Não é a primeira vez que trago aqui no blog o assunto anti-manicomial. Com certeza não vai ser a última. É um dos temas que me fascina na vida, assim como tudo ou quase tudo que é relacionado à contracultura, ao que é tachado como indesejável, tabu, ou subversivo e contra-hegemônico nessa sociedade doentia em que a gente vive. Recentemente, inclusive, fiz aqui uma crítica sobre um filme que retrata o movimento hippie. Enfim, são temas recorrentes neste blog. E a crítica, a arma da crítica, a visão crítica, é o que desejo deixar fluir.
Essa semana me caiu na mão o livro Cinzas do Juquery. Como eu me interesso por tudo o que diga respeito à psiquiatria, loucura, manicômio e afins, comecei logo a ler.
O livro é a história de um auxiliar de enfermagem que ficou 27 anos trabalhando no complexo do Juquery, em Franco da Rocha, entre as décadas de 60 e 90. O complexo do Juquery era gigantesco, chegando a comportar 18 mil internos, o dobro de sua capacidade. Era formado por várias colônias, um manicômio judiciário e um hospital central.
José da Conceição, o funcionário que reuniu suas memórias neste livro, era migrante baiano, chegou em Franco da Rocha aos 17 anos e em pouco tempo entrou no serviço do hospital psiquiátrico via concurso público. Logo que ingressou foi enviado para o manicômio judiciário, onde permaneceu 18 anos. Então a primeira parte do livro é mais sobre psicopatas de alta periculosidade em uma rotina de cadeia do que sobre o sofrimento psíquico exatamente. E aí José da Conceição desfia uma série enorme de histórias pesadas e inusitadas. Algumas muito engraçadas, outras, em sua maioria, assustadoras e de embrulhar o estômago. O livro todo é muito pesado, apesar dessas muitas histórias que fazem rir que mencionei aí acima.
A começar pela primeira parte do livro, com a descrição da prisão, passando depois pelas colônias, com suas especificidades (porque eram pavilhões que abrigavam doentes com diferentes quadros), o livro é recheado de histórias de desumanização e abandono, histórias de pessoas que foram atiradas num poço de degradação física e moral, histórias de assassinatos, violência permanente, sujeira, amontoamento de gente, etc. Como num campo de concentração nazista, só que piorado, com pessoas irreconhecíveis por suas cabeças raspadas, com trajes esfarrapados, pessoas abatidas e desdentadas, a maioria absoluta impregnada de tarjas-preta e completamente alheia à realidade.
José da Conceição pegou a pior fase do hospital psiquiátrico, onde o Juquery já estava completamente lotado e sucateado, caminhando para o fim de um ciclo; porque logo viria a reforma psiquiátrica e o hospital passaria a ser desativado gradualmente. Mesmo chegando ali no final dos anos 60, José da Conceição chegou a preseciar sessões de eletrochoque. Os relatos são impressionantes, bem como os relatos das rebeliões no pavilhão judiciário, os assassinatos, os serial killers famosos que o autor conheceu por lá, suas personalidades sombrias e enigmáticas.
Outro elemento constitutivo da obra são os relatos escatológicos. Acredite, é um livro difícil de ler em alguns trechos. Inumeráveis histórias dos pacientes em meio à fezes e urina, muitas vezes manipulando as fezes com a mão, atirando as fezes uns nos outros ou nos médicos e funcionários. Curiosa a relação do doente mental em estado avançado com o manuseio das fezes.
Tem muito sangue na história também, o relato de assassinatos que ocorreram entre as paredes do Juquery, e os de fora, que fizeram muita gente ir parar lá dentro. O relato dos quadros patológicos, dos remédios utilizados, dos procedimentos hospitalares; a psicologia do sujeito que era funcionário, seus sofrimentos e dificuldades; inclusive a história de um funcionário que não suportou o peso psicológico de trabalhar no manicômio judiciário e acabou se tornando interno numa das colônias, numa condição de profundo adoecimento mental. Não vou dar spoiler aqui. Vale a pena conferir.
Enfim, o livro é muito interessante. Foi lançado na pandemia pela Editora Noir, que eu não me lembro de ter conhecimento antes. Presumo que seja uma editora pequenininha. Apesar do livro ter uma bonita capa, com papel de revista, o material vem com muitos erros de digitação e revisão. Uma pena, porque é um livro que mereceria mais atenção e divulgação.
Importante também dizer que José da Conceição, após esses anos todos trabalhando no manicômio judiciário, se graduou em enfermagem e inclusive fez pós graduação, vindo a trabalhar como professor e palestrante. É um sujeito culto e isso fica claro ao longo do texto. É realmente um achado esse livro. E além do mais José da Conceição é desenhista. Ao longo das páginas há muitos desenhos seus retratando os personagens do livro, e croquis e mapas da estrutura do complexo hospitalar.
Recomendo muito essa leitura.