segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A cara do Bukowsky

Ontem na missa fiquei com a impressão de já conhecer um senhor que estava a poucos metros do meu banco. Sabe quando a gente pensa que conhece a pessoa de algum lugar e tenta puxar na memória? Pensei alguns instantes e me lembrei. Certamente não o conhecia; não que eu me lembre. É que o sujeito era a cara do Bukowsky. 
Curioso entrar numa igreja e se deparar com um cidadão que te lembre figura tão lendária quanto Bukowsky. A comparação foi inevitável. 
Podia tê-lo visto numa feira, num mercado, num boteco sujo de periferia, qualquer lugar; mas não, foi justo na missa dominical que esbarrei com o gêmeo do poeta louco, o indelicado criador de uma literatura obscena e despudorada que tanto fascina a gerações de jovens indomesticados. 
Ao contrário do velho junkie, desgrenhado e com barba por fazer, meu Bukowsky aparentava sobriedade. Com a barba feita e uma postura de senhorzinho piedoso, acompanhou toda a missa com atenção e ar devoto. De resto parecia muito com o escritor, só que magro; mas com o mesmo narigão convexo e pele curtida, com velhas marcas de acnes e rugas de fortes traços. 
É que a gente vive num país em que a grande maioria do povo não tem o hábito da leitura. Sou capaz de apostar que o indivíduo nunca foi abordado por alguém que o tenha achado a cara do autor underground. 
Muita gente também desconsidera o valor literário de Bukowsky, por considerar sua obra frágil e rasa, de qualidade duvidosa. Não quero entrar no mérito aqui. Aproveito, pra pontuar de passagem, que há um elemento subjetivo a ser considerado, e, que, num país como o Brasil, em tal contexto de imbecilidade generalizada, muito bom seria se as pessoas tivessem a ventura de identificar um homem idêntico ao indomável beat. Aliás, talvez seja isso que falta ao brasileiro médio de hoje em dia, tomar conhecimento de uma literatura subversiva, capaz de desnudar a miséria cotidiana e se rebelar contra a cretinice vigente; pra desmistificar um pouco a realidade, quebrar alguns arcaicos paradigmas...

Obs: Encontrei o similar numa celebração às seis da tarde, na antiga igreja do largo da matriz, na Freguesia do Ó, bairro tradicional da capital paulista. É por lá que anda o gêmeo perdido do velho Buk... que Deus o tenha!

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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Acontece nas melhores famílias

                                                                                       conto

Resultado de imagem para letreiro de motel, imagemHelena vinha desolada pela rua; na cabeça um turbilhão de memórias do ex-namorado. Abriu a porta de casa e deu de cara com a mãe. Abraçou-a e chorou por mais cinco minutos em seus braços. Lamuriava-se da má sorte. Fora pesado o incidente do motel. No caminho de volta já havia ligado pra duas amigas mais próximas, pra uma prima de primeiro grau e pra outra de segundo grau, além do telefonema para a mãe, sendo este o primeiro.
O rosto borrado da junção de maquiagem e lágrimas era só um detalhe; seus olhos estavam inchados, seu nariz vermelho. Sua feição era de derrota. O pai chegou meia hora depois e encontrou mãe e filha no sofá da sala, em clima de velório.
_ O que tá acontecendo aqui?- perguntou afrouxando o nó da da gravata e tratando de colocar a maleta em um canto.
_ Parece história de filme, Durval!- respondeu a mulher. _ Tua filha pegou o ex com outra no motel.
O pai suspirou com pesar, sentou ao lado de Helena e beijou-a com ternura na testa.
_ Vai ficar tudo certo, filhinha. Calma. - consolou-a
_ Eu falei, Durval! - retomou a mãe. _ Falei que não ia dar certo esse emprego de atendente de motel. O garoto garanhão chegou lá com uma periguete. Só anda com moça rampeira depois que terminou com essa aqui!
O pai fez uma careta, como quem não soubesse o que dizer. Torceu os lábios, mirou o teto.
E a mulher prosseguiu.
_ Sabia que essa criatura ia ver coisa que até Deus duvida.
Helena fez um gesto de asserção com a cabeça e disse:
_ É cada coisa que eu vejo! Deus o livre! - interrompeu brevemente a fala e traçou sobre si um sinal da cruz. _ Semana passada a Neusa da limpeza contou que o 217 tava todo sujo de sangue. Ela entrou pra fazer a arrumação e encontrou o quarto com sangue na cama, no chão do banheiro...Um horror! Seu Zeca da segurança disse que a espadada deve ter comido solta.
Os pais desataram a rir. Helena esboçou um sorriso.
_ Tá vendo- disse o pai- já tá melhor a minha menina!
_ Mas eu não quero voltar mais lá, pai- respondeu Helena fazendo cara de criança quando pede algo e aninhando-se no peito do velho.
_ E como vai fazer pra pagar o cursinho? - perguntou a mãe.
_ Deixa comigo- disse o pai dando palmadinhas no braço da mulher. _ Vou segurar sua onda- disse lançando uma piscadela para Helena.
_ Agora vai lavar essa carinha de anjo emburrado- concluiu.
Helena levantou de um pulo e subiu as escadas correndo. Não deu um minuto e gritou lá de cima:
_ Manhêêê, faz uma lasanha pra mim?!

sábado, 15 de outubro de 2016

E bota pano nessa manga!

Resultado de imagem para obesidade, imagensUma amiga querida me sugeriu de escrever sobre obesidade. Respondi que o tema dá pano pra manga. E bota pano nessa manga! Muito pano. Uma das queixas mais frequentes entre gordinhos é a dificuldade de encontrar roupas que lhes sirvam. Eu mesmo sofro com esse negócio de roupa; não por inconvenientes na hora de ir ás compras, mas por perder roupas que outrora me serviam. E a idade vai chegando e a gente nunca emagrece. Acaba perdendo a roupa.
Um dia desses vi numa matéria de jornal que fica mais difícil perder peso depois dos 30. E a obesidade é um fantasma que me persegue. Eu literalmente tenho corrido contra ela. Me explico. Acontece que meu índice de massa corpórea está em 29, e a média é entre 20 e 25. Eu tô no limite do sobrepeso, que engloba os IMC's de 25 a 30. Do 30 em diante é obesidade. E pra combater o fantasma do ''grau obeso'' eu costumo correr no parque.
No início eu corria pra emagrecer. Hoje já me contento em correr pra manter o peso ou não engordar mais. Tomo um remédio que retém líquido e aumenta o apetite, já passei dos 30, como disse lá em cima, e tenho de admitir que tenho um biotipo mais propenso ao rechonchudo que ao atlético.
E a gente tem que se aceitar como é, né. Difícil aceitar nossas limitações. Mas também fica mais fácil pra relaxar diante da inegável verdade ou da inviabilidade evidente. Tá ok, a mãe natureza me fez mais fofo que o comum e não tem mesmo como ser magrinho. Melhor engolir a seco esse destino e não me afligir muito diante de uma apetitosa barra de chocolate ou algo similar.
Aliás, dá pra pensar numa bariátrica pra daqui uns anos. Conheço muita gente que fez e se deu bem, tá magrinho por aí curtindo a vida com saúde. O negócio melhora mesmo a autoestima.
E outra, é melhor pensar em entrar na faca do que aceitar a dura sina das dietas e da ginástica. Ficar sem doces e guloseimas pode ser uma tortura pra alguém com ansiedade, por exemplo. Privar-se do prato predileto pode acabar com a vida dos mais deprimidos. Comer é uma das nossas fontes de prazer mais constantes. E o gordo, verdade seja dita, é aquele cara que goza muito bem a vida. Melhor o desfrute de uma alimentação rica em carboidratos e envolvente ao paladar do que uma refeição sem graça, aquela que soa mais como ração do que como deleite.
A dieta tem tudo pra virar neurose, distúrbio. Lá em casa tenho minha mãe que é gordinha também. Chega a ser engraçado entrar na cozinha e ir se deparando com nossos recursos de emagrecimento. É um pote de semente de chia aqui, um chá verde ali, um chá de hibisco acolá...uma loucura. Gojiberry também já tentamos.
Academia eu fiz, mas não faz meu tipo. Vejo com melancolia esse pessoal que topa malhar em recintos como esses. Aquilo dá um tédio danado só de ver. Quando passo correndo no parque também vejo consternado aquelas moças que fazem treino funcional. É gente funcional fazendo exercício funcional. Me dá uma angústia. Pra ser bem sincero, gosto de ver as mocinhas corpulentas e bonitas, mas só, fico até com pena de vê-las naquele troço maçante. E tem aquelas músicas chatas tocando na caixa de som. Dá fastio só de ouvir. É o pior da música pop numa combinação sinistra. Personal trainer devia ter noção de música na faculdade. Fica a dica aos catedráticos da área, caso algum deles caia nesse blog por engano. Nunca se sabe, mas seria uma inovação e tanto. Nunca vi academia com música de qualidade.
Aos gordinhos de plantão eu desejo sorte. E que o futuro nos seja pródigo em melhores soluções contra a adiposidade. Bem sabemos que ela dá um trabalhão.

domingo, 9 de outubro de 2016

O carpideiro

                                                                                        conto

Tio Álvaro sempre foi um sujeito atípico. A vó sentava a família na mesa da fazenda e passava horas contando suas peripécias de criança, suas dúvidas de adolescente ou seus arroubos de juventude. Os olhinhos da matrona brilhavam ao falar do caçula, filho mais chegado, rebento que por nada no mundo abandonava a barra da saia da mãe. Tio Álvaro era mesmo muito carinhoso, afeito à vida familiar, zeloso de seus afazeres no rancho.
A vó sentava lá e desandava a falar das memórias que tinha. E a gente adorava. Em dias de chuva o tédio não nos abatia. Eram dois palitos pra gente preparar um chocolate quente com bolinho e cobrar da vó um ''causo''. A gente sabia que a velha daria um jeito de falar das histórias do filho predileto, mas ninguém falava nada. No fundo a gente ia nutrindo admiração pelo espírito sensível e peculiar do tio. E no fundo a gente também não via problema algum na predileção da vó por ele.
Curiosa essa minha lembrança de infância. Isso não tem exatamente a ver com a história  que vou contar mas sublinha um elemento que pode fazer todo sentido mais adiante.
Pois bem, acontece que semana passada estive com tio Álvaro, por conta de um desses eventos em que se reúne a família inteira. Sentei ao seu lado numa das refeições e conversamos longamente sobre muitas coisas. Muitas coisas mesmo. Há um bom tempo eu não encontrava o tio, e, pra ser sincero, nem me lembrava das excentricidades da figura.
Ele principiou a falar sobre sua nova vida de aposentado e logo me espantou. É até difícil de acreditar, mas, na falta do que fazer, o cara acorda cedo, e, enquanto engole o café, trata de procurar na sessão de obituários do jornal algum velório pra visitar.
_ Mas por que isso, tio?- perguntei de cara.
_ Ah, filho, velório é lugar de muito respeito. O luto, o respeito ao luto, à dor, ao sentimento...
_ Hum, redargui eu como quem gostaria de ouvir mais pra entender melhor.
E o tio prosseguiu:
_ Então, eu vejo no enterro uma coisa bonita que não se vê por aí todo dia. A morte une as pessoas, as famílias, coisa que a gente só vê em época de natal, ano novo...
Não resisti e comecei a indagar sobre os detalhes mais picarescos, se ele conversava com a família do morto, se se aproximava do caixão, e, nesse caso, se encostava no defunto, essas coisas.
Ele disse que às vezes até chorava junto com o pessoal, que rezava, que se emocionava, que, quando ficava mais à vontade com o grupo, ou era deixado a sós com o corpo, que se aproximava e tocava na mão do falecido.
Me falou de algumas particularidades dos velórios, das diferenças entre funerais católicos e protestantes, enterros convencionais e crematórios. Falou sobre a má impressão que tinha dos cemitérios verticais, de sua admiração pelo estilo neoclássico das campas de um cemitério x, da opulência das jazidas do cemitério y...
Tio Álvaro, pasmem, passou mais de meia hora me falando de antigas e novas tendências no ramo do sepultamento.

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