terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Breve balanço de início de governo e perspectivas




Cinco semanas de governo Lula. Como avaliar a situação política e o novo governo? Impossível analisar sem pontuar que é também a quinta semana pós-governo Bolsonaro, e agora a quarta semana depois da intentona bolsonarista de 8 de janeiro. A tônica do momento é a dura transição de governo, com o mercado financeiro e a imprensa acuando o novo governo para que este não tome nenhuma medida econômica que esteja um pouco fora de seu script neoliberal padrão. O bolsonarismo por sua vez continua empenhado em seu programa de fakenews de whatsapp e mobilização do gado, a fração da população que não largou o Bolsonaro mesmo depois de todos os crimes e que agora não quer aceitar a legitimidade democrática do novo governo instituído. 

Dito isto, é bom frisar que a transição de governo é libertadora pero no mucho. O fim do governo Bolsonaro realmente configura um novo parâmetro civilizatório em terras brasileiras, mas, como dizíamos, são muitos os fatores a determinar a atual conjuntura e a pressionar o novo governo para que este não avance por caminhos mais democrático-populares. O pessoal da imprensa queria a deposição de Bolsonaro, claro, mas continuam muito determinados a não abrir mão do modo Paulo Guedes de gerir a economia nacional. O próprio imperialismo americano não queria mais saber do Bolsonaro, bem como parcelas determinantes da burguesia brasileira. Afinal, Bolsonaro representava perigo para os próprios negócios das elites, e não havia possibilidade de reeleição sem que o país enveredasse por um cenário de desintegração e anomia social. Era necessário que o andar de cima permitisse o retorno de Lula, para que a situação minimamente se normalizasse depois dos quatro anos de desgoverno fascista. 

Em sua primeira semana de governo, Lula revogou diversas medidas do governo anterior, nas questões de armas, meio ambiente, educação, privatizações. E se dispôs a continuar com os 600 reais de auxílio, que agora passa a ser o Programa Bolsa Família. Tem agora toda a mobilização do governo para a resolução da questão yanomami, que foi uma outra demonstração do caráter genocida do bolsonarismo, e que mostra bem a diferença oceânica entre uma gestão de extrema direita e uma gestão normal do reformista Partido dos Trabalhadores. 

Porque a atual gestão, após as primeiras semanas, um pouco mais de um mês após o emblemático discurso de posse do presidente Lula (em que este defendeu programas sociais para o fim da fome e impostos sobre grandes fortunas), começa a revelar que promessa de campanha eleitoral é realmente só um discurso pra sensibilizar as pessoas. Na hora de assumir o governo, ninguém tem peito de mexer no orçamento. Eles vão parando de criticar o teto fiscal, tiram o pé do discurso de rever as reformas trabalhista e previdenciária, etc. 

Tem agora o desentendimento com o Banco Central sobre a taxa de juros em 13,75%, mas muito pouco ou quase nada se fala sobre o aumento real dos salários, por exemplo, ou sobre um choque de recursos em obras públicas, para dinamizar a economia e gerar postos de trabalho. Tem também a questão da Petrobrás ainda estar recheada de elementos bolsonaristas, mas queremos ver se o presidente Lula vai manter a promessa de tirar a política de paridade com o dólar no preço dos combustíveis. 

Tudo bem que são só 40 dias de novo governo, que tem os militares e o mercado fazendo pressão sobre os caras, que a turba bolsonarista continua a representar perigo e que o próprio Bolsonaro ainda tá livre e solto por aí, que o Xandão e o STF, apesar de corretos em pegar os bandidos bolsonaristas, ainda não apontaram para medidas contundentes de responsabilização dos crimes da pandemia e de toda a série de crimes cometidos pela familícia e pelos generais.

Em certa medida seremos obrigados a defender o governo Lula da sanha golpista do mercado e de seus lacaios. Mas não podemos abrir mão de pressionar o governo para que este pelo menos cumpra suas promessas. Nem se trata de exigir do PT o que o partido nunca se propôs a oferecer. Como comunistas, faremos os apontamentos necessários, falaremos das necessidades de escalas móveis de trabalho e salários, defenderemos a estatização de setores estratégicos da economia, exigiremos o fim da fome, com o imposto progressivo e uma política avançada de distribuição de renda, entre outras questões. Mas do governo Lula exigiremos o que este em campanha se comprometeu a entregar, nada menos. 

O Brasil amarga agora uma situação social grave, onde milhões e milhões de pessoas passam fome! A situação é severa. Os índices de criminalidade avançam, de prostituição, drogadição, etc. São amplas massas da população em vulnerabilidade. Famílias desamparadas, proliferação de favelas, crianças em situação precária de vida. E o país tem recursos, não pode haver essa miséria. Tem que ter uma política de desenvolvimento, de cobertura social. Não basta tirar o Bolsonaro. Tem que incluir o cidadão no orçamento, tem que acabar com a fome e o subdesenvolvimento. E tem que ser depressa. Senão volta a direita num próximo governo, senão o povo não aguenta, senão as mudanças serão superficiais e provisórias.



segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Entre identidades e identitarismos

☆ Breve comentário marxista-freire-gramsciano sobre o tema


O que é bom pra mim talvez não seja bom pra fulano, beltrano ou sicrano. O que você considera belo ou justo talvez não seja tão belo e justo na opinião do seu vizinho, colega de trabalho, ou de quem quer que seja. E isso vale pra tudo e é absolutamente natural. Desde pequenos nos habituamos a lidar com o contraditório. E não se trata aqui de advogarmos uma filosofia pós-moderna e relativista. Pelo contrário, trata-se de reconhecermos a legitimidade da opinião divergente, ao passo em que reconhecemos a singularidade da pessoa, suas especificidades materiais, de meio, cultura, suas impressões subjetivas e sua história. E aí poderemos pensar x sobre determinada pessoa ou situação, à medida que outros pensarão y, ou z, e assim sucessivamente, dependendo da complexidade do quadro analisado e de suas possíveis interpretações. O que cabe, e isso é essencial pontuar, é que haja a possibilidade democrática do pensamento, do posicionamento diante de qualquer coisa. Numa sociedade de regime político democrático, há que ser assim. Não há como ser diferente sem que haja uma enorme contradição de termos. Cientificamente, racionalmente, tendo em conta as circunstâncias, o contexto, os diversos fatores condicionantes de um caso, tem-se maiores condições de representá-lo com fidedignidade. Mas em ciências humanas as coisas evidentemente não são matemáticas. Como dizia, há o caráter subjetivo intrínseco a ser ponderado e levado em consideração. 

Um negro pode falar com mais propriedade sobre racismo, por exemplo. Pelo menos sobre suas próprias experiências, que estão longe de serem as experiências de vida das pessoas brancas. Não quer dizer que ele esteja mais certo, ou que só ele possa expressar opinião ou análise sobre o assunto. Longe disso. A questão não é o lugar de fala como balizador epistemológico. A questão é a escuta como um processo humanizador, capaz de despertar a empatia. E não só isso, mas também a busca da materialidade do tema, de uma base empírica sólida na teorização e no exercício de elaboração do tema em sociedade. 

E falo isso com o claro intuito de me deslindar do campo dos que se posicionam pelo identitarismo. Tenho veementemente feito isso ao longo dos últimos anos. 

O identitarismo peca porque coloca como centro a questão da identidade, seja cultural, de raça, gênero ou opção sexual. E isso tem ocorrido muito. É bem característico do espírito do tempo, neoliberal e individualista, anti-marxista e anti-moderno no sentido que se desloca do eixo da estrutura de classes em que está colocado o modo de produção.




Insisto, o que norteia os marxistas é o método da práxis, do pensamento articulado entre a base produtiva e social com o conceito crítico e dialético. Mais objetivamente, falando em termos de identidades, implica em observar com atenção as diversas demandas, advindas das mais diversificadas experiências, tratá-las de maneira ética, dando espaço para que tenham voz na sociedade, progressivamente, nas instituições, meios de comunicação, como sociedade que caminha, paulatinamente, e em meio a uma acirrada disputa hegemônica. Entendendo e possibilitando entender que, como dizia no início, nossos posicionamentos são distintos, nosso lugar no mundo, nossa visão de mundo, enfim, em tudo ou quase tudo existe distinção. E que há de haver, por questão de respeito e de humanidade, uma interlocução sadia. 

Além de outro fato mencionado acima, que pensamos melhor quando pensamos juntos, e que cada caso é um caso, cada experiência traz em si algo de único e inigualável. A sociedade tem que levar isso em conta.

Não será tal predisposição uma carta branca a obscurantismos e similares no convívio social. A menos que se trate de religião ou pensamentos metafísicos de caráter individual e sem relação direta com as questões sociais. Porque cada um é livre para escolher entre as também diversas narrativas a respeito da origem da vida e do sentido do universo. De resto, estamos em sociedade e um bom convívio, harmonioso e sem violência, deverá sempre ser imperativo. Ou seja, desde que não se atente contra os direitos humanos fundamentais, os direitos civis e democráticos dos cidadãos, cada um que pense como bem entende. Um contrato social moderno basilar estimulará este modo de vida. E, no socialismo, superada a dirigência política burguesa, os homens se aprimorarão em uma cogestão democrática da vida.

Por isso é que por agora é imprescindível lutar para que se implementem políticas públicas que garantam acesso à educação inclusiva, que dê aos sujeitos os atributos necessários para o desenvolvimento de um senso ético e comunitário. Freireanamente falando, fazendo aqui honras ao educador brasileiro que extraordinariamente pautou a educação pela via emancipatória, humanística, que tão bem pontuou a necessidade de se garantir aos sujeitos a condição de automamente pensar o mundo, e poder assim discordar, criticar, propor quebras de paradigmas, e para o seu lugar propor novas bases. 

Fazemos isso à medida em que nos educamos em sociedade para o convívio com o diferente, para a compreensão da alteridade. Isto é, à medida em que superamos nossos impulsos infantis de intolerância com tudo aquilo que de alguma maneira nos contraria. 

Isso não é nada simples, porque tudo que se move sob os céus é perpassado por relações materiais e de interesse. É um trajeto histórico notável e pertubador, que todavia tem se encaminhado para a progressiva conquista de direitos, muito embora à custa de muita luta, e passando por algumas etapas de retrocessos, como a atual, em que nos batemos contra os capitalistas na luta por direitos trabalhistas básicos, ou por serviços públicos também básicos.

Mas enfim, hoje se sabe bem que as diferentes características das pessoas lhes proporciona experiências que tanto podem ser diferentes das nossas, como que podem ser causa de sofrimento. Não é só a classe social que conta, ok. Da segunda metade do século passado pra cá a sociedade evoluiu muito nesse quesito. Tem sido assim com a questão do negro, com a questão  dos homossexuais, dos indígenas, etc. E cabe observar que essas pessoas, como sujeitos de direito, devem ter suas peculiaridades asseguradas contra qualquer manifestação de preconceito ou violência. É para isso que se tem produzido teoria decolonial, que se tem pensado as especificidades do sul global, para a produção de um conhecimento que tenha horizonte ético e político consolidado, um conhecimento que no limite nos ajudará na maior das conquistas, que será a emancipação deste ciclo de exploração do homem pelo próprio homem. O socialismo virá. Uma hora ele vem.





 





sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O que será da política brasileira nos próximos anos?


Segundo turno, eleição pra presidente em 2014. Vocês se lembram? Dilma estava fazendo um governo ruim. Mas o adversário dela era um playboy safado, que todo mundo sabia que não prestava e que queria assumir a presidência da república pra voltar com um neoliberalismo ainda mais violento do que o projeto que estava em curso. Pois bem, mesmo sendo um elemento altamente suspeito, um picareta de marca maior e com projeto maldoso de governo, aquele cidadão mineiro residente no Rio, um famigerado playboy usuário de droga e agressor da mulher, cínico, hipócrita, mentiroso, dissimulado maldito, teve mais de 48% dos votos, perdendo pra Dilma por uma estreita margem de 3 milhões e meio de votos. 

Notem que a polarização política era classista e muito acirrada. No entanto, não havia movimentação de extrema direita declarada. De 2018 pra cá que a situação tem evoluído neste sentido. 

O meu medo é que agora, nesta eleição de 22, tendo o Brasil passado pela trágica experiência de uma gestão de extrema direita, genocida inclusive, o país se consolide agora num modelo extremamente semelhante ao regime político norte-americano, com uma oposição de praticamente duas correntes políticas apenas: uma de extrema direita, e uma de centro-direita. Sim, o Partido Republicano é de extrema direita e o Partido Democrata é de uma direita mais amena. Aí a esquerda americana precisa toda eleição declarar voto útil no menos pior, pra não ver os malucos republicanos voltando ou permanecendo na Casa Branca.

E o meu medo é justamente porque mesmo o pior governo da nossa história tem tudo pra chegar agora nesse marco dos 48%, que o desgraçado direitista do Aécio já chegou 8 anos atrás. É uma loucura, mas é Brasil, é o regime político dos ricos, onde eles tem uma série de fatores pra manipular o eleitorado e pra mexer ideologicamente com a cabeça da população. 

Então o que seria uma polarização esquerda x direita se encaminha pra polarização extrema direita x centro-direita, ou centro. De esquerda não vai ser. O Lula vai governar acuado pelo sistema, com a sombra do Alckmin, do mercado, do centrão, do imperialismo, etc. Tomara que ele não ceda pras privatizações. Se estancar a sangria das privatizações, já está ótimo. 

Mas e o que será do bolsonarismo, este fenômeno neofascista assustador que deixaram se gestar no Brasil? O Xandão vai colocar o genocida atrás das grades? O STF vai pegar as maracutaias da milícia? Não sabemos. Se sim, aí o movimento reduzirá bastante, dando ensejo para uma nova conformação do bloco direitista. Se não, aí a coisa se consolida nessa polarização muito semelhante à americana. 

E isso seria extremamente deletério para o Brasil. 

Temos também que ver como vai evoluir a direção política pós Lula. O homem já disse que não será candidato à reeleição em 26. Outra liderança surgirá. Muito provavelmente uma sucessão encaminhada pelo próprio Lula. Sem corrida política pelas bases dos partidos, o que também é sinal da apatia nos movimentos sociais e na esquerda como um todo. 

Ou seja, os prognósticos para o próximo período são ruins. Não existe a curto e médio prazo a expectativa de uma movimentação política em direção a um projeto emancipatório ou pelo menos de desenvolvimento nacional. 

Alguém poderá dizer: Ah, mas, Mário, o Lula vai apontar pra isso, com o Lula o Brasil vai ser gigante, se industrializar e tal. Creio que é muita dose de otimismo pensar assim. As coisas aqui são extremamente complexas, geoestrategicamente falando, das correlações de força entre classes, dos interesses econômicos em jogo, da ausência de uma direção política operária, da própria natureza política do PT, inclinada à conciliação, disposta a encurtar o programa pra contar com o consentimento do andar de cima. Enfim, o cenário é de disputa contra a extrema direita, pelo mínimo de dignidade e por um regime que se mantenha democrático apesar do tempo da economia ser um tempo de profundos ataques aos trabalhadores. Não temos horizontes políticos de emancipação. Não nos tem sido permitido um imaginário político revolucionário. Isso é sintomático nas juventudes, observem. Os jovens ou estão circunscritos às ideologias identitárias e movimentistas, com coletivos disso e daquilo, que não se entendem como classe trabalhadora que aspira ao poder político; ou estão por aí atrás de algum consolo existencial ancorado na forma mercadoria. 

São tempos tenebrosos pra nação.








sexta-feira, 7 de outubro de 2022

O pensamento político de Maquiavel

(Que seu professor de história no ensino médio provavelmente não te falou).



Tido como o criador das ciências políticas, Maquiavel é um pensador da Renascença que antecipa pontos importantíssimos que seriam depois trabalhados por teóricos do quilate de Hobbes e Marx. A questão do contrato social, que seria trabalhada no século seguinte por Hobbes, Locke e Rousseau, e a questão da luta de classes, que seria super-elaborada por Marx no século 19, são questões determinantes do pensamento político maquiavelino. Apesar de ter entrado para a história com o sinônimo maquiavélico, que significa o desejo despudorado e antiético pelo poder político, Maquiavel tinha um pensamento bastante democrático e inclusivo. Prova disso são seus principais escritos: O Príncipe e Discurso para a primeira década de Tito Lívio. 

Ao longo de sua obra O Príncipe, o autor se dispõe a traçar os modos como um governante pode permanecer no poder. E estrutura sua escrita recorrendo a exemplos históricos, e colocando de modo pragmático quais seriam as astúcias e artimanhas de um homem disposto ao poder político. Mas não por isso Maquiavel prescinde de considerações morais e éticas. Com efeito, ao longo do texto lastima os exemplos tirânicos e faz questão de elogiar os governantes humanistas. 

Para entender Maquiavel é necessário compreender o homem do renascimento. Maquiavel era um moderno, que vinha de um rompimento com o mundo medieval e suas concepções teocêntricas de mundo e sociedade. Para Maquiavel importavam os valores de nobreza, hombridade, virtude, etc, mas era necessária também uma análise fria da política. E política são interesses em jogo. Os homens se unem em sociedade por interesse de auto-preservação, optam pela vida coletiva para fugirem de eventuais violências, mas precisam determinar para essa sociedade um código que resguarde internamente seus cidadãos, para que o convívio seja minimamente harmonioso e para que a vida siga funcional para todos. O homem para Maquiavel não é um ser naturalmente bom, mas um sujeito de interesses, e que em busca de seus interesses fará o mal. Cabe então que a sociedade civil se conforme politicamente para precaver a tirania e o despotismo, a violência e a injustiça. 

Há modos variados de se chegar a isso, distintos regimes políticos que podem ser empreendidos, mas que em suma precisam nascer de um pacto que se arranjará pela política. E a política é potência, o direito é potência, como diria o filósofo Espinosa.  Esse conceito é determinante em Maquiavel. As forças políticas em jogo se arranjarão de modo a estabelecer esse poder político no qual a sociedade encontrará seu funcionamento. 

Os grandes da sociedade naturalmente vão querer impor seus desejos, ao que o povo fará objeção, porque há os que querem oprimir e do mesmo modo há os que não querem ser oprimidos. E haverá então um mecanismo de contrapesos. Contra os interesses dos poderosos, haverá a contramola que resiste. A sociedade é imersa em interesses, em interesses materiais. O rico desejará acumular, e o pobre lutará por não passar fome. O poderoso tentará permanecer no poder e usufruir deste poder, e o povo fará o possível para não se ver ultrajado e explorado. 

Se o governante for sábio, se for arguto e perspicaz, tratará o povo de forma benéfica, de modo a não ceder ensejo para ocasiões de descontentamento e rebelião. Como diz em O Príncipe, o governante pode se impor pela força, mas é preferível que seja amado. 

E deste modo a astúcia do governante será provada por uma constituição civil que estabeleça um saudável equilíbrio entre as forças políticas, entre os grandes e o povo. A participação do povo na política será importante para que este tenha seu espaço e encontre soluções para suas demandas, de modo que não se verá excluído, mas partícipe, e que não tentará por outras vias fazer cumprir o seu direito. A lei então tratará de consolidar uma sociedade harmoniosa, onde os grandes serão impedidos de usurpar o povo, e este, conciliado com as frações poderosas por meio de um entendimento político, permanecerá pacífico.

Poderá haver tensionamentos políticos nas altas esferas do poder, com conspirações palacianas e tentativas de golpe, mas que sempre encontrarão no povo resistência, pois que este batalhará por seu governante. 

De tudo isso, depreendemos que o pensamento político de Maquiavel é bastante democrático, e suas concepções e análises  são bastante avançadas para sua época. A análise de base material, apesar dos laivos moralizantes e de resquícios supersticiosos do pensamento, é a análise realista de antagonismos sociais postos, que, como Marx assinalará depois, é histórica e dialética. A história da sociedade é a uma história de luta de classes. E o que determina o poder político é a força. 

Para os homens do tempo de Maquiavel, a fortuna era elemento significativo das narrativas e do entendimento. Bem como a virtú. Ao longo de seus textos vamos nos batendo com essas concepções de boa ou má sorte, de auspiciosidades, ou de considerações que podem parecer muito moralistas, mas tais concepções ladeiam uma concepção de teoria da política muito progressiva para o seu tempo, que é eminentemente material e realista, pragmática e de aspiração democrática.




* Fortuna: sorte ou azar, o destino e suas vicissitudes. 

* Virtú: virtude, mérito de um pensamento perspicaz e sábio. 





quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Cuba e o Cameraman


Ontem tava procurando coisas interessantes na Netflix e me deparei com esse filme. De 2017. Desconhecia sua existência. Peguei pra ver e achei realmente muito bom. 

É um documentário realizado por um jornalista norte-americano, Jon Alpert, que começa a viajar pra Cuba aos vinte e poucos anos, em 1975. Ao longo dos anos ele volta à ilha muitas vezes e visita as mesmas pessoas, pra saber como elas estão. E nisso vai fazendo amizades. Por mais de 40 anos Alpert acompanha essas pessoas, uma delas o comandante Fidel Castro, com quem Alpert estabelece também uma bonita relação de amizade.

É um filme muito bonito, muito comovente. Além de tratar do desenvolvimento da situação política no país, claro, ao longo de praticamente todos os períodos da revolução cubana, o filme tem esse olhar sobre o tempo, o envelhecimento dos personagens, suas dores, suas dificuldades, seus altos e baixos, em excelentes ensejos para a reflexão existencial.

Cuba e o Cameraman é um elogio ao magnífico povo cubano, ao seu espírito revolucionário, de soberania e de grandeza. Um povo que soube contornar os momentos mais graves e assustadores de um embargo econômico permanente, um embargo criminoso e extremamente vil. Com o fim da União Soviética, na década de 90, este povo precisou se reinventar e se sustentar com o turismo, sem abandonar a revolucionária e gloriosa trajetória de insubmissão ao monstro imperialista americano. 

Praticamente todos os personagens do filme expressam essa grandeza moral, essa disposição para a luta e para a autodeterminação cubana. São personagens que expressam a simpatia e a alegria de seu povo, sua força e sua humanidade. 

Os personagens mais emblemáticos são três irmãos velhinhos que trabalham como camponeses. De uma energia absolutamente impressionante. O retrato perfeito da simpatia cubana e da resistência de seu povo. Além de Fidel, claro, um homem que a câmera de Alpert revela ser muito mais que o carismático líder político e cérebro da revolução. Fidel se revela cordial e sensível. Um homem verdadeiramente admirável e por quem o jornalista genuinamente se afeiçoa.

Uma das cenas mais bonitas do documentário é o jornalista carinhosamente beijando a testa de Fidel já velhinho, poucos meses antes de sua morte. 

Recomendo bastante esse filme. Não percam. É o tipo de filme que não podemos deixar de conferir. Uma pérola. Uma história imperdível da grandeza da revolução cubana e de seus personagens, sejam figuras públicas ou anônimos homens do povo.

Viva a revolução cubana!

O sentido da vida é se insurgir contra as injustiças do mundo.




terça-feira, 9 de agosto de 2022

Universal do reino do pesadelo


Entrei numa Universal domingo. Vai vendo, gente. Entrei na Universal da avenida Ana Costa, em Santos. Tava com tempo, passando pela avenida, e fiquei curioso de entrar e ver o culto.

Já são umas três ou quatro vezes que entro pra observar. Fico uns 20, 30 minutos. A sensação é quase sempre a mesma. Sinto que aquele pessoal é perigoso. Me sinto mal.

Eles deixam vários obreiros ao lado dos bancos. Os caras ficam como policiais ali só de olho no movimento das pessoas. Aí você levanta pra ir embora e vem um obreiro correndo atrás, te puxando pelo braço, perguntando o porquê de vc ir embora. É assustador.

Já assisti várias vezes os cultos pela tv, nesses canais de tv aberta que a Universal insere programação. 

A análise feita de uma experiência presencial é ainda mais assustadora e corrobora o que qualquer pessoa mais observadora sabe. 

Tudo ali é muito teatral. Extremamente pensado pra gerar um choque emotivo. A iluminação, o som, tudo. O modo como o pastor conduz o evento, alternando tons de voz. Aí vocês tem que entrar um dia pra ver de perto. Tudo milimetricamente articulado pra induzir o transe. Aquilo ali é mais catártico que qualquer cinema ou teatro. 

O sujeito simples chega ali e é tragado pela atmosfera da lavagem cerebral, seja pela encenação ritualistica ou pelo discurso. Um discurso captador de gente tonta, gente que cai feito patinho no esquema. 

É muito triste. São milhões e milhões de pessoas nessa roubada.

E, assim, você entra lá e você vê como a coisa é o retrato religioso nítido do tempo que a gente vive. É a religião do neoliberalismo. Desconheço um culto que seja tão afeito à lógica de mercado. A Universal é um shopping da fé. Da fé mais destituída de senso ético e humanista, claro. É um templo de adoração à mercadoria, fetichismo brabo, com um pouco só de sentido religioso e metafísico.

Façam essa experiência um dia, entrem e passem meia hora num antro desses. É interessante pra observar como a experiência religiosa num lugar desse serve para alienar e descerebrar totalmente o cidadão. Pra observar o fundo de poço em que chega o neoliberalismo. 

A religião pode se tornar muito problemática. Poderia aqui tecer várias considerações e tal. Mas quero me ater nisso, o quanto pode haver de degeneração nesse encontro de religião e neoliberalismo. A Universal é o retrato fiel da barbárie social e política das últimas décadas. Barbárie mesmo. Besteira querer atenuar o peso da situação. É barbárie, franca e abertamente.




sábado, 25 de junho de 2022

Torre das Guerreiras e Outras Memórias


Vocês lembram da história da chamada torre das donzelas, no antigo prédio do presídio Tiradentes, que serviu de cárcere para as mulheres presas políticas na ditadura? A professora Ana Maria Estevão acaba de lançar um livro sobre o tempo em que lá esteve, processada pelo estado brasileiro em 1970.

Sou aluno da Ana Maria na universidade e portanto suspeito pra falar, mas quero elogiar o livro dela. Estive no lançamento aqui em Santos há 15 dias atrás. Um negócio comovente demais. Chorei pra caramba lá. Todo mundo chorou. Fazia um frio cortante na Estação da Cidadania, o tempo tava fechado. Cheguei lá e tinha música ao vivo, chazinho, café. Ambiente bem acolhedor. O pessoal homenageou a Ana Maria e depois ela própria fez a apresentação do livro. Não pude ler imediatamente mas o fiz ontem, 4 horas mergulhado no livro. Não dava pra parar de ler. É realmente muito interessante e bonito.

Tem a parte dolorosa e sombria da tortura, porque o livro é sobre repressão e ditadura militar. E a coisa era muito feia nos anos de chumbo. Os relatos da tortura são tenebrosos. Mas o livro está longe de se resumir a isso. É um retrato muito bem feito de uma época, porque a história da Ana Maria é uma porção de histórias do povo brasileiro nas décadas de 50, 60, 70 e 80. História de migrantes nordestinos, trabalhadores simples do povo, moradores dos subúrbios das grandes cidades, histórias da religiosidade popular do brasileiro, do surgimento da Teologia da Libertação, dos movimentos estudantil e operário, do maio de 68, etc, e, o ponto culminante, a luta política pela redemocratização, os movimentos políticos de vanguarda, a guerrilha e a clandestinidade. E depois as derrotas, as prisões, torturas, exílios e a morte de muitos daqueles que decidiram combater os milicos. É uma história dura, de muita dor e muito trauma, mas, como eu dizia, o livro da Ana Maria fala também dos pontos positivos, das histórias bonitas e engraçadas. São muitas histórias engraçadas. O livro transborda histórias engraçadas, e histórias de afeto, de humanidade, de amizade. É um livro muito bonito. A Ana Maria é uma mulher admirável, muito inteligente, muito reflexiva e muito afetuosa. 

Esse livro Torre das Guerreiras, com prefácio da Dilma Rousseff, que dividiu cela com a Ana Maria por quase um ano no presídio Tiradentes em São Paulo, é um livro que precisamos divulgar e propor a leitura, sobretudo aos jovens, às novas gerações que pouco ainda sabem sobre esse período da nossa história. É a história da Ana Maria, mas é também a história do povo brasileiro, de uma experiência política e social muito rica e intensa, que a Ana Maria como intelectual reflete com agudeza e correlaciona com os acontecimentos do mundo no período, de suas viagens no exílio, suas impressões e meditações.

Não deixem de ler esse livro!