mecanismo de contrapesos. Contra os interesses dos poderosos, haverá a contramola que resiste. A sociedade é imersa em interesses, em interesses materiais. O rico desejará acumular, e o pobre lutará por não passar fome. O poderoso tentará permanecer no poder e usufruir deste poder, e o povo fará o possível para não se ver ultrajado e explorado. 

Se o governante for sábio, se for arguto e perspicaz, tratará o povo de forma benéfica, de modo a não ceder ensejo para ocasiões de descontentamento e rebelião. Como diz em O Príncipe, o governante pode se impor pela força, mas é preferível que seja amado. 

E deste modo a astúcia do governante será provada por uma constituição civil que estabeleça um saudável equilíbrio entre as forças políticas, entre os grandes e o povo. A participação do povo na política será importante para que este tenha seu espaço e encontre soluções para suas demandas, de modo que não se verá excluído, mas partícipe, e que não tentará por outras vias fazer cumprir o seu direito. A lei então tratará de consolidar uma sociedade harmoniosa, onde os grandes serão impedidos de usurpar o povo, e este, conciliado com as frações poderosas por meio de um entendimento político, permanecerá pacífico.

Poderá haver tensionamentos políticos nas altas esferas do poder, com conspirações palacianas e tentativas de golpe, mas que sempre encontrarão no povo resistência, pois que este batalhará por seu governante. 

De tudo isso, depreendemos que o pensamento político de Maquiavel é bastante democrático, e suas concepções e análises  são bastante avançadas para sua época. A análise de base material, apesar dos laivos moralizantes e de resquícios supersticiosos do pensamento, é a análise realista de antagonismos sociais postos, que, como Marx assinalará depois, é histórica e dialética. A história da sociedade é a uma história de luta de classes. E o que determina o poder político é a força. 

Para os homens do tempo de Maquiavel, a fortuna era elemento significativo das narrativas e do entendimento. Bem como a virtú. Ao longo de seus textos vamos nos batendo com essas concepções de boa ou má sorte, de auspiciosidades, ou de considerações que podem parecer muito moralistas, mas tais concepções ladeiam uma concepção de teoria da política muito progressiva para o seu tempo, que é eminentemente material e realista, pragmática e de aspiração democrática.




* Fortuna: sorte ou azar, o destino e suas vicissitudes. 

* Virtú: virtude, mérito de um pensamento perspicaz e sábio. 





quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Cuba e o Cameraman


Ontem tava procurando coisas interessantes na Netflix e me deparei com esse filme. De 2017. Desconhecia sua existência. Peguei pra ver e achei realmente muito bom. 

É um documentário realizado por um jornalista norte-americano, Jon Alpert, que começa a viajar pra Cuba aos vinte e poucos anos, em 1975. Ao longo dos anos ele volta à ilha muitas vezes e visita as mesmas pessoas, pra saber como elas estão. E nisso vai fazendo amizades. Por mais de 40 anos Alpert acompanha essas pessoas, uma delas o comandante Fidel Castro, com quem Alpert estabelece também uma bonita relação de amizade.

É um filme muito bonito, muito comovente. Além de tratar do desenvolvimento da situação política no país, claro, ao longo de praticamente todos os períodos da revolução cubana, o filme tem esse olhar sobre o tempo, o envelhecimento dos personagens, suas dores, suas dificuldades, seus altos e baixos, em excelentes ensejos para a reflexão existencial.

Cuba e o Cameraman é um elogio ao magnífico povo cubano, ao seu espírito revolucionário, de soberania e de grandeza. Um povo que soube contornar os momentos mais graves e assustadores de um embargo econômico permanente, um embargo criminoso e extremamente vil. Com o fim da União Soviética, na década de 90, este povo precisou se reinventar e se sustentar com o turismo, sem abandonar a revolucionária e gloriosa trajetória de insubmissão ao monstro imperialista americano. 

Praticamente todos os personagens do filme expressam essa grandeza moral, essa disposição para a luta e para a autodeterminação cubana. São personagens que expressam a simpatia e a alegria de seu povo, sua força e sua humanidade. 

Os personagens mais emblemáticos são três irmãos velhinhos que trabalham como camponeses. De uma energia absolutamente impressionante. O retrato perfeito da simpatia cubana e da resistência de seu povo. Além de Fidel, claro, um homem que a câmera de Alpert revela ser muito mais que o carismático líder político e cérebro da revolução. Fidel se revela cordial e sensível. Um homem verdadeiramente admirável e por quem o jornalista genuinamente se afeiçoa.

Uma das cenas mais bonitas do documentário é o jornalista carinhosamente beijando a testa de Fidel já velhinho, poucos meses antes de sua morte. 

Recomendo bastante esse filme. Não percam. É o tipo de filme que não podemos deixar de conferir. Uma pérola. Uma história imperdível da grandeza da revolução cubana e de seus personagens, sejam figuras públicas ou anônimos homens do povo.

Viva a revolução cubana!

O sentido da vida é se insurgir contra as injustiças do mundo.




terça-feira, 9 de agosto de 2022

Universal do reino do pesadelo


Entrei numa Universal domingo. Vai vendo, gente. Entrei na Universal da avenida Ana Costa, em Santos. Tava com tempo, passando pela avenida, e fiquei curioso de entrar e ver o culto.

Já são umas três ou quatro vezes que entro pra observar. Fico uns 20, 30 minutos. A sensação é quase sempre a mesma. Sinto que aquele pessoal é perigoso. Me sinto mal.

Eles deixam vários obreiros ao lado dos bancos. Os caras ficam como policiais ali só de olho no movimento das pessoas. Aí você levanta pra ir embora e vem um obreiro correndo atrás, te puxando pelo braço, perguntando o porquê de vc ir embora. É assustador.

Já assisti várias vezes os cultos pela tv, nesses canais de tv aberta que a Universal insere programação. 

A análise feita de uma experiência presencial é ainda mais assustadora e corrobora o que qualquer pessoa mais observadora sabe. 

Tudo ali é muito teatral. Extremamente pensado pra gerar um choque emotivo. A iluminação, o som, tudo. O modo como o pastor conduz o evento, alternando tons de voz. Aí vocês tem que entrar um dia pra ver de perto. Tudo milimetricamente articulado pra induzir o transe. Aquilo ali é mais catártico que qualquer cinema ou teatro. 

O sujeito simples chega ali e é tragado pela atmosfera da lavagem cerebral, seja pela encenação ritualistica ou pelo discurso. Um discurso captador de gente tonta, gente que cai feito patinho no esquema. 

É muito triste. São milhões e milhões de pessoas nessa roubada.

E, assim, você entra lá e você vê como a coisa é o retrato religioso nítido do tempo que a gente vive. É a religião do neoliberalismo. Desconheço um culto que seja tão afeito à lógica de mercado. A Universal é um shopping da fé. Da fé mais destituída de senso ético e humanista, claro. É um templo de adoração à mercadoria, fetichismo brabo, com um pouco só de sentido religioso e metafísico.

Façam essa experiência um dia, entrem e passem meia hora num antro desses. É interessante pra observar como a experiência religiosa num lugar desse serve para alienar e descerebrar totalmente o cidadão. Pra observar o fundo de poço em que chega o neoliberalismo. 

A religião pode se tornar muito problemática. Poderia aqui tecer várias considerações e tal. Mas quero me ater nisso, o quanto pode haver de degeneração nesse encontro de religião e neoliberalismo. A Universal é o retrato fiel da barbárie social e política das últimas décadas. Barbárie mesmo. Besteira querer atenuar o peso da situação. É barbárie, franca e abertamente.




sábado, 25 de junho de 2022

Torre das Guerreiras e Outras Memórias


Vocês lembram da história da chamada torre das donzelas, no antigo prédio do presídio Tiradentes, que serviu de cárcere para as mulheres presas políticas na ditadura? A professora Ana Maria Estevão acaba de lançar um livro sobre o tempo em que lá esteve, processada pelo estado brasileiro em 1970.

Sou aluno da Ana Maria na universidade e portanto suspeito pra falar, mas quero elogiar o livro dela. Estive no lançamento aqui em Santos há 15 dias atrás. Um negócio comovente demais. Chorei pra caramba lá. Todo mundo chorou. Fazia um frio cortante na Estação da Cidadania, o tempo tava fechado. Cheguei lá e tinha música ao vivo, chazinho, café. Ambiente bem acolhedor. O pessoal homenageou a Ana Maria e depois ela própria fez a apresentação do livro. Não pude ler imediatamente mas o fiz ontem, 4 horas mergulhado no livro. Não dava pra parar de ler. É realmente muito interessante e bonito.

Tem a parte dolorosa e sombria da tortura, porque o livro é sobre repressão e ditadura militar. E a coisa era muito feia nos anos de chumbo. Os relatos da tortura são tenebrosos. Mas o livro está longe de se resumir a isso. É um retrato muito bem feito de uma época, porque a história da Ana Maria é uma porção de histórias do povo brasileiro nas décadas de 50, 60, 70 e 80. História de migrantes nordestinos, trabalhadores simples do povo, moradores dos subúrbios das grandes cidades, histórias da religiosidade popular do brasileiro, do surgimento da Teologia da Libertação, dos movimentos estudantil e operário, do maio de 68, etc, e, o ponto culminante, a luta política pela redemocratização, os movimentos políticos de vanguarda, a guerrilha e a clandestinidade. E depois as derrotas, as prisões, torturas, exílios e a morte de muitos daqueles que decidiram combater os milicos. É uma história dura, de muita dor e muito trauma, mas, como eu dizia, o livro da Ana Maria fala também dos pontos positivos, das histórias bonitas e engraçadas. São muitas histórias engraçadas. O livro transborda histórias engraçadas, e histórias de afeto, de humanidade, de amizade. É um livro muito bonito. A Ana Maria é uma mulher admirável, muito inteligente, muito reflexiva e muito afetuosa. 

Esse livro Torre das Guerreiras, com prefácio da Dilma Rousseff, que dividiu cela com a Ana Maria por quase um ano no presídio Tiradentes em São Paulo, é um livro que precisamos divulgar e propor a leitura, sobretudo aos jovens, às novas gerações que pouco ainda sabem sobre esse período da nossa história. É a história da Ana Maria, mas é também a história do povo brasileiro, de uma experiência política e social muito rica e intensa, que a Ana Maria como intelectual reflete com agudeza e correlaciona com os acontecimentos do mundo no período, de suas viagens no exílio, suas impressões e meditações.

Não deixem de ler esse livro!




sexta-feira, 25 de março de 2022

O caso do "mendigo" em Brasília

As coisas não são tão simples às vezes 


Meio mundo discutindo aí na Internet a situação do morador de rua que transou com a moça casada em Brasília. Pode até parecer um absurdo ou um distracionismo imbecil discutir isso em meio a tantas questões periclitantes da economia e da política, e inclusive da guerra na Ucrânia. Mas é uma questão do momento e envolve análises sociólogicas e psicológicas. É uma questão polêmica, não se trata somente de coisa trivial e manchete de jornalismo marrom. É uma situação que reflete o mundo que vivemos e creio que merece alguma atenção em virtude da proporção que ganhou nos últimos dias. 

O que acho mais sinistro e triste dessa situação é ver que aparecem pessoas que se dizem arejadas e de esquerda defendendo a punição desse moço morador de rua. E isso acho muito sintomático de um feminismo identitário e anti-dialético, burguês, liberal e alienado das prementes questões sociais envolvidas.

É um absurdo a tentativa de criminalizar esse morador de rua. O sujeito tá em vulnerabilidade, alcoolatra, perceptivelmente precisando de ajuda. Mas ele explica bem na entrevista, e em depoimento devem ter percebido isso: ele achou inusitada a abordagem da moça, explicou que era morador de rua e tal. A mulher o seduziu. Uma mulher bonita, aparentemente normal. Ele que foi enganado. Porque pelo visto ele não sabia se tratar de mulher casada, muito menos de mulher psicótica.

A situação toda é embaraçosa. A moça tá sendo acolhida, o marido pelo jeito entendeu a situação e tá cuidando bem dela. A mídia se valeu da atipicidade da coisa pra ganhar views e agora o morador de rua chegou até a dar entrevista. É uma história muito doida. Mas, repito, é um absurdo quem diz que esse rapaz merece cadeia. Com todo respeito. Esse cidadão precisa de serviço social e psicológico. Precisa ter garantidos os seus direitos e a sua integridade.

Essas histórias malucas que vemos por aí podem dizer muito sobre nós, sobre o que nos tornamos como sociedade, nossos preconceitos e debilidades civilizacionais. É só ter uma disposição mais semiótica e crítica pra notar as contradições do modo de produção e as consequências patológicas nas subjetividades e no corpo social. Estamos adoecidos de neoliberalismo. O moço morador de rua, a moça casada e todo mundo que vê nessa situação uma ocasião de vomitar simplismos e preconceitos.




domingo, 20 de março de 2022

Diários de um vigilante

Da série Crônicas da Vida Operária 


                                     ☆



25/09/90


Hoje cheguei no serviço meio em cima da hora, atrasado por culpa da Sílvia. Ela quis porque quis que eu a levasse na casa de uma amiga. Fui. A contragosto, receoso de me atrasar. Tive sorte de bater o cartão com uns minutos de antecedência. Corri lá. Fiz um trajeto complicado, torcendo pros semáforos me ajudarem, pensando que o seu Manoel me deu uma bronca das bravas no dia que a Ritinha foi parar no hospital. O cara é durão. A gente fica ressabiado. Melhor não criar caso. 

Aqui na firma as coisas andam como sempre. Nada de muito novo. Dia desses o Sergião teve outro tremelique. O mano é epilético mesmo. Confirmadas nossas suspeitas. Ano passado convulsionou aqui. De madrugada, eu e ele no turno. Não falei nada pra ninguém. Essa semana deixei ele tranquilo, disse que não conto pra ninguém. Só pedi que procure o médico, disse que é bom estar medicado e tal. Desenrolei uma conversa bacana aqui com ele. O Sérgião é um cara gente boa. E mesmo que não fosse, seria sacanagem falar pro patrão uma coisa que talvez o prejudique. Sempre pensei assim nas coisas do trabalho, e foi assim na vida. Na época da escola os caguetas já me soavam o tipo mais desprezível. E é bom também ajudar as pessoas. Princípios...princípios...É bom tê-los. 

O Sergião cobre o setor sul. Fica lá averiguando de hora em hora, volta e senta na guarita rente ao muro da esquina. De lá me faz sinal de luz com a lanterna. Qualquer problema me chama no rádio. E eu faço mais ou menos a mesma coisa, só que do lado de cá. Às vezes a gente caminha até o meio do caminho das guaritas e bate um papo rápido. O tempo de um cigarro, coisa rápida mesmo. Ficamos lá, observando a rua pelas frestas da cerca. Menos em dias de chuva. Na chuva a gente evita até a averiguação de praxe. Nos entocamos nas guaritas e ficamos ouvindo rádio. 

O rádio é um bom companheiro de madrugada. A gente dorme um pouco de vez em quando, mesmo não podendo. O certo é não dormir. Somos pagos pra vigiar, né. Não que eu me importe muito com a integridade do patrimônio. Zelo pelo meu ganha-pão. E se é preciso ficar acordado, a gente fica. Aí o rádio distrai a gente, além de dar as horas e ajudar no serviço. E ouvindo rádio me sinto de alguma forma ligado às pessoas. Sei que estão ouvindo por aí, em outros bairros, nessa cidade imensa, e fora da cidade, do estado. O pessoal liga na estação, pede música. O locutor vai citando os lugares e eu vou imaginando, criando mapas na minha cabeça, pensando como são os rincões desse país, ou como são as pessoas por trás dos nomes. Rabisco aqui o papel, pego do caderninho e vou escrevendo, lembrando das coisas, inventando na minha cabeça o que teria sido se as coisas não tivessem acontecido como aconteceram na vida. O pensamento vai muito longe.

Hoje fui levar a Sílvia. E se não tivesse levado? E se tivesse chegado aqui vinte minutos antes? E se tivesse vindo pela avenida da estação ao invés da avenida que meio por acaso peguei no apuro da hora? Será que isso de alguma forma me alteraria a percepção do mundo? Talvez o trajeto da avenida da estação me desse mais possibilidades de refletir a vida. Ver as pessoas com suas malas, os carregadores vindo com o uniforme amarelo gema de ovo, o chapeuzinho engraçado à moda antiga; as moças de cabelos esvoaçantes, no vento cortante da noite. 

Nossa, o pensamento foi longe aqui...O rádio tocando um blues. Mudo de estação, vou escutar música popular brasileira. É bom que as letras em português me dão ocasião de pensar de outro jeito, de acompanhar as histórias e os raciocínios. Tem coisa que a gente nunca entende, desses letristas metidos a refinados, mas é bom também. Aí a gente fica mais poesiado, admira aqui o luar ao embalo da melodia, a cabeça planando em esferas outras. É assim. A noite fica mais amena. A noite que pode trazer o medo, o terror às vezes. 

Trabalhar de noite requer da gente saber enfrentar os silêncios. Pode ser fugindo, pode ser enfrentando só um pouco. Trabalhar à noite não é pra qualquer um. De jeito nenhum! O cara tem que ter cabeça boa pra trabalhar à essa hora, trocar o dia pela noite, ir dormir na hora em que o povo tá acordando. Ademais, é aquele negócio, a noite pode ser medonha, pode mexer com a cabeça do cabra. Parece que dá uma angústia na gente, a gente pensa agoniado. Não sei, que eu nunca entrei nessas clínicas de coisas da cabeça, mas tenho comigo que os médicos dos malucos devem ter bastante conhecimento de histórias envolvendo vigilantes. Eu sou um cara tranquilo, graças a Deus. Mas devo admitir que bate uma melancolia na gente. Melancolia de vigilante, de gente que fica sozinho a noite inteira, só ouvindo os pequenos barulhos da noite, às vezes o barulho do silêncio, ou dos grilos no mato.

Aí a gente tem que ligar o rádio, encontrar um locutor com voz alegre, pra distrair. Vez ou outra trago uns livros aqui, umas revistinhas. Fico pensando em mulher pelada, trago uma caixa de bombons, um pacote de balas de goma. Ser vigia é saber fugir do silêncio pertubador da cabeça da gente.


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05/10/90


Agora são três horas da manhã. O tempo tá agradável. Passamos um pouco de frio no inverno, o que era de se esperar. De lá pra cá o tempo não nos tem importunado. São tranquilos os plantões. Hoje saí bastante pra esticar as pernas, não queria ficar sentado. Até cinco minutos atrás eu tava ali na frente tomando um pouco do sereno da noite. Comi umas bolachinhas de chocolate e tomei café. Fiquei olhando uns vira-latas que deram pra ficar por aqui agora. O Sergião tava tirando um barato aqui. Disse pra eu não conversar com os cachorros, que eles não iriam me entender. Esse Sergião é uma figura! 

Tava sentindo cheiro de borracha queimada na rua. Parece vir do lado do morro que tem aqui perto. Hoje é sexta feira, era pro ar estar cheirando a churrasquinho, da turma que fica nos bares tomando cerveja e comendo uma carninha. Mas não. 

A Sílvia me preparou uma marmita de macarrão parafuso com salsicha ao molho de tomate. Não consegui comer. Foi bater a fome só agora e fiquei nas bolachinhas. A Sílvia hoje tava boa, atenciosa. Me beijou na testa de tarde. Me deu outro beijo agora à noite. Fiquei esperando ela pedir dinheiro. Acho que pensei mal da Sílvia. 

Agora escrevo aqui pra fazer uma hora. Em trinta ou quarenta minutos desço pra olhar a fábrica. Vazia, silenciosa, as luzes no esquema de contenção. Deixam cerca de um terço delas acesas só. Passo entre as máquinas imaginando a loucura que deve ser de dia aquilo ali. Os operários transpirando no calor do dia, o barulho chato das engrenagens, os soldadores empunhando seus maçaricos. 

A fábrica aqui é de peças automotivas. Nunca trabalhei com isso. Aqui na firma entrei para a função da vigilância. O lugar é grande, com máquinas e apetrechos de valor. Precisamos garantir que nada saia do lugar enquanto a linha de produção fica inoperante. De manhã entregamos pros encarregados dos operários, que dão uma olhada pra ver se tá tudo ok. É essa a nossa função aqui. 

Daqui a pouco amanhece o dia. Quero tomar um café de máquina na padaria. Dia desses sonhei com esse café. Por falar em sonho, ontem sonhei que me mudava de casa e ia morar num apartamento de décimo quinto andar. Ficava angustiado. Não tanto pela altura, mas com medo de ser atraído a me lançar da janela. Me dava uma vertigem...Estranho. Logo mais chega o Tarcísio pra me render na guarita. Hoje parece dia de sol. Tá claro o céu. Aposto que vem sol aí.


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30/10/1990


O vento tá uivando lá fora, me lembrando filmes de suspense. Meio da madrugada. Não tem uma viva alma na rua. O vento empurra as folhas das árvores como se fosse outono. Estou ansioso pelos passarinhos. Já garoou, a grama molhada. Esse tempo me entedia um pouco. Tô aqui lendo um jornal que deixaram na cabine. Caderno de economia. Ontem tinha um Notícias Populares. Joguei na lixeira quando deu minha hora. Era de dar embrulhos no estômago aquela porra. Prefiro ler sobre economia, mesmo sem entender muito. Mas eu me esforço. 

O pessoal deve passar aqui no pátio e pensar que a gente mal sabe ler, como esses senhorzinhos nos pontos de ônibus que ficam perguntando que linha tá vindo lá na frente. Mas os putos pedem ginasial completo pra isso aqui. Mesmo sem planilhas a se preencher, sem livro de ocorrências, nada que envolva as letras. 

O problema quando a gente não estuda muito é que confundem a gente com o pessoal que mal sabe assinar o nome. Não gosto disso. Me olham como se fosse um ignorante. Se acham uns doutores...mas são incultos, rasos e fúteis. 

Jurei pra Ritinha que ela vai se formar em faculdade, e em faculdade boa, como os filhos do primo Jurandir. Não compensa essa vida de ficar tratando de cuidar da propriedade dos milionários, com os fudidos enchendo o saco da gente, porque os doutores colocam uma meia dúzia de fudidos como a gente só pra encher o nosso saco. Nossa, tô meio revoltado hoje. Quase dei uma bordoada na Sílvia. Deus que me perdoe. Perdi o sono. Apareceram olheiras, a cachorrada latia sem parar, uma vizinha resolveu escutar rádio alto, umas músicas de mal gosto.

Tô numa fase difícil, preciso reconhecer. E o tempo lá fora continua entre o tenebroso e o taciturno. Apago um cigarro e acendo outro. Já foi quase um maço em umas seis horas de plantão. Talvez fosse mesmo o caso de procurar um outro emprego, voltar a trabalhar de dia, em coisa produtiva, ao invés de ficar aqui chutando pedregulho na cerca, emputecido de ver o tempo passar assim tão sem razão de ser.

Pode ser que surja alguma coisa. É difícil, mas pode ser. Quando eu trabalhei na peixaria, muitos anos atrás, moço novo, pique de dar duro sem sentir muito as consequências, a gente tinha aborrecimento. Mas era mais em se tratando de aguentar gente chata. Aqui não tem nem quem aguentar. É bem diferente. Fico aqui sentado e descansado, e disso acho que não posso mesmo reclamar. Mas tem seu preço. Na peixaria tinha o cheiro ruim. Que a gente acostumava uma hora. Mas tinha moças bonitas passando, tinha o movimento da rua. Colocando assim numa balança, acho que era mais vantagem aquele tempo. Saía com a Sílvia pra passear no bairro dos japoneses, comer espetinho de camarão, ou ver o pôr do sol no lago, jogando comida pros patinhos. Dormia com a Sílvia, acordava com a Sílvia. Na peixaria quando muito tinha dois ou três minutos de silêncio, onde ficava olhando pros azulejos portugueses que formavam um mosaico tosco mas simpático. O tempo corria logo. Em tempo assim, de horário de verão, a gente jantava com dia ainda claro, tomava cerveja no bar do Zé Cláudio, vendo os homens contar vantagem com suas cartas de baralho à mão, ou apreciando um jogo de mesinhas de sinuca caindo aos pedaços. A alegria singela dos trabalhadores em hora de descanso. Sempre um bebum pra contar uma história engraçada, pra distrair ou até amolar a gente. E a gente ria, esperava sair um tira-gosto, tomava umas pingas, fazia hora, pra chegar em casa com o jornal da noite, não ter que disputar a tv no horário da novela. Eu me dava melhor com o tempo naquela época, com as pessoas, comigo mesmo.





quarta-feira, 2 de março de 2022

Brasilândia - São Bernardo

Um texto da série Crônicas da Vida Operária

                                

                                     ☆ 


Todo dia era a mesma coisa. Acordava antes das cinco. O pão dormido me aguardando na mesa pequena da cozinha. Os móveis apertados, espaço reduzido pra gente andar. Mas a casa era nossa, a gente construiu em esquema de mutirão. Era uma casa pequena, mas razoavelmente confortável. Uma casa bonitinha, quase uma casinha de boneca, as portas pequenas, um jardim florido na porta. A gente costumava fazer as refeições juntos sempre que possível. A Maria fazendo os nossos pratos, organizando a reza antes da comida. O café da manhã eu tomava meio corrido, sempre sozinho, ouvindo o canto dos galos na vizinhança, vendo a aurora em sua beleza pela janelinha da nossa cozinha. Eram muito bonitas as manhãs da Brasilândia. Lá de casa via as árvores da vizinhança que eram atravessadas pelas primeiras luzes do dia; belo contraste das folhas verdes com os feixes multicoloridos que vinham se consumar no terreno. 

Engolia rápido o café e corria pro ponto. Um abundante número de trabalhadores esperavam o seu transporte. O sono patente nos rostos, e a resignação de mais um dia na luta pela subsistência. Com sorte não esperava muito. Mas aí passava um tempão no coletivo. Isso era líquido e certo. Primeiro a Linha Brasilândia-Correio, saltava ali no ponto final e caminhava até o ônibus da empresa. De lá eu não caminhava mais, o ônibus deixava a gente já no pátio da firma. E eu ia pelo caminho observando a cidade pelo vidro, um vidro meio seboso, embaçado com a respiração da peãozada dentro, tudo fechado. Um frio de rachar lá fora, quase sempre garoa, neblina na Anchieta, chegando em São Bernardo. O ABC cheio de operários vindos de todos os lados. Os apitos das fábricas, aquela multidão batendo cartão nas máquinas barulhentas, puxando a alavanca de ferro pra prensar os cartõezinhos de papel cor de abóbora. Envergava meu macacão azul escuro e um boné com a bota que eu já vinha calçado de casa. Oito horas da manha as engrenagens já estavam à toda, as fábricas espirrando toneladas de fumaça nos ares, os operários disciplinados nas linhas de produção, os chiados de máquinas e ferramentas, eu pegando o torno do companheiro da madrugada. Dizia bom dia e o cara me respondia boa noite com um sorriso irônico, me dando palmadinhas nos ombros, caminhando alquebrado na direção do banheiro, com as mãos no bolso já manuseando o maço de cigarro. Eu prendia os olhos no torno e ali me alienava do mundo até a hora do almoço. Um protetor de vista, um protetor de ouvido. E ficava ali absorto no trabalho. Os pensamentos insistiam em ir distante. Mas isso envolvia riscos, e era necessário disciplinar a mente para que ela se resumisse ao que o corpo estava empregado, como numa meditação em que o camarada vai se desligando do mundo externo para se concentrar na essência do espírito. 

Na pausa principiava também pelo caminho do banheiro, o mesmo gesto dos dedos alcançando os cigarros, uma mijada relaxante, ouvindo a barulhada do pessoal, lendo as piadinhas que os mais malandros escreviam nos azulejos do mictório, a cabeça voltando pra terra.  Mãos lavadas, caminhava pro refeitório torcendo por um rango decente. Como eu trabalhava em multinacional, costumava comer coisa boa. Quase sempre os mesmos peões à mesa, nosso pequeno grupo de amigos do setor. As tias passavam recolhendo as bandejas e a gente já sacando o baralho pra uma breve jogatina de meia hora. Jogando a cigarro, que dinheiro era do nosso feitio não apostar. Tinha gente que atravessava o pátio e ia encarar uma caninha nos comércios; e tinha até quem encarasse jogar um pouco de bola. Sem medo de congestão, sem receio de encarar o sol do meio dia. Esses aí eram os mais malucos. Sabendo que até cinco, seis da tarde estaríamos a maioria em pé nas operações da fábrica, as pernas já doloridas, a coluna pedindo o arrego de um assento. E tinha o peso da refeição no estômago. Porque comida quando entra é bom, mas pede energia ao estômago pra processar e digerir aquilo.

Lá pelas duas e meia liberavam o cafezinho, desde que tomado rápido, sem enrolação. Alguns pegavam o copinho e iam pro banheiro, pra acompanhar um cigarro. E tinha sempre que ter um a mando do chefe pra esvaziar o banheiro e colocar a turma de volta aos postos de trabalho. O chefe marcando serrado, com um caderninho pra anotações que metia medo na peãozada. Dali era para o olho da rua, e pegar emprego certo seria difícil. Ninguém queria as fabriquetas. Era bom estar em empresa grande. E era de bom alvitre dar duro pra mostrar disposição, pra não figurar nas listas de corte quando a produção na empresa reduzia

No fim da tarde a longa viagem de volta, o mesmo esquema. Só que rezando pra encontrar lugar pra sentar no ônibus. Mal dava pra passar um tempo com as crianças, com a Maria, na frente da tv preto e branca, nas novelas. Tinha que deitar pra dormir porque a gente tinha que trabalhar. A gente vivia em função de trabalhar, pra colocar comida na mesa. E vivia em função de trabalhar e de esperar o fim de semana. O fim de semana era a redenção. Metíamos a família no carro e íamos pra algum parque público, comer pipoca, tomar sorvete. Eu lá pra aguentar a Maria pendurada no meu pescoço, 24 horas por dia me pedindo atenção. Brincava com as crianças nos gramados, cansava e voltava pra Maria, ela me puxava para si, a me alisar os cabelos e o rosto, abaixando minha camisa pra me espremer os cravos das costas. Tinha que ter esperteza pra olhar as moças bonitas, que a Maria marcava em cima também, tão austera quanto feitor de fábrica do ABC.

E a Maria era bonita. Pegou um pouco de barriga depois das crianças, os seios já não eram tão firmes, não tinham o encanto dos primeiros meses do namoro. Mas era uma mulher admirável a Maria. Carente, ciumenta, mas muito ciosa das coisas da casa, excelente mãe, pessoa responsável e de confiança. 

Conheci a Maria numa festa na casa do Ribamar e da Selma. Eu recém chegado em São Paulo, me enturmando ainda com o pessoal, rapaz meio intimidado com a fúria do meio urbano. Era se não me engano um domingo. Almoço com churrasco na casa do Ribamar. Ribamar era um alemãozão de olhos brilhantes, encarregado do nosso setor na fábrica. Morava num sobradinho bem arranjado, num bairro tranquilo, tinha uma vista boa do bairro, situado num lugar alto. A casa repleta de gente da firma, as crianças no quintal da frente, os homens caminhando entre as salas, o jardim; as mulheres subindo e descendo as escadas, curiando a casa da Selma, ou na cozinha, em torno do fogão, arrumando as coisas da festa na mesa, organizando pro pessoal comer. O Ribamar nas carnes, operando com habilidade as grelhas. No toca disco rodava um LP do Raul Seixas quando tive a primeira conversa com a Maria. Ela muito arrumadinha num vestido verde com detalhes coloridos, cheirosa, com seus olhos grandes, expressivos. Era uma das moças mais atraentes, quase da minha altura. Reparei que ela me olhava furtivamente. Me aproximei em poucos minutos, puxei conversa, tomando coragem. Tentava arrumar assunto, falar de mim, que era novato ali, que tinha saudades de algumas coisas deixadas pra trás, que me assustava com a loucura no centro da cidade, essas coisas. Deu certo. Acabou o Raul Seixas e colocaram um disco horroroso do Roberto Carlos. E o papo foi ganhando novos temas; afinidades surgiam. Vinham as mulheres com as bandejas de salgadinhos e carnes, a cerveja, o refrigerante. Foi caindo a tarde e chamaram o parabéns. Um bolo quase do tamanho da mesa. O pessoal apagou as luzes. "Parabéns pra você, é hora, é hora. Rá tim bum! Um alvoroço. A selma apagando as velinhas... E a Maria me olhou. Olhei de volta, sorrimos. Saí de lá planejando casamento. 


                                     ☆


A gente cresceu na Brasilândia. Década de 80. Bons tempos, apesar das agruras da periferia. Mas a gente nem era tão pobre assim. Não pagávamos aluguel, andávamos de carro. Um carrinho popular, meio batido, mas que nos servia bem, nos levava ao clube e aos passeios que a mãe sempre fazia questão de organizar. A mãe era ótima, uma típica dona de casa da periferia. Dona Maria era porreta, no dizer do povo do pai. O pai que era meio bruto às vezes, teve um tempo que deu pra beber. A gente tinha dificuldade com ele. Era um cara muito metido na política, trabalhava duro. Eu entendo que ele veio de outra realidade, que teve que comer o pão que o diabo amassou, que veio de outra cultura, e que é natural haver um certo embate entre as gerações. É verdade...procuro não julgar. Procuro compreender.

A vida na Brasilândia era boa pra criançada. Naquele tempo quase não tinha prédios. Eram ruas de casa, ou as favelas. E a gente podia brincar pro lado de fora do portão, chutar bola no asfalto até esfolar o dedo ou correr na rua até a mãe mandar entrar e tomar banho. Não podia ir pra favela. Ordens expressas de dona Maria. Na favela às vezes tinha tiro, e tinha o preconceito. Favela não podia. A gente observava de longe os morros, os barracos de tábua, a iluminação precária nos gatos que se entrecruzavam em indiscerníveis emaranhados. A imaginação da gente que era criança ia longe, pressupondo como seria a vida daquele povo, tentando visualizar suas casinhas por dentro. Havia um contato na escola. Os amiguinhos da favela muito pobrezinhos. Tinha uma diferença grande entre as condições das famílias, muito embora as famílias todas fossem no máximo de operários. A coisa mais difícil era encontrar gente com dinheiro na Brasilândia. Gente com dinheiro se via a alguns quilômetros dali, a medida que se aproximavam os bairros mais centrais.

Ali onde a gente morava ainda tinha resquícios de mato, a urbanização incipiente. Muitas famílias tinham galinheiro, algumas tinham cavalos em casa. Cavalos dos mais pangarés, naturalmente. No terreno ao lado de casa tinha um burrico que passava os dias a comer capim e olhar entediado pra quem passava na calçada. Muito bonitinho de longe. O burro era brabo. Uma vez, isso era comecinho da década de 90 já, esse burro quase arrancou a mão de uma namoradinha minha. Tava velhinho já, consideravelmente mais ranzinza e antissocial. Era meio acizentado esse bicho. Não lembro se tinha nome, infelizmente não lembro.

Aí na década de 90 fui trabalhar. Minha mãe em casa cuidando da minha irmã. Minha irmã, veja só, é a única pessoa que eu conheço que tem rinite, sinusite, bronquite e asma. Tudo junto. Campeã das doenças. Eu e o pai trabalhando. Não mudava muita coisa. Meu salário minguado no primeiro emprego de office-boy era todo meu, não tinha necessidade de ajudar em casa. Gastava com as coisas da rua. Mulher, cachaça, farra aqui e acolá. Acabava logo o dinheiro. Uma merda ser office-boy. O interessante era conhecer a cidade. Mas tinha hora que não tinha mais o que se conhecer também. Meu sonho mais imediato era ter o famigerado nokia tijolão. Um celular que todo mundo andava, um trambolho. Os cafonas andavam com aquela merda pendurada pro lado de fora da calça. Aí dava até gosto quando os trombadinhas passavam a milhão e levavam. Isso aí foi quase na mesma época do bipe, um aparelhinho que se usava pra encaminhar mensagens de texto. O negócio era tão primário que a gente tinha que ligar pra uma central de atendimento e ditar o texto pra telefonista. Acho que foi nessa que começaram os call-centers.

Enfim, tinha umas coisas curiosas naquele tempo. É mais ou menos disso que eu me lembro do tempo da Brasilândia. 


                                    ☆


Minha família veio do Paraná na década de 60. Filhos de alemães. Eu era muito criança quando viemos. Não lembro do Paraná daquele tempo. Voltei depois de mais velha, isso por muitas vezes. Minha família se instalou no extremo da zona norte em São Paulo, num terreno que o meu pai negociou com o dinheiro de uma terra que vendeu no Paraná. Depois moramos em Santo André, Diadema, São Bernardo. Mas voltei pra zona norte. Construímos lá eu e o Alcino. A turma ajudando e meu pai dando muitas coisas, além do principal que era o terreno. 

"Mas, pai, o Alcino ainda trabalha no ABC. Vai morar a duas horas de distância? Vai dar certo?"

E o velho me tranquilizava, dizendo que tinha ônibus da firma, que a gente ia economizar com aluguel, e tal e tal. Topamos. Eu trabalhava no bairro em meio período. Tinha uma creche da prefeitura que os meninos frequentavam. O Alcino saía cedo e voltava tarde, era difícil; não vou dizer que eu gostava. E era o que a gente tinha de melhor. O salário do Alcino era bom. Não faltava nada em casa, pelo contrário. Isso me dava tranquilidade pra olhar os meninos: o Wesley e a Mônica. A Mônica veio de sete meses, fraquinha. Vivia tendo febre, com peito chiando, doenças frequentes. Muito magrinha, não ganhava peso. A gente tinha que ficar de olho. Era sempre uma bateria de exames a se fazer, médicos a consultar. Minha mãe ajudava, a gente levava ela nas benzedeiras. Depois ela cresceu bem. Não cresceu muito, que a Mônica é tipo mulher baixinha. Tem uns 15 ou 20 centímetros a menos que eu. O Wesley cresceu bastante. Teve uma época que espichou e tinha jeito pra ser atleta, desses esportes que os altos se dão bem. Mas virou professor. A Mônica, jornalista. 

E aí arranjam namoro, noivado. Ficam grandes e vão pra longe, o Wesley com a esquisita da Fernanda, a Mônica sim com um rapaz bom, que o meu genro César é médico e ganha muito bem, obrigada. Dá uma vida muito tranquila pra Mônica. Isso me deixa tranquila. Quando a idade chega é bom não precisar ter preocupação, saber que as coisas estão arranjadas, que nada vai faltar.

Eu aqui com o Alcino vivo de passado. O homem só sabe falar de coisas de 30, 40 anos atrás. Fala das greves, fala que lembra do Lula na Vila Euclides, tal, tal, tal. Conta sempre a mesma história. Eu escuto e quase não reclamo. A gente parece mãe e filho às vezes. Ele contando histórias fantásticas, eu ouvindo e cuidando dele.

"Alcino, vem almoçar. Alcino, bebe água, amor. Alcino, o remedinho da pressão. Vamos!" E o Alcino obedece. O pessoal fala que a mulherada manda. Aqui em casa eu mando mesmo. E a gente tem uma vida gostosa. 

Ah, eu conheci o Alcino no ABC. Era operária. Trabalhava em montadora. E eu era das boas. Tinha muito operário bronco, eu botava eles pra trabalhar.  Protegia dos patrões quando precisava. Passava um pano porque quase todos tinham família pra sustentar. Mas exigia sempre que prestassem um bom serviço. A gente tinha que fazer bem a nossa parte, né.

Mais tarde eu preferi rescindir o contrato. Trabalhar em empresas menores, trabalhar menos, pra engravidar e pra ajudar a cuidar do meu pai. Sim o velho ficou doente mais ou menos na época que nasceram o Wesley e a Mônica. Os meninos não lembram do avô. 

Mas o ABC era bom. Fiz faculdade. Só tinha eu de moça na sala. A gente entrava às 19h pra sair às 23h. Cansativo demais, de dia a jornada na fábrica. Fiz faculdade de letras. E eu era muito paquerada naquele tempo. Mas era exigente. O Alcino eu achei muito bonitão. Tinha mãos bonitas, um caimento diferente no cabelo. Não sei, é difícil falar. O Alcino era o marido que eu pedi a Deus. Eu que apresentei o ABC a ele. A gente subia e descia aquela rua da matriz, tomando sorvete, apostando pra ver quem comia mais paçoquinha. Passeios nos parques aos fins de semana, nos teatros, nos cinemas, nas exposições. O Alcino muito inteligente, mas me dava oportunidade de falar dos clássicos pra ele, de ciceroniar nos museus que eu conhecia bem. Curiosamente não o conheci nos corredores da faculdade, mas na montadora. 

O Wesley e a Mônica puxaram pro pai. Pessoas práticas, mas com o coração sintonizado em grandes ideais. Até que foi boa a vida. Não posso reclamar.






sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Sorte e azar







Da série Crônicas da Vida Operária 



                                   ☆


Minha vida foi uma coisa repleta de controvérsias. Veja só. Tive a sorte de nascer em beira de praia. Gostoso, né? Mas tive o azar de nascer pobre. Nasci e cresci na ponta do cais, bairro de trabalhadores, casas simples, lugar pacato. Mas nasci na casa mais pobre. As casas na ponta do cais eram todas de alvenaria. Certamente que algumas um pouco maiores que as outras, mas todas de alguma dignidade. Já a nossa casa era de madeira, muito velha. Devia ter já uns cinquenta anos aquela casa. Mais parecia um rancho de roça, com avarias pra todo lado, goteiras, uma casa realmente muito pobrezinha.

Sempre vejo pessoas dizendo que eram pobres mas eram felizes, que eram felizes e não sabiam, com saudades da infância, dos bons tempos de antigamente e tal. Bom, no meu caso faço questão de dizer que as condições materiais não eram boas e que todo o resto também deixava a desejar. 

Tenho saudades de muitos amigos daquele tempo, pessoas de lá que cresceram com a gente, correndo pelas ruas de terra da ponta do cais, indo ao mercado em rabeira de caminhão, brincando de se esconder nos mangues. É, nostalgia até o mais pobre cidadão vai ter um pouco. Faz parte da nossa cultura. Fomos habituados a isso. E olha que tinha mesmo umas coisas legais naquele nosso tempo de infância. Pequenos detalhes que não existem mais, que o tempo tratou de levar embora e que naturalmente figuram na memória como coisas muito afetivas pra gente. Lembro dos parquinhos em festas juninas; do homem do papagaio que tirava a sorte em pequenos papeizinhos, ao som de realejos muito simpáticos; do vendedor de biju, que vinha agitando uma matraca, sempre com uma renca de moleques em seu encalço. Coisas que não voltam mais. Coisas da minha infância nos anos 60. 

Mas era um tempo de penúria pra gente. Pra muitos, aliás. Isso que eu digo era sessenta e poucos, os milicos tinham acabado de dar o golpe, ainda não havia nem sombra do milagre brasileiro. E a gente passava fome, e via muitas famílias naquela mesma situação deplorável. 

Eu e meus irmãos tínhamos um costume quando a coisa apertava e a barriga desancava a roncar. Pegávamos nossa bola de pano, que a gente mesmo costurava, uma bolinha vagabunda e surrada, e íamos brincar na porta da Dona Landina. Ela sempre nos dava um pão, um biscoito. E havia um acordo tácito entre a gente. Pegávamos o que comer e caíamos fora. Sem bagunça em sua porta, sem mais palavras. Funcionava sempre assim. Chegávamos e ficávamos lá na porta até que ela desse conta de nossa presença. Dona Landina, uma senhora de idade, cabelos cacheados e grisalhos na altura dos ombros, muito branca, de belos olhos verdes. Tinha um ar respeitabilíssimo, cara de boa gente no sorriso tímido. Dona Landina aparecia e fazíamos cara de coitadinhos. Nenhuma palavra. A fome estampada na cara. Chutávamos aquela bola velha de um lado pro outro, com má vontade, só pra dar por feita aquela praxe, até que ela viesse com alguma coisa nas mãos. Agradecíamos a comida, que quase nunca era suficiente pra matar a fome, e tomávamos o caminho do mercado. No mercado pegávamos quando muito umas poucas frutas. Umas uvas numa banca, uma maçã em outra, a pretexto de experimentar. Os feirantes sabiam muito bem que não tínhamos com o que comprar. Mas ninguém falava nada. Não precisava falar. 

A um canto do mercado tinha gente que recolhia a xepa. Era uma possibilidade. Muitas famílias dos morros desciam pra pegar, e praticamente todas as famílias das palafitas, de modo que era difícil chegar no canto da xepa e ter a sorte de pegar coisas que ainda prestassem. 

A situação era muito feia mesmo. Nasci em casa de gente muito problemática. A mãe vivia de uns bicos em casa de família. Vivia sendo mandada embora. Tinha o hábito de furtar. O pai era carregador no porto. Trabalho o mais braçal possível, não sabia nem ler. Analfabetismo, diga-se, era coisa muito comum naquele tempo. 

No berço dessa miséria crescemos acumulando frustrações. Tem coisa que me lembro e às vezes ainda me pego chorando. Uma vida inteira pra aprender a lidar com os frutos da escassez, da família desestruturada, como diziam, das desonras e das vergonhas.

Nossa sorte foi deixar a praia e subir a serra. Isso por intermédio de uma boa alma (ok, não tão boa assim, confesso, caro leitor) que nos arranjou uma oportunidade numa fábrica. Era o Seu Martins, de saudosa memória em nossa casa. Figura deveras simpática e generosa. Empregou o pai e a mãe nessa fábrica, arrumou um lugar com aluguel barato e nos ajudou. Depois vim a saber que o homem era trambiqueiro profissional, e dos bons. Talento raro para a má-fé, mexia com vultosas somas de dinheiro sujo. E tinha uma característica estranha na hora de lavar o dinheiro. Só colocava grana em portas de igreja. Podia ser evangélica, católica, terreiros, centros espíritas, etc. Não fazia distinção de religião. Seu Martins ajudou o pai e por tabela ajudou a gente. Penso que foi pro céu o velho. Porque deve ter feito isso com outras famílias, eu imagino. De repente um modo de conseguir o perdão para os seus pecados. Talvez fosse também nesse intuito que entregava dinheiro aos religiosos. 

Pois bem, saímos da miséria. (E calculo que Seu Martins ganhou o céu. Coisa meio de Robin Hood, merecidamente). A vida foi seguindo seu rumo. Muitas dificuldades sempre. A vida não é coisa fácil. Todo mundo sabe. Ademais, tivemos enormes dificuldades de lidar com os fantasmas do passado, com algumas rusgas do tempo da fome, com o caráter duvidoso da mãe. 

Depois de mais grandinho tomei a iniciativa de sair fora, de tomar meu caminho. Operário, correndo atrás de pagar minhas contas com o salário habitualmente mirrado. 

Morei um tempão em pensões. Tomando cuidado pra não perder os poucos pertences nas mãos dos larápios. E nunca deixei que me engabelassem. Tive esse mérito. Vivia entre operários, mas vez ou outra tinha cafetão, marginal, drogado. A turma dormindo em beliches de quartos enormes. Às vezes dez, doze pessoas debaixo do mesmo teto. Não dava pra botar a mão no fogo. Andava pelo centro, conhecia os batedores de carteira, suas gírias, suas artimanhas. Tomava o trem, habituado aos acontecimentos mais insanos. O rame rame de uma vida entre tipos sociais que dariam frio na espinha do leitor ter de encarar nos olhos. E a gente encarava, combinando uma postura de autoridade com deferência. Pra não dar ocasião de problemas. A gente não podia esboçar medo; seria pior. Tinha que ter firmeza, traquejo pra contornar a coisa.

Sempre tive a sorte de conseguir me virar e de algum jeito resolver os problemas. Mas no meu caso não consegui nunca fugir dos problemas. E ter que resolver problemas é um negócio que me incomoda profundamente. Desde o tempo do cais do porto. Saía de um problema aqui e logo aparecia outro ali. Não dava muito tempo de esfriar a cabeça, de respirar aliviado. 

Na última pensão em que morei, antes de me casar e ter filhos, quando a situação já tava mais tranquila financeiramente, conheci um rapaz que era esquizofrênico, o Zé Carlos. Sempre penso no Zé Carlos como um exemplo de instabilidade da vida. O Zé era um sujeito muito carismático e popular. Sabia conversar com as pessoas, educado. O problema era quando o figura surtava. Às vezes tava escorado no alpendre da pensão, fumando, olhando a rua, e do nada começava a falar sozinho, a ralhar como se estivesse em discussão com alguém. Começava nisso com a voz até meio baixa. E ia escalando. Quando a gente via o Zé Carlos tava aos berros. Batia com as mãos na chapa de aço do portão, chutava o cachorro. O Zé passava uns tempos internado, depois voltava sereno. Contava das injeções de sossega leão, das enfermeiras bonitas. E trabalhava, operário qualificado. Até uma próxima internação. Minha vida tinha esse ritmo de altos e baixos. Às vezes medo, às vezes perigo. Uns breves lapsos de monotonia. E voltava à carga a loucura da vida. Como numa montanha russa de emoções, às vezes sinistra e perversa. Sorte e azar vizinhos desapartados.



quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Entre vivos e mortos

Da série Crônicas da Vida Operária 



                                    ☆


Tem pessoas que a gente vê e pensa que vai viver um tempão, que tem no mínimo mais uns 20 ou 30 anos pela frente. Daí a dois, três anos a gente fica sabendo do velório, vem alguém e conta que a pessoa passou dessa pra melhor. Gozado isso. "Gozado" era como a turma da Vila Operária costumava se referir a fatos curiosos ou engraçados. E na Vila Operária muita gente morria também. A morte era um fato corriqueiro na Vila Operária. Morria gente de tiro, de facada, em brigas conjugais, entreveros familiares, desentendimentos de bêbados nos bares, etc. Morria também muita gente do coração, de diabetes, de avc. Morria velho, novo, criança. Morria-se de acidente nas fábricas às vezes. Era meio difícil, mas acontecia. 

Tinha gente na Vila Operária que até gostava dos ritos funerários. Muitas famílias velavam seus defuntos em casa mesmo. Passavam a madrugada adentro entre cafés e lanchinhos. As pessoas cochichando pelos cantos no começo do velório, e aquele vozerio depois de todos se ambientarem. Tinha gente que aí esquecia se tratar de velório. Iam zanzar no quintal, olhar a lua, falar do campeonato de futebol, das notícias da semana na política, das novelas. As crianças correndo de um lado pro outro, sujando as roupinhas de terra e levando bronca dos pais. Aí de manhã partia o cortejo em torno do féretro, sombrinhas pra cobrir a cabeça do sol. Passava o caixão e os populares tiravam o chapéu pelo caminho, fazendo o sinal da cruz. 

O cemitério da Vila Operária era simplezinho. Mixuruca, mas digno. Tinha bonitas copas de árvores, com passarinhos, gatos nos muros laterais. Um lugar simpático. De um lado o cemitério antigo, com pequenas edificações, cruzes e imagens de santo. De outro as covas recentes, só o bolo de terra pra indicar o sepultamento. 

Eu conhecia como a palma da mão o cemitério da Vila Operária, e mais adiante vou contar o porquê. Uma vez entrei correndo lá de noite, fugindo de um quebra pau na frente do sindicato. Baixou a polícia atrás da peãozada. Os homens já tinham me marcado de um piquete naquela semana. Vieram ao meu encalço. Desci a rua desabalado, vim no impulso da corrida e pulei o muro. Caí na parte das covas recentes. No apuro devo ter passado por cima de uma meia dúzia de companheiros recém finados. Segui na correria e só fui parar quando tive certeza que os homens não vinham atrás. 

Mas, eu dizia, a morte era tema constante na Vila Operária. Pouca gente morria velhinha. Toda semana partia alguém pro mundo do além. E a gente de certa forma se acostumou com aquilo. Teve uma época em que eu tava queimado com os patrões nas empresas. Meu nome foi parar numa lista negra de operários subversivos. Aí fui me virar com bicos. O Charles, meu camarada das antigas, dono de uma funerária, me chamou pra dar uns expedientes por lá. Me chamou e disse: "Olha, o serviço é moleza. Faz assim, faz assado. Tem muita história em torno disso mas aqui você passa bem. Vai por mim"

Eu peguei a manha do negócio e por alguns meses ganhei o pão com a carne morta, como dizia o Charles pra fazer gracejos entre os amigos. E foi o próprio, camarada Charles, que me arrumou um emprego no cemitério. Lá eu teria carteira assinada, alguns direitos e tal, coisa que eu não tinha na funerária. Foi aí que passei esse tempo atuando no cemitério, até a poeira baixar e eu poder voltar pro chão de fábrica. 

Outros companheiros precisaram fazer o mesmo: desbaratinar por um tempo em outros afazeres. Deixar um pouco as fábricas enquanto o bicho pegava. E ouvi histórias interessantíssimas. Teve gente que foi varrer rua, gente que foi animar festas infantis no bairro dos ricaços...Gente com menos escrúpulos, que tinha rodado meio por acaso, sem o envolvimento político nosso, que foi fazer trambiques, aplicar pequenos golpes como o do bilhete premiado na loteria, essas sacanagens que se vê por aí. Companheiras mulheres foram fazer faxina, trabalhar em casas de família, em hospitais, em asilos. Teve até uma que chegou a trabalhar em manicômio. Voltou pra Vila Operária e nos divertia com as histórias dos malucos. Reparei depois que ela evitava falar muito desse trabalho, pelo menos da parte séria do negócio. Outros companheiros menos perspicazes não podiam notar. Mas eu notava em seus olhos que muita coisa ruim ela tinha visto por lá, e que aquilo tinha mexido com ela.

Pois então, muitos desses amigos pareciam imortais, ou "imorríveis", como a gente brincava entre os peões coveiros. (Coveiro não tem tempo nem de morrer. Era a frase que corria lá entre a gente.) E desses "imorríveis" eu vi vários morrendo. Dava um aperto no coração. Um nó na garganta. Mas que diferença realmente faz morrer aos 50 ou aos 80? Tenho saudades de todos eles. Mas creio que estejam bem no mundo dos mortos. Aqui embaixo era que a coisa apertava. Peão de fábrica entende bem disso.




terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Fantasmas

Mais um texto da série Crônicas da Vida Operária 



                                     ☆


Três e meia da manhã, clima frio, a gente no meio da BR. A gente que eu digo era eu e o Treze. Os dois a caminho do trabalho. Arrumei esse trabalho de frentista de posto. Época de vacas magras, muito magras. Não pude recusar o emprego. Não tinha jeito. Nessa época eu tava morando numa desditosa cidade de interior, que prefiro nem mencionar o nome. Morava longe do posto, morava longe de tudo. Morava, como eles dizem por lá, no pau do urubu. 

Uma vez comentei pra um forasteiro que morava no pau do urubu. O cara abriu os olhos em um esboço de sorriso e disse que nunca tinha ouvido um nome de bairro curioso daquele jeito. A turma do posto ouviu a conversa e caiu na gargalhada. O Mirandinha, gerente, ria também, meio acanhado, sem se misturar à peãozada.

Pois eu dizia, três e meia da manhã na BR, eu e o Treze. O Treze, um negão de um metro e noventa, esguio, canelinha fina, correu feito velocista e me deixou pra trás no breu da rodovia, tamanho o susto que tomamos. O fato é que vimos um vulto. Me arrepio só de lembrar. 

A rodovia pouco movimentada, vínhamos conversando na caminhada, passos ritmados no acostamento de granizo. E vimos à meia distância uma silhueta, no mato à beira da estrada. Nem deu tempo de pensar, o reflexo condicionado foi correr. E corremos. O Treze correu como devia correr da polícia no áureo vigor físico dos seus tempos de trombadinha, seus tempos de garoto transviado. As histórias que o Treze me contava me arrepiavam como me arrepia agora a memória do vulto. Não lembro direito a história desse apelido dele. Lembro que era algo relacionado à sua passagem pela Febem. Não sei se um número de protocolo interno, ou se referente ao tempo que ele passou lá.

Passávamos longas horas na frente das bombas de gasolina, geralmente no primeiro turno, com o dia amanhecendo, até a hora do almoço. E entre papos de mulher e futebol o Treze ia me contando a sua história. Histórias de malocas, de biqueiras, de fugas da polícia, ou de quando as fugas não resultavam exitosas e os milicos judiavam dele...Histórias tristes, umas muito violentas. Poucas histórias tinham um final bom. Algumas eram inusitadas e engraçadas. Gostava de ouvir o negão contar. Ele com aquele sotaque meio matuto, carregado nos erres, tinha jeito pra contar histórias. Tinha ritmo de cronista, preciso, marcado. Sabia sugerir drama, medo, angústia, suspense. Ritmado, catártico, envolvendo o ouvinte.

Ouvi histórias inacreditáveis naquela rodovia. Outro passatempo nosso era observar os passarinhos, o Treze tinha um notável conhecimento das aves. E também brincávamos de imaginar a profissão das pessoas pelos carros com que chegavam no posto. Por exemplo, vinha um bigodudo num Del Rey prateado, limpinho, bem ajeitado; o Treze arriscava um palpite:

 _ Médico. Certeza. 

Cinco minutos depois encostava um Karmann Ghia vermelho, com um playboy ao volante.

 _ Esse aí é filho de fazendeiro. 

Se encostava um casal, a brincadeira às vezes era dizer se a mulher era esposa ou amante. E nesse ritmo, entre histórias de antigamente, passarinhos, brincadeiras ordinárias, comíamos a manhã adentro, entre goles de café e baforadas de cigarro paraguaio.

Fiquei um pouco mais de dois anos nesse posto. Depois disso vieram outros perrengues, outros trabalhos mal-pagos. E vez ou outra eu ficava desempregado. Numa dessas vezes surgiu concurso pra guarda municipal da cidade. A mãe queria que eu fizesse. Me encheu o saco. Eu fiquei tentado, não nego, mas resisti firmemente. A gente passando dificuldade em casa. Mas eu falei pra mãe que meganha eu não virava. Que eu tinha consciência das coisas. 

A mãe insistia, dizia que guardinha de cidade pequena nem pega em arma, que não troca tiro com bandido nunca, que era aquele negócio de ficar tomando cafezinho em porta de repartição pública, ou separando briga de crianças na praça. Eu não caí no papo.

Vim pra cidade, me meti nuns serviços de entrega. Às vezes me tiravam de office-boy, me mandavam pagar conta, fazer depósito, buscar o almoço da turma. Não era tão ruim como pode parecer. Ficava na rua olhando a bunda das mulheres e observando as coisas. Nato observador, um flaneur de carteira assinada. Sempre dava pra dar uma escapada e tentar fugir da condição operária. 

Jogava papo nas vendedoras das lojas, pegava telefone. Levava uns livros na pasta, lia nas pracinhas. A vida tinha seu sabor.

Fui trabalhar no centro e via as coisas mais interessantes. Uma vez tirei uma onda com um muçulmano e tomei o maior enquadro na firma. Tava eu lá na fila do banco e me aparece um cara com uma bata de linho que cobria o corpo todo, um gorrinho cobrindo a cabeça. Devia ser um clérigo, presumo. Veio numa tentativa de furar a fila, arrumando pretexto com a moça do caixa. E vinha com uma latinha de coca cola na mão. 

 _ Não pode tomar pinga mas pode tomar coca cola, né?! O que é pior, brimo?

Falei tirando uma onda. Pensando que o cara fosse levar na esportiva. Ele parou na minha frente e me deu uma medida da cabeça aos pés, sério, desafiador.

Depois me chamaram no RH e me deram uma advertência. O pessoal ficou sabendo do incidente. Me disseram que eu não podia queimar o filme da empresa. 

Histórias como essa do banco eu vivi bem umas cinco. Andar na rua, interagir com as pessoas, com os clientes, é sempre ocasião de desentendimentos. As pessoas são imprevisíveis às vezes. Um que acha determinado comportamento normal, te trata bem. Aí você se comporta exatamente igual com uma outra pessoa e arruma bronca pro seu lado. Fiquei de saco cheio também. Tive saudades do interior, do posto, do pau do urubu, do Treze e dos outros meninos. Mas é sempre besteira cair nessa de nostalgia. Na época eu intuitivamente já desconfiava disso e tomei um bom caminho. Fui estudar e tentar outras profissões, olhando sempre pra frente. 

Como na madrugada da BR, encarei outros fantasmas pelo caminho. Às vezes a gente corre, às vezes bate de frente. Os fantasmas sempre aparecem. 

Queria poder contar que vi um ovni, que vi a loira do banheiro, qualquer coisa mais interessante. Meus fantasmas foram ordinários e corriqueiros. É quando a gente aprende a elaborar espiritualmente a vida. Simbolicamente, interiormente. Sábio é o homem introspectivo, que soube compreender os seus fantasmas, que soube sorver o que estes trazem de sentido.




domingo, 16 de janeiro de 2022

Transportando histórias

Da série Crônicas da Vida Operária 



                                    ☆


A curva do ônibus nem foi tão forte, mas a tia tombou e tivemos que parar pra acudir. Uma dona de uns 70 anos, forte, como diz o outro, pesada. Paramos o coletivo mas ela não tinha força de sozinha se levantar. Um grandão no fundo disse que tínhamos que tocar pro hospital, que era o correto a se fazer. Mas tava emocionado o grandão. A tia não tinha nem arranhado o braço. O Ademar motorista por sua vez também não cometeu nenhuma loucura. Vinha sereno ao volante nesse dia. Coisa que acontece. 

 _ Mas e o braço do banco?, disse uma moça.

Realmente tava faltando um item no banco que a tia vinha. Já tinha reparado fazia uns dias e devia ter tomado providências. Se desse merda, o patrão comia meu rabo. Isso se não me mandasse embora. Acontece que o ônibus era clandestino. Tinha muito disso naquela época. E passava batido. Pouca fiscalização, se pintasse era sempre um dinheiro por fora e tava beleza. Havia centenas de clandestinos circulando pela cidade. Imagina, uma cidade grande dessa!

Mas a tia tava bem. Graças a Deus. Se a velha se estrepava eu tava fudido de verde e amarelo. Me estrepava junto. 

Foi nesse dia que eu voltei a rezar a mandinga do santo, que a tia Ana me chamou pra eu aprender com 12 anos. Ela me puxou pro quintal e me iniciou ali num ritual que, dizia ela, eu tinha que levar pro resto da vida. Vez ou outra eu esquecia aquilo, deixava pra lá. Mas naquele dia da queda da senhora eu voltei a fazer assiduamente, do jeitinho que a tia Ana tinha me ensinado. 

Depois disso não me lembro do medo ter me tomado de assalto. Acontecia as maiores loucuras do mundo naquele ônibus e eu mantinha sempre a maior calma. Sentava a bunda naquele banco velho de cobrador, com uma almofadinha macia que me acompanhava diuturnamente, e passava horas e horas pegando bilhetes e dinheiro do povo. Contando piada e dando esculacho no Ademar. E dava esculacho porque eu é que era a autoridade da linha. Tinha moral com o patrão, muitos anos de firma. Modéstia à parte, tinha uma habilidade incomum pra resolver os beós, pra dar ordens aos homens, pra colocar as coisas pra funcionar. Devia ter eu mesmo aberto firma, pra fazer dinheiro e ser respeitado no bairro. Mas eu não tinha pretensões. Vivia pra trabalhar e voltar pra casa. Um ou outro fim de semana na praia, algumas namoradinhas. Minha vida era essa. 

Ficou um pouco mais emocionante depois que eu dei pra passar no concurso da companhia de trens. Me deram umas poucas semanas de treinamento e me colocaram pra ser maquinista. No ônibus eu não dirigia, mas no trem era eu que pilotava a bagaça. 

No começo era tudo meio chato, ter que tomar nota das instruções, decorar nomes, funções, etc. Depois que eu dominei o painel de controle fiquei envaidecido. Gostava quando a composição atingia a velocidade máxima. E me deslumbrava com a paisagem, com o mato no entorno, com aqueles trilhos a perder de vista. 

Foi um tempo muito bom esse na companhia. Pouco depois de ingressar como funcionário concursado, já tinha uns contatos bons na categoria, uma meia dúzia de mulher atrás de mim, querendo casamento e tal, o Magalhães me chamou de canto e disse que tinha um negócio da China pra gente.

Ainda bem que eu não entrei na do Magalhães. O cara se picou pra Serra Pelada, no auge do garimpo. Foi e não deu mais notícia. Eu via aquelas reportagens na tv e ficava tentando encontrar o Magalhães nas imagens. Imagina que loucura. As imagens de Serra Pelada pareciam formigueiros, enxames humanos. Mas eu lembrava do Magalhães. Se tinha alguém do meu lado eu contava que o meu camarada Magalhães estava lá, que tinha largado tudo pra ir atrás de ser milionário garimpando ouro na Amazônia. 

A vida seguia a mesma na companhia. Entrava e saía gente, a turma sempre animada, piadista. Os maquinistas se cruzando no refeitório, nos banheiros, no café, contando as histórias dos atropelamentos, quem tinha mais mortes nas costas, o tanto de gente que tinha aleijado. Na maioria das vezes sem maldade alguma. Só por contar. Desencargo de consciência. "O sujeito que anda no trilho é que tá errado"! Alguém sempre repetia. A gente tinha que ter alguma frieza sempre. Tranquilidade para lidar com os contratempos. 

Só o Nequinha que uma vez entrou pelo cano com isso. Ele era novato, não sabia como a coisa funcionava. No primeiro atropelamento tomou nota do falecido e resolveu comparecer no velório. A família descobriu que ele que tinha esmigalhado o cara e a coisa desandou; pegaram ele de pau e não sei o que foi pior, se foi a cara amassada que rendeu uns dias de licença médica ou se foi a gozação da turma depois.

No mais, quem se lascava mesmo era a turma da limpeza de vias. Sempre contavam história de corpos destroçados que tinham que recolher. Às vezes chegavam com o presunto no necrotério e um engraçadinho perguntava: "Mas onde tá a cabeça? Tá faltando uma perna, um braço"

E nessa loucura toda o Magalhães só foi aparecer cinco anos depois. E apareceu entre alquebrado e místico. Um pouco mais calvo do que já era, uma barba de três ou quatro dias, os olhos verdes muito serenos entre vincos que o tempo lhe sulcara no rosto avermelhado. Veio contando histórias mirabolantes. Contou que teve mulheres, que entrara em desavenças, em aventuras homéricas floresta adentro, que se apaixonara por uma índia tipo Iracema, que ficara rico e depois pobre, e depois rico de novo. Mas que aparecera um inimigo, e que, jurado de morte, passara a procurar pajelanças pra fechar o corpo. Uma história mais impressionante que a outra! 

O que era ser maquinista de trem frente ao Magalhães das mirabolantes histórias floresta adentro? Eu já tava ficando meio deprimido quando meu camarada Magalhães chegou aos infortúnios do fim de sua história. 

Disse ele que fechou lá o corpo. E que escapou de duas ou três emboscadas do sujeito que lhe jurara. Até que resolveu dar cabo do sujeito. Ele e um compadre. O compadre furou o peito do sujeito com um tiro de calibre doze, ao que o Magalhães "temperou", palavras dele, com as seis balas de um 38. E ficou sem inimigos a partir desse dia. Mas depois pegou uma malária muito tenebrosa. Vendo que corria risco de vida, se meteu num avião e voltou. Chegou então a um hospital e deixou lá suas pepitas de ouro, em pagamento a um intensivo tratamento, ao fim do qual, uns dois meses depois, dizia ele que tinha saído com tudo em cima. 

Mas já não tinha emprego. Tinha boas histórias pra contar, mas não usufruia, como nós, de um salário certo, embora não muito generoso. Tentei levar ele no terreiro da tia Ana. Achei que seria bom. Ele não quis. Se amigou depois com uma moça muito engraçadinha da zona sul e se aprumou na vida.

Eu, uns anos depois disso, pedi pra sair da companhia. Tava cansado de atropelamentos. Quatorze ao todo. Treze óbitos. Não me sentia culpado. Mas queria uma coisa mais sossegada. Meu trabalho no transporte público acabou assim. Longos anos levando o povo pra cima e pra baixo, arrumando histórias pra contar.




terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O vírus do neoliberalismo

Essa virada de 21 pra 22 marca dois anos da pandemia da covid-19 no mundo. No Brasil, computamos mais de 600 mil mortes. Todo mundo aqui perdeu parente ou conhecido pra doença. A covid-19 veio como um furacão e deixou um rastro de destruição. Muita gente perdeu o emprego. Muita gente entrou em crises de depressão e ansiedade. A covid trouxe muito sofrimento, tirou o sono e a paz das pessoas. Mas por ventura poderia ter sido diferente? Por que é que as coisas transcorreram com tamanha barbaridade? É preciso ponderar as condições sociais que a covid encontrou por aqui, e como encontrou terreno fértil pra se disseminar. 


                                    ■■■


Quando a epidemia de covid-19 chegou ao Brasil, em meados de março de 2020, chegou pelos aeroportos, sobretudo por pessoas vindas da Itália. Ou seja, a priori as infecções por covid vitimaram pessoas de classes sociais mais abastadas. Com o passar de semanas e meses, o jogo virou, por assim dizer, com a democratização das infecções a curto prazo, e, posteriormente, a médio prazo, com as infecções vitimando sobretudo as classes mais populares, haja visto que as elites e a classe média lograram muito maior êxito no cumprimento do isolamento social necessário ao combate da covid.

Ou seja, em pouco tempo foi possível observar o peso das abissais desigualdades sociais brasileiras ocasionar um morticínio. Porque o povo pobre brasileiro vive naturalmente aglomerado, seja nos transportes públicos de péssima qualidade e de capacidade reduzida de serviço, seja nas favelas e bairros populares, onde vivem enormes contingentes de pessoas, seja dentro das próprias habitações das famílias, em geral diminutas e precárias. Tudo isso facilitou o trabalho do vírus em sua disseminação e replicação. Em poucas semanas e meses o número de infecções, internações e óbitos aumentou exponencialmente, ao passo em que, como vínhamos dizendo, transpôs de uma classe social à outra. De uma circunstância fortuita, em que o vírus alcançava especificamente pessoas abonadas, que andam de avião e que viajam à Europa, à pessoas simples do povo, que são estruturalmente adoecidas e mortas nas epidemias que surgem no mundo. Quer dizer, no caso da covid se cumpriu o que sistematicamente se cumpre sempre: a nova moléstia faz suas vítimas no campo das classes sociais que padecem com a pobreza. No caso do capitalismo de cunho neoliberal, conjuntura contemporânea nossa, enormes contingentes são relegados a uma situação de penúria, de vulnerabilidade e marginalidade. 

No Brasil ainda que temos o SUS, um sistema universal de saúde, público, conquista das lutas políticas e sociais que se consolidou na Constituição Federal de 1988. E embora muitas vezes deficiente, por conta do sucateamento nesse período de políticas neoliberais, com orçamentos insuficientes, é um sistema que muito ajuda a população. Não fosse o SUS, o número de mortes no Brasil seria muito mais alto. 

Mas o contexto neoliberal nos trás exatamente isso; ou a privatização dos serviços essenciais à população, como é o caso dos Estados Unidos, onde muitas pessoas morreram nos hospitais e seus corpos foram abandonados pelos familiares, porque estes não teriam condições de arcar com os custos hospitalares; ou o sistemático e perverso sucateamento dos serviços públicos nos países que ainda oferecem esses serviços. Porque a lógica do neoliberalismo é a lógica dos ajustes fiscais, das privatizações, do mercado regulado por si mesmo, do estado mínimo. Ou seja, bases que favorecem aos bancos e aos rentistas, à acumulação do capital nas mesmas mãos de sempre, ao capital concentrado, aos monopólios e colossais desigualdades sociais oriundas desse modelo social.

No caso da covid era uma tragédia anunciada. Bastaria que o vírus tivesse tempo oportuno para se espalhar e fatalmente vitimaria a faixa social dos excluídos de sempre. 

Em alguns momentos, por ocasião de conjunturas específicas da política e da economia, da luta de classes e suas correlações, ascendem ao poder políticos e partidos políticos que cedem um pouco mais de benefícios aos trabalhadores e aos pobres, que assumem uma política econômica mais favorável à geração de renda, ao crescimento, com políticas de distribuição de renda, com a economia girando mais, dando ao povo crédito e poder de compra, condições de melhorar de vida e de superar a pobreza. Mas esses ciclos não duram muito. Tão logo vem as crises econômicas, com a superprodução e a queda nas taxas de lucro das burguesias, e a condição política se aperta para os trabalhadores. Ascendem governos abertamente neoliberais, em geral com discursos anti-corrupção muito dissimulados, com a imprensa martelando dia e noite discursos afeitos ideologicamente ao mercado e à livre concorrência. Aí se desvanecem direitos trabalhistas, direitos aos serviços públicos essenciais como saúde, educação, moradia, etc.

O povo fica desguarnecido em meio a possíveis e eventuais crises, sejam sociais e econômicas, sejam climáticas, ou, como é o caso da covid, uma crise sanitária e pandêmica. Fica impossível o estado oferecer à população a estratégia necessária ao combate do vírus. Não há como se criar isso do dia pra noite. Os estados que conseguiram oferecer efetiva proteção aos seus cidadãos foram justamente os estados menos balizados pelo sistema e pelo pensamento neoliberal. É o caso da China principalmente, que embora não seja um país socialista, como alguns dizem, é um país que passou por uma revolução socialista e que teve o mérito de criar uma estrutura social diferente do capitalismo selvagem do ocidente. Sua estrutura política, com o Partido Comunista Chinês à cabeça, logrou rapidamente debelar a transmissão do vírus em seu território, com uma aplicação exemplar da sociedade civil, num movimento extraordinário de cooperação e de disciplina. A China, um país de dimensões continentais, com uma população absurdamente grande, teve um número de mortes irrisório. E isso sendo o primeiro país onde se conheceu o vírus. 

Outros países do ocidente, capitalistas, mas de condições de bem estar social, também tiveram oportunidade de oferecer muito maior proteção aos seus cidadãos. Mas em nenhum país houve tanto êxito como na China. E isso porque na China, mais do que um sistema materialmente anti-neoliberal, existe um pensamento social que é distinto e que não aceita as premissas liberaloides ou neoliberaloides. E isso por mais críticas que se possa ter ao regime chinês. Mas o oriental, em sua educação e cultura, é profusamente mais imbuído de sentido coletivo do que nós no ocidente. E a lógica do neoliberalismo é essa coisa do individualismo, que é egoísta, presunçoso; do sujeito anti-vacina, por exemplo, que se envaidece por não se imunizar, que com sua arrogância obtusa prejudica a si mesmo e prejudica o convívio social, porque sem ampla vacinação não há possibilidade de se limitar o vírus. 

De tudo isso depreendemos que o combate à covid, como o combate às doenças em geral, às epidemias, se daria em muito melhores condições não fosse o neoliberalismo e as mazelas sociais que este engendra. As perspectivas seriam melhores não fosse o neoliberalismo. Haveria condições de socialmente se ajustar as coisas. Haveria condições da humanidade alcançar um progresso comum, uma prosperidade comum, em condições democráticas, com equidade, com solidariedade em todos os níveis, com tecnologia universalizada, com um propósito comum de bem estar e de civilidade. 

Por enquanto estamos longe disso. Ainda bem que a vacina começa a chegar à niveis bons, de imunidade de rebanho. Mas 600 mil mortes no Brasil foi um crime, claro que com culpa do atual governo, negacionista e genocida, mas que evidentemente extrapola essa esfera. Pelo menos metade dessas mortes tem um nome. Morreram de neoliberalismo.