segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Dia de fúria

                                                                         Conto

Aconteceu numa loja de calçados. Num shopping que não vou nem mencionar o nome. Entrei lá pra procurar um tênis de corrida. Tava me remoendo num canto, minha angústia era ter de pagar 120 contos num tênis simples de corrida. Ok, tinha um de 100, mas esse só tinha amortecedor no calcanhar. Teria que desembolsar mais 20 pra garantir amortecedor atrás e na frente e sair com a consciência tranquila por proteger meus joelhos do impacto da corrida. E olha que tem gente que leva tênis de 500, 600 pilas! Eu queria uma coisa barata, que caísse bem ao meu bolso e que não me deixasse pesaroso depois por arrebentar rapidamente em alguma pista de terra nas quais me aventuro a ser atleta amador.
Como dizia, tava lá num canto, entretido com minhas próprias lamúrias. Mas foi impossível não notar o que começava a acontecer na minha frente. O primeiro movimento mais brusco foi um empurrão numa caixa de sapatos que repousava num dos balcões. Foi então que a moça começou a xingar, com xingamentos que iam dos menos para os mais ofensivos, progressivamente. Foi aumentando o tom de voz, num crescendo de fúria. Em menos de um minuto estava aos berros.
Eu já ouvi muito sobre casos de Burnout, já vi cenas de fúria pela tv, nessas reportagens curiosas de fim de telejornal. Enfim, nada parecido com a experiência de presenciar um de perto. Confesso que tive medo. Nunca se sabe, podia sobrar uma braçada pro meu lado, qualquer coisa assim.
Acho que a sorte do pessoal lá é que em uma loja de calçados não há muita coisa a se quebrar em momento de fúria. Até que a moça fosse contida, voaram pelos ares alguns poucos ítens de escritório: o teclado do computador, um telefone, um negócio que parecia ser um grampeador, coisas do tipo.
O mais constrangedor não ficou pelo déficit material da encrenca, mas pelas coisas que a vendedora dizia. Pois é, vendedora. Isso deu pra perceber pelo conteúdo dos berros.
- Sai daqui seu filho da puta! - gritava pra um colega da loja. - Eu tenho que bater essa meta!! Eu tenho que bater essa meta!! O que vai ser da minha filha se eu perder esse emprego?!
- Calma, Júlia, fica quieta! - dizia uma mulher tentando acalmá-la. Parecia ser a gerente do estabelecimento.
- Desse jeito eu vou voltar a fazer programa, Cláudia! - respondia a jovem entre soluços, o rosto vermelho feito um pimentão.
O clima ficou tenso por uns dez minutos. Esperei pra efetuar o pagamento do tênis. As coisas foram se acalmando e logo veio um rapaz trazendo um copo d'água. Acariciou-lhe o cabelo, ajeitando alguns fios revoltos.
- Tá tudo bem, fica tranquila, tô aqui com você.

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segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Natal polêmico

Não dá pra jogar a polêmica pra debaixo do tapete. Natal é uma data polêmica mesmo. Eu sou católico e sempre comemorei a data, mas não da mesma forma todas as vezes. Quando pequeno, participava das ceias de família, porque criança não tinha outra alternativa a não ser fazer o que o pai e a mãe achavam melhor. Na adolescência comecei a me rebelar. Um dos melhores natais vivi aos 16. Fui com um pessoal de uma comunidade da igreja passar o natal com os pobres, na rua, na Praça da Sé pra ser mais específico. Pronto, meus natais nunca mais seriam os mesmos. Larguei aquela coisa clichê, cafona e hipócrita de aguentar parente chato depois de se empanturrar de peru e arroz branco com passas, quando não bêbado, e fui encontrar um sentido mais genuinamente cristão e virtuoso pro meu natal. Por que tanta gente se empanturrando enquanto outros estão na miséria? A pergunta que não quer calar, a indignação a transpassar o peito. A contradição colocada.
Ninguém merece um tio do pavê, ou um primo pra sorrir e abraçar e nunca mais trocar palavra até o próximo natal a menos que haja um velório antes. Não, ninguém merece. Tudo bem que natal é tempo de congraçamento, unidade, todas essas coisas. Mas também não dá pra forçar a barra de aguentar gente chata e fazer uma média como se tudo estivesse muito bem. A menos que a gente tope se render ao cinismo e à dissimulação e conviva bem com isso nos meses subsequentes.
Tudo bem, há muita gente que não se importa com isso, mas se vc, assim como eu, não suporta falsidade ou fingimento, o melhor a fazer é romper com o velho ciclo do natal das aparências, esse natal inautêntico das famílias decadentes, pra ir caçar coisa melhor a fazer.
Como católico praticante, eu sugiro algo pra espiritualizar a ocasião. Já que o natal foi cooptado e degenerado pelo sistema, sabemos como a antiquada lógica do consumismo, que nada tem a ver com o espírito natalino, perverteu uma data que nasceu pra celebrar o nascimento do menino Deus que veio ao mundo anunciar o amor e a concórdia, o melhor a fazer seria retornar às origens da festividade, num movimento de meditação, que sugerisse arrependimento dos equívocos, aspirações positivas, etc, tudo o que sugerisse um verdadeiro encontro com aquilo que há de bom em nós.
E não precisa nem ser cristão pra isso. Ou já que a maioria se diz cristã e a data tá aí pra ser tirada como feriado nacional, uma boa forma de vivê-la sem se rebaixar ao senso comum, com todos seus vícios e banalidades, seria permitir-se a uma introspecção capaz de perscrutar o que de mais autêntico existe dentro de nós, aquilo que somos e que ninguém pode nos tirar. Porque a paz também é algo interior, e resistir ao barulho e à mediocridade que viceja em torno é permitir que o exterior não nos contamine com coisas que não nos dizem respeito.
Eu desejo aos leitores um feliz natal, autêntico e singular. Não hesitem em tocar o ''foda-se'' se tocar o ''foda-se'' for o melhor a se fazer. Esse pode ser o último natal, nunca se sabe. A vida é muito valiosa pra perder em comilanças e conversa fiada.

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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Sobre ingenuidades e poder

Não se dá ponto sem nó em política. É muita ingenuidade pensar que os movimentos, quaisquer que sejam, tal como esse do Vem Pra Rua, que promete tomar as ruas no domingo, agem por pura motivação cívica e moral, por justiça ou contra a corrupção deslavada que há no país.
Quem está por detrás disso, levantando entre coxinhas a bandeira do Fora Temer e de novas eleições, sabe bem o que deseja colocar no lugar. Outra ingenuidade era pensar que o golpismo conformava um grupo homogêneo em torno a Temer, e que não houvessem disputas pelo poder entre a turma que deu o golpe no primeiro semestre. 
Por falar em ingenuidades, outra delas seria acreditar na boa vontade dos procuradores do ministério público federal, que foram à mídia se fazer de coitadinhos após o congresso incluir a possibilidade de punição a magistrados em casos de excessos e perseguições.
O imbróglio não é de hoje, e vem na esteira de uma disputa intestina entre os poderes da república. Judiciário e legislativo, a despeito do complô criado em torno do golpe que ascendeu Temer à cadeira de presidente, andam em pé de guerra pra ver quem pode mais. 
Para fazer uma analogia entre disputa política e xadrez, poderíamos dizer que o judiciário faz de tudo pra jogar como uma dama: quer executar o movimento que bem entender, na direção que bem lhe aprouver; quer dominar o jogo, coordenar a porra toda. 
Resultado de imagem para xadrez, imagensPor sua vez, o legislativo não quer abrir mão de sua magnitude no jogo político. O parlamento anda mais pra cavalo no xadrez de Brasília; de tiro curto embora, ao contrário das demais peças, tenha a prerrogativa de se movimentar em L e assim cortar atalhos e passar por cima de outras figuras do tabuleiro. Ainda assim o cavalo pode ser a melhor pedra a se movimentar pra iniciar o jogo no ataque, mas não será decisivo quanto uma torre ou a própria dama. A torre ao menos pode cumprir a função tática do roque para blindar seu rei do xeque. E deputados e senadores desejam continuar a determinar o mate, como no processo do impeachment, onde orquestraram toda o jogo sujo para o imperialismo e o setor financeiro, para só contar com o STF como chancela, mera formalidade jurídica do processo. 

terça-feira, 15 de novembro de 2016

O fantástico mundo do onanismo e da perversão cultural/ Uma interface entre punheta e crítica ao sistema

Para os meninos trata-se de jogar cinco contra um, descabelar o palhaço, tocar uma bronha, bater punheta. Para as meninas é siririca, arranhar o disco, tocar contrabaixo... É cada analogia que surge! Como qualquer ato de natureza libidinosa, a masturbação também carrega uma extensa lista de sinônimos pouco elogiosos. Onanismo para os mais eruditos, ou punheta num linguajar mais chulo, a autoexcitação das genitais é a mais democrática e simples forma de se obter prazer venéreo nesse mundo. Mas será que estamos tratando de algo simples? Por entre piadas e duplas conotações um mundo de considerações pede passagem. Vamos às polêmicas.
A revolução sexual de décadas atrás transformou os comportamentos da juventude, e, muito embora qualquer revistinha teen aborde o assunto com objetividade e as escolas mesmas tratem da sexualidade como elemento natural da vida, em muitos círculos e cabeças o tema continua sendo tabu.
Fui conversar com amigas e amigos pra escrever esse artigo e pude constatar isso em muitas falas. Os mais religiosos temem a tentação do ato pecaminoso. Pode ser coisa do diabo. Os mais descolados de motivações transcendentais dizem tratar do assunto sem preconceitos e com naturalidade, mas as controvérsias inerentes ao assunto vão surgindo nos detalhes e ganhando contornos de fantasmas entranhados na cultura, de concepções de mundo que espelham no exercício da sexualidade auto-afirmações e estereótipos sociais, num jogo perverso de poder, regulando estima e autoestima.
Há quem veja a masturbação como liberdade do sujeito, que pode se dar ao luxo de abdicar de um companheiro para, sozinho, resolver a demanda instintiva de sua libido. E há quem pense na auto-excitação como extensão natural do desempenho sexual. Isso eu pude notar na fala de um amigo, que contou que entre homens se sente coagido a dizer que se masturba, para, segundo seu argumento, não ser tido como "viado".
Resultado de imagem para Marcuse, imagensQuer dizer, o sujeito, pra poder conviver em boa ordem com o meio e com a própria consciência, tem de fazer espécies de malabarismos conceituais. Uma coisa é o que genuinamente deseja, mas pode não aer viável bancar o desejo e a auto- repressão toma espaço. Outra coisa é o papel a representar socialmente, a depender do contexto e muitas vezes variando comportamentos ao sabor da ocasião e tendo de renunciar a própria vontade para não se ver em situação embaraçosa perante o grupo.
Mas, enfim, a masturbação mental é estrutural nessa merda de sistema. Tal como o ato aqui em questão, infrutífero em termos de utilização e objetivo dos fluidos corporais, pelo menos do ponto de vista biológico da coisa, a cultura ocidental contemporânea é feita de desperdício absurdo de potencialidades. E isso em função da mediocridade estabelecida. Lógica utilitarista o nome disso. Subtrai-se a atividade criativa de Eros em favor de um princípio de desempenho sujeito à dinâmica opressora do capital. Marcuse em Eros e Civilização trata disso. Eu falo de punheta. Leiam o Marcuse.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

OCUPA TUDO!

Ontem visitei a ocupação do IFSP (Instituto Federal de São Paulo), a antiga escola técnica federal, por onde tive a felicidade de passar como aluno no primeiro semestre de 2007, no curso de licenciatura em geografia. O curso não era bem o que eu queria e saí na metade daquele ano. Voltei pro cursinho e fui prestar outros vestibulares.
O IFSP fica perto de casa e fiz questão de fazer uma visita à ocupação dos estudantes. E fiquei muito contente em encontrar a molecadinha secundarista, junto a estudantes de cursos técnicos e graduação, num movimento extremamente politizado, consciente, em busca de seus direitos, mas também em busca do direito das próximas gerações, de quem ainda vai passar por ali e por outras instituições públicas e que merece ter seus direitos garantidos.
Se esse governo, que mais merece ser chamado de desgoverno, quer passar uma PEC tão violenta e tão injusta, então que a juventude protagonize a luta. E a luta é assim mesmo, passa por manifestações, piquetes, por greves e ocupações. A pauta é absolutamente legítima e os métodos de ação direta, como os utilizados até o momento, são manifestações AUTÊNTICAS! Diga-se de passagem, são manifestações garantidas aos cidadãos, garantidas constitucionalmente. Ninguém está fazendo baderna, ninguém está criando desordem. E mesmo que estivessem, seriam manifestações legítimas de uma juventude indignada de ser usurpada em seus direitos por um governo golpista e ilegítimo, a serviço das grandes corporações e do mercado financeiro. Repito, toda ocupação é legítima
Oxalá essas ocupações se alastrem mais ainda país afora. Até porque a conjuntura é delicada para os movimentos de luta, num momento de acirramento ideológico, em que os fascistoides põem as asinhas de fora, vomitando desaforos, se esgoelando pra defender a livre iniciativa da economia e o cerceamento a direitos sociais básicos. Pensam que é o fim da história, como disse Boulos em sua última coluna, que a esquerda está destroçada e inerte. Muito se enganam. É agora que a resistência surgirá robusta e vigorosa. É ingenuidade e burrice pensar que nenhuma resistência surgiria de tamanha desfaçatez por parte do grande capital e de seus lacaios no planalto central.
Agora a mídia golpista e vendida vai fazer o maior alarde pra queimar os movimentos de ocupação. Vão chamá-los de maconheiros, de desocupados, vão dizer que estão atrapalhando quem quer estudar e fazer o enem, etc… Típico do discurso coxinha. Como se os estudantes não pudessem perder algumas semanas de aula mas pudessem aceitar passivamente um brutal corte de recursos. É a educação pública que está em jogo. É a creche das crianças, a faculdade dos jovens… E quando as condições, que já são dramáticas, perigam de piorar, é chegado o momento de radicalizar e resistir. Como trabalhadores que fazem greve, barricadas, que às vezes chegam a paralisar setores imprescindíveis, mas que o fazem por motivações significativas, por causas que envolvem relevância social, assim os estudantes ocupam suas escolas e centros universitários.
Que a estudantada ocupe tudo! Como eles dizem, que ocupem geral!
Rumo à greve geral! E viva a unidade operário-estudantil!

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segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A cara do Bukowsky

Ontem na missa fiquei com a impressão de já conhecer um senhor que estava a poucos metros do meu banco. Sabe quando a gente pensa que conhece a pessoa de algum lugar e tenta puxar na memória? Pensei alguns instantes e me lembrei. Certamente não o conhecia; não que eu me lembre. É que o sujeito era a cara do Bukowsky. 
Curioso entrar numa igreja e se deparar com um cidadão que te lembre figura tão lendária quanto Bukowsky. A comparação foi inevitável. 
Podia tê-lo visto numa feira, num mercado, num boteco sujo de periferia, qualquer lugar; mas não, foi justo na missa dominical que esbarrei com o gêmeo do poeta louco, o indelicado criador de uma literatura obscena e despudorada que tanto fascina a gerações de jovens indomesticados. 
Ao contrário do velho junkie, desgrenhado e com barba por fazer, meu Bukowsky aparentava sobriedade. Com a barba feita e uma postura de senhorzinho piedoso, acompanhou toda a missa com atenção e ar devoto. De resto parecia muito com o escritor, só que magro; mas com o mesmo narigão convexo e pele curtida, com velhas marcas de acnes e rugas de fortes traços. 
É que a gente vive num país em que a grande maioria do povo não tem o hábito da leitura. Sou capaz de apostar que o indivíduo nunca foi abordado por alguém que o tenha achado a cara do autor underground. 
Muita gente também desconsidera o valor literário de Bukowsky, por considerar sua obra frágil e rasa, de qualidade duvidosa. Não quero entrar no mérito aqui. Aproveito, pra pontuar de passagem, que há um elemento subjetivo a ser considerado, e, que, num país como o Brasil, em tal contexto de imbecilidade generalizada, muito bom seria se as pessoas tivessem a ventura de identificar um homem idêntico ao indomável beat. Aliás, talvez seja isso que falta ao brasileiro médio de hoje em dia, tomar conhecimento de uma literatura subversiva, capaz de desnudar a miséria cotidiana e se rebelar contra a cretinice vigente; pra desmistificar um pouco a realidade, quebrar alguns arcaicos paradigmas...

Obs: Encontrei o similar numa celebração às seis da tarde, na antiga igreja do largo da matriz, na Freguesia do Ó, bairro tradicional da capital paulista. É por lá que anda o gêmeo perdido do velho Buk... que Deus o tenha!

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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Acontece nas melhores famílias

                                                                                       conto

Resultado de imagem para letreiro de motel, imagemHelena vinha desolada pela rua; na cabeça um turbilhão de memórias do ex-namorado. Abriu a porta de casa e deu de cara com a mãe. Abraçou-a e chorou por mais cinco minutos em seus braços. Lamuriava-se da má sorte. Fora pesado o incidente do motel. No caminho de volta já havia ligado pra duas amigas mais próximas, pra uma prima de primeiro grau e pra outra de segundo grau, além do telefonema para a mãe, sendo este o primeiro.
O rosto borrado da junção de maquiagem e lágrimas era só um detalhe; seus olhos estavam inchados, seu nariz vermelho. Sua feição era de derrota. O pai chegou meia hora depois e encontrou mãe e filha no sofá da sala, em clima de velório.
_ O que tá acontecendo aqui?- perguntou afrouxando o nó da da gravata e tratando de colocar a maleta em um canto.
_ Parece história de filme, Durval!- respondeu a mulher. _ Tua filha pegou o ex com outra no motel.
O pai suspirou com pesar, sentou ao lado de Helena e beijou-a com ternura na testa.
_ Vai ficar tudo certo, filhinha. Calma. - consolou-a
_ Eu falei, Durval! - retomou a mãe. _ Falei que não ia dar certo esse emprego de atendente de motel. O garoto garanhão chegou lá com uma periguete. Só anda com moça rampeira depois que terminou com essa aqui!
O pai fez uma careta, como quem não soubesse o que dizer. Torceu os lábios, mirou o teto.
E a mulher prosseguiu.
_ Sabia que essa criatura ia ver coisa que até Deus duvida.
Helena fez um gesto de asserção com a cabeça e disse:
_ É cada coisa que eu vejo! Deus o livre! - interrompeu brevemente a fala e traçou sobre si um sinal da cruz. _ Semana passada a Neusa da limpeza contou que o 217 tava todo sujo de sangue. Ela entrou pra fazer a arrumação e encontrou o quarto com sangue na cama, no chão do banheiro...Um horror! Seu Zeca da segurança disse que a espadada deve ter comido solta.
Os pais desataram a rir. Helena esboçou um sorriso.
_ Tá vendo- disse o pai- já tá melhor a minha menina!
_ Mas eu não quero voltar mais lá, pai- respondeu Helena fazendo cara de criança quando pede algo e aninhando-se no peito do velho.
_ E como vai fazer pra pagar o cursinho? - perguntou a mãe.
_ Deixa comigo- disse o pai dando palmadinhas no braço da mulher. _ Vou segurar sua onda- disse lançando uma piscadela para Helena.
_ Agora vai lavar essa carinha de anjo emburrado- concluiu.
Helena levantou de um pulo e subiu as escadas correndo. Não deu um minuto e gritou lá de cima:
_ Manhêêê, faz uma lasanha pra mim?!

sábado, 15 de outubro de 2016

E bota pano nessa manga!

Resultado de imagem para obesidade, imagensUma amiga querida me sugeriu de escrever sobre obesidade. Respondi que o tema dá pano pra manga. E bota pano nessa manga! Muito pano. Uma das queixas mais frequentes entre gordinhos é a dificuldade de encontrar roupas que lhes sirvam. Eu mesmo sofro com esse negócio de roupa; não por inconvenientes na hora de ir ás compras, mas por perder roupas que outrora me serviam. E a idade vai chegando e a gente nunca emagrece. Acaba perdendo a roupa.
Um dia desses vi numa matéria de jornal que fica mais difícil perder peso depois dos 30. E a obesidade é um fantasma que me persegue. Eu literalmente tenho corrido contra ela. Me explico. Acontece que meu índice de massa corpórea está em 29, e a média é entre 20 e 25. Eu tô no limite do sobrepeso, que engloba os IMC's de 25 a 30. Do 30 em diante é obesidade. E pra combater o fantasma do ''grau obeso'' eu costumo correr no parque.
No início eu corria pra emagrecer. Hoje já me contento em correr pra manter o peso ou não engordar mais. Tomo um remédio que retém líquido e aumenta o apetite, já passei dos 30, como disse lá em cima, e tenho de admitir que tenho um biotipo mais propenso ao rechonchudo que ao atlético.
E a gente tem que se aceitar como é, né. Difícil aceitar nossas limitações. Mas também fica mais fácil pra relaxar diante da inegável verdade ou da inviabilidade evidente. Tá ok, a mãe natureza me fez mais fofo que o comum e não tem mesmo como ser magrinho. Melhor engolir a seco esse destino e não me afligir muito diante de uma apetitosa barra de chocolate ou algo similar.
Aliás, dá pra pensar numa bariátrica pra daqui uns anos. Conheço muita gente que fez e se deu bem, tá magrinho por aí curtindo a vida com saúde. O negócio melhora mesmo a autoestima.
E outra, é melhor pensar em entrar na faca do que aceitar a dura sina das dietas e da ginástica. Ficar sem doces e guloseimas pode ser uma tortura pra alguém com ansiedade, por exemplo. Privar-se do prato predileto pode acabar com a vida dos mais deprimidos. Comer é uma das nossas fontes de prazer mais constantes. E o gordo, verdade seja dita, é aquele cara que goza muito bem a vida. Melhor o desfrute de uma alimentação rica em carboidratos e envolvente ao paladar do que uma refeição sem graça, aquela que soa mais como ração do que como deleite.
A dieta tem tudo pra virar neurose, distúrbio. Lá em casa tenho minha mãe que é gordinha também. Chega a ser engraçado entrar na cozinha e ir se deparando com nossos recursos de emagrecimento. É um pote de semente de chia aqui, um chá verde ali, um chá de hibisco acolá...uma loucura. Gojiberry também já tentamos.
Academia eu fiz, mas não faz meu tipo. Vejo com melancolia esse pessoal que topa malhar em recintos como esses. Aquilo dá um tédio danado só de ver. Quando passo correndo no parque também vejo consternado aquelas moças que fazem treino funcional. É gente funcional fazendo exercício funcional. Me dá uma angústia. Pra ser bem sincero, gosto de ver as mocinhas corpulentas e bonitas, mas só, fico até com pena de vê-las naquele troço maçante. E tem aquelas músicas chatas tocando na caixa de som. Dá fastio só de ouvir. É o pior da música pop numa combinação sinistra. Personal trainer devia ter noção de música na faculdade. Fica a dica aos catedráticos da área, caso algum deles caia nesse blog por engano. Nunca se sabe, mas seria uma inovação e tanto. Nunca vi academia com música de qualidade.
Aos gordinhos de plantão eu desejo sorte. E que o futuro nos seja pródigo em melhores soluções contra a adiposidade. Bem sabemos que ela dá um trabalhão.

domingo, 9 de outubro de 2016

O carpideiro

                                                                                        conto

Tio Álvaro sempre foi um sujeito atípico. A vó sentava a família na mesa da fazenda e passava horas contando suas peripécias de criança, suas dúvidas de adolescente ou seus arroubos de juventude. Os olhinhos da matrona brilhavam ao falar do caçula, filho mais chegado, rebento que por nada no mundo abandonava a barra da saia da mãe. Tio Álvaro era mesmo muito carinhoso, afeito à vida familiar, zeloso de seus afazeres no rancho.
A vó sentava lá e desandava a falar das memórias que tinha. E a gente adorava. Em dias de chuva o tédio não nos abatia. Eram dois palitos pra gente preparar um chocolate quente com bolinho e cobrar da vó um ''causo''. A gente sabia que a velha daria um jeito de falar das histórias do filho predileto, mas ninguém falava nada. No fundo a gente ia nutrindo admiração pelo espírito sensível e peculiar do tio. E no fundo a gente também não via problema algum na predileção da vó por ele.
Curiosa essa minha lembrança de infância. Isso não tem exatamente a ver com a história  que vou contar mas sublinha um elemento que pode fazer todo sentido mais adiante.
Pois bem, acontece que semana passada estive com tio Álvaro, por conta de um desses eventos em que se reúne a família inteira. Sentei ao seu lado numa das refeições e conversamos longamente sobre muitas coisas. Muitas coisas mesmo. Há um bom tempo eu não encontrava o tio, e, pra ser sincero, nem me lembrava das excentricidades da figura.
Ele principiou a falar sobre sua nova vida de aposentado e logo me espantou. É até difícil de acreditar, mas, na falta do que fazer, o cara acorda cedo, e, enquanto engole o café, trata de procurar na sessão de obituários do jornal algum velório pra visitar.
_ Mas por que isso, tio?- perguntei de cara.
_ Ah, filho, velório é lugar de muito respeito. O luto, o respeito ao luto, à dor, ao sentimento...
_ Hum, redargui eu como quem gostaria de ouvir mais pra entender melhor.
E o tio prosseguiu:
_ Então, eu vejo no enterro uma coisa bonita que não se vê por aí todo dia. A morte une as pessoas, as famílias, coisa que a gente só vê em época de natal, ano novo...
Não resisti e comecei a indagar sobre os detalhes mais picarescos, se ele conversava com a família do morto, se se aproximava do caixão, e, nesse caso, se encostava no defunto, essas coisas.
Ele disse que às vezes até chorava junto com o pessoal, que rezava, que se emocionava, que, quando ficava mais à vontade com o grupo, ou era deixado a sós com o corpo, que se aproximava e tocava na mão do falecido.
Me falou de algumas particularidades dos velórios, das diferenças entre funerais católicos e protestantes, enterros convencionais e crematórios. Falou sobre a má impressão que tinha dos cemitérios verticais, de sua admiração pelo estilo neoclássico das campas de um cemitério x, da opulência das jazidas do cemitério y...
Tio Álvaro, pasmem, passou mais de meia hora me falando de antigas e novas tendências no ramo do sepultamento.

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domingo, 21 de agosto de 2016

Restaurante peruano

                                   



                                      conto semi-erótico de eu-lírico feminino

Sempre me lembro do incidente no restaurante peruano. Aquele dia me marcou como um ápice de cumplicidade entre nós, e de uma intimidade que jamais haveria de experimentar com outra pessoa.
Aquele dia, inclusive, desponta na minha memória com um grau de magia e mistério a que acontecimento algum em minha história se assemelha.
Foi uma segunda feira comum, despretensiosa. Vínhamos por uma dessas desditosas ruas do centro da cidade, e o pôr do sol ofuscava nossas vistas; o clima era agradável, de sol de inverno, de céu limpo com rasgos avermelhados no horizonte.
Adentramos de braços dados no recinto simples, de decorações coloridas nas paredes maltratadas. Cumprimentamos habitualmente o homem baixo de feições indígenas que nos recebia com sorriso tímido, e nos sentamos numa mesa colada a uma das colunas, no fundo do salão.
Ele pediu a mesma comida gordurosa de outras tantas ocasiões e falávamos da vida e dos planos para nosso apartamento. A conversa era entrecortada de piadas adolescentes e risadas desmesuradas, além de meus beijos furtivos, que o deixavam embaraçado.
Meu bem comia feito um glutão. Ao final pediria um mate quente para acompanhar seu cigarro.
Seus olhos eram de místico, e seus lábios, úmidos.
Aquele tempo era de muitos sonhos pra nós; eu querendo arranjar um filho seu e ele com utopias transbordantes no peito de jovem rebelde. Meu bem era do tipo que acreditava em teorias da conspiração e que se envolvia em movimentos insurgentes; tinha o hábito curioso de colar trechos de Vigiar e Punir nos corredores da faculdade e de se aproveitar dos piquetes de greve pra atirar as confortáveis cadeiras dos professores nos cestos de lixo.
Naquele dia eu o desejava, como sempre. Deixei-o caminhar até o banheiro e esperei um minuto pra me levantar a seu encontro. Olhei para os lados, e, em breve inspeção, não muito apurada, calculei minhas possibilidades. Me dirigi à porta e alcancei-o no lavabo. Me precipitei sobre seu pescoço e o empurrei de volta ao banheiro.
Sua barba por fazer roçava deliciosamente em minha pele; seu cheiro era frugal, e a mim sempre pareceu irresistível. Tudo nele me agradava; e lembro de seu deleite ao espalmar minhas coxas e perceber a luxúria à qual me entregava.
Dois minutos depois fomos interrompidos por batidas na porta. Descompostos e morrendo de vergonha saímos. Era o homem baixo, que sorriu amarelo e pediu desculpas.
Pagamos a conta e ganhamos a rua já escura, sendo novamente tragados pelas luzes da cidade.
De toda nossa intensa jornada, esse dia me marcou com especial relevância. Me lembro embevecida da paixão que consumia nossa juventude. A saudade dói agora, e lembrar disso tudo me soa contraditório. Ah, se fôssemos até esse momento o que fomos aquela tarde no restaurante peruano... O duro da vida é que grandes momentos, invariavelmente, caem no passado e se tornam terríveis saudades.

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quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A ideologia deles e a nossa

Liguei a TV na Canção Nova hoje e vi que tava passando um "debate"sobre educação de crianças e jovens. Me detive na frente do aparelho e fiquei ouvindo a argumentação do convidado e do apresentador do programa; o convidado, um padre, e o apresentador, um escritor do tipo apologeta, muito conhecido no meio católico.
Quem conhece a TV Canção Nova sabe que se trata de uma mídia que prima por uma defesa aguerrida de ideias conservadoras, com um discurso de forte tom moralista.
Pois bem, vira e mexe a emissora faz uns programas pra descer o cacete em temáticas da esquerda e de movimentos de minoria, pra criticar projetos como discussão de gênero nas escolas e pra convencer seus telespectadores de que a família brasileira precisa estar atenta à manutenção de sua moral e bons costumes.
Então eles ficam repetindo a velha toada reacionária de que há doutrinação de esquerda nas escolas, de que existe um poderoso lobby gay por detrás de projetos como a união civil para homossexuais, etc. No entanto, sempre ocultam o fato do próprio congresso nacional brasileiro ser tomado por lobbys evangélicos.
No programa que passava assim que liguei a TV, o padre reafirmava tudo isso e dizia que os pais precisam tomar cuidado para que os filhos não sejam submetidos a tal "doutrinação", para não se tornarem, as crianças, vítimas de uma ideologia oposta ao que a igreja prega.
E o padre elaborava seu raciocínio como se não fosse ele próprio detentor de uma ideologia. Ora, o que é todo esse discurso senão ideologia também? Então só vale a ideologia quando ela é do lado deles? Isso pode ser falta de inteligência, mas também pode ser cinismo. E entre pessoas com certo grau de instrução, gente que fez faculdade, tende muito mais à hipocrisia que à ignorância.
E à pessoas com ética suficiente para não envolver a educação das crianças em querelas morais, não cabe silenciar diante da ofensiva conservadora nas instituições educacionais.
Não é nada democrático idealizar uma escola em que só haja espaço para uma ideologia, em que as outras sejam relegadas ao ostracismo, ao índex do que é vetado a priori.
Muito tem se discutido sobre isso agora que os defensores da "Escola sem partido" se lançam às câmaras parlamentares objetivando a todo custo impor um retrógrado modelo escolar.
Eu, particularmente, fico muito chateado ao constatar essa movimentação geral. Primeiro porque como militante de esquerda me indigno de ver o avanço de ideias tão atrasadas; e segundo porque sou católico, um católico progressista e democrático, e me ressinto de ver, que, a despeito do espírito progressivo e inclusivo do Papa Francisco, tão enfático na defesa de um mundo mais compreensivo, a direita conservadora ainda nada de braçadas dentro da santa sé e nas igrejas mundo afora, inclusive nesse terceiro mundo cravejado por tamanho subdesenvolvimento e miséria. E onde a miséria material predomina, as ideias miseráveis encontram mais saída.


segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Os direitos humanos e a esquerda / Concepções de violência e tortura nos marxistas



O presente texto visa discutir a emergência dos movimentos por direitos humanos no Brasil no bojo da repressão às guerrilhas contra o regime militar, nas décadas de 60 e 70. No período em questão, as forças repressivas do estado brasileiro lançaram mão de um sem número de métodos de tortura em interrogatórios, com o intuito de desbaratar guerrilhas urbanas e rurais que surgiam em oposição ao golpe civil-militar de 1964.

Ato contínuo, a esquerda brasileira se viu instada a recorrer aos direitos humanos para defender os prisioneiros do regime. Até então pouco se falava em direitos humanos no Brasil, tido como pauta liberal-burguesa, que as esquerdas rejeitavam por conta de uma concepção materialista dialética que naturalmente se alinhava mais à reivindicações classistas.

Nesse sentido, o encontro da esquerda com os direitos humanos pode ser encarado, por assim dizer, como o encontro de uma análise marxista mais geral com demandas do âmbito da micro-política.

A amarga experiência da tortura e a luta armada

Foi a ocasião severa da conjuntura política que fez com que militantes oriundos de classes mais abastadas fossem detidos pela repressão e submetidos a tratamentos normalmente dirigidos aos marginalizados da sociedade.
Não que o período anterior ao golpe de 1964 não tenha histórico de repressão a movimentos políticos e sociais tidos como subversivos pela ordem vigente. Em outros períodos, comunistas ou democratas já haviam sido conduzidos aos cárceres ou postos na clandestinidade.

Mas foi a partir da experiência de cárcere e tortura empregados após o golpe de 1964, com a vigência dos atos institucionais, sobretudo o quinto, de 1968, que recrudesceram as perseguições e hostilidades a quem ousava se insubordinar contra o governo.
Inúmeros grupos guerrilheiros surgiram na tentativa de impor resistência ao avanço dos militares, que por sua vez contavam com o financiamento e o treinamento de forças civis ou estrangeiras. O referido corte histórico configurou período conturbado na política nacional, com cassação de parlamentares, perseguição a membros das forças armadas que se opunham ao regime, etc.



Destaca-se a OBAN, Operação Bandeirantes, organização civil de empresários favoráveis ao regime, e toda uma gama de órgãos criados para o estabelecimento da ”ordem” política no país.
Em oposição, diversos partidos ou frações que aderiram à luta armada, se lançaram em operações de expropriação revolucionária de bancos e similares com a finalidade de financiar a compra de armas e a manutenção das organizações na clandestinidade.
Essa foi a conjuntura política que conduziu uma parcela da esquerda aos ”porões da ditadura”, locais onde militantes de classe média conheceriam a tortura, método até então reservado a presos comuns.
Por isso a emergência da pauta de direitos humanos pela esquerda. A esquerda, até então ambientada às análises de conjuntura mais abrangentes, aos balanços mais objetivos e à caracterização das forças sociais e políticas decisivas para os acontecimentos políticos, aprendeu, com o contato duro das prisões, a lidar com uma pauta até então colocada em segundo plano em função de uma concepção leninista de história, que via outras questões como secundárias ou simplesmente liberais. Fazer a experiência da violência policial destinada aos marginais foi, em síntese, o que sensibilizou a esquerda para o discurso dos direitos humanos, trabalho social antes executado por movimentos religiosos, como pastoral carcerária e afins, movimentos sobretudo capitaneados por adeptos da teologia da libertação.

A legitimidade da resistência

Entendemos que a violência empregada pela repressão legitima a violência que surgiu para se opor ao golpe e ao estado de exceção. Com o parlamento cassado, os sindicatos sitiados, a dura repressão à organização das massas trabalhadoras e às entidades estudantis, muitos grupos políticos optaram por se lançar na luta armada. Mas tais grupos mormente respeitavam convenções internacionais de guerra e tinham uma base ética que faltava aos militares brasileiros. Crimes como tortura e ocultação de cadáveres nunca foram cometidos por grupos revolucionários.
Há muitas coisas que podemos constatar. Muito se fala sobre execução de traidores, condenados por cortes revolucionárias, por exemplo; contradições inerentes à situações extremas, circunstâncias típicas de embates dessa magnitude e que invariavelmente despertam desmentidos, contestações, etc. Mas, verdade seja dita, a esquerda guerrilheira nunca se dobrou a métodos desonestos ou antiéticos como a tortura.
Muito embora a esquerda não fosse movida por moralismos, sempre se opôs à execução de prisioneiros ou civis e jamais admitiu tortura.
Luciano Oliveira, em seu livro Imagens da democracia, coteja autores como Lênin e Trotsky para trazer à tona a relação da esquerda com a ética e diversas resoluções históricas tomadas nessa esfera por governos operários. Com isso, Oliveira deseja retomar a história da militância marxista em sua relação com a violência e os interditos éticos. Interessantíssimo é rever que a revolução bolchevique aboliu a pena de morte, mas também não hesitou em apelar ao terror vermelho diante do terror branco, quando das investidas de tropas contra-revolucionárias contra o poder soviético.
Diante do rigor da violência exercida pela reação, autores e líderes marxistas sempre defenderam a igual oposição violenta ao estado e a suas instituições, sem titubear frente a valores morais.
Tal disposição à resistência violenta, por sua vez, no entendimento de históricos líderes revolucionários, nunca legitimou atos como a tortura, por ser esta entendida como um ato degenerado da moral burguesa, um desvario, algo abominável e injustificável.
Entre os clássicos do marxismo do início do século passado, a geração que logrou fazer a revolução russa, muito se escreveu sobre experiências de cárcere e exílio, mas pouco ou quase nada se fala de tortura.
Os bolcheviques do início do século não passaram pelo horror da tortura. Essa não era uma questão colocada naquele momento histórico. Ao contrário das esquerdas latino-americanas, que tiveram que passar por um regime de exceção que abriu mão de quaisquer escrúpulos éticos, a geração de marxistas do século 19 e início do 20 não chegou a se deparar com o método da tortura, em desuso na Europa desde fins do século 17.
Autores como Marx, Engels, Lênin e Trotsky chegaram a tocar em outras questões espinhosas, como execução de reféns e fuzilamentos, por exemplo, argumentando que toda violência empregada contra adversários de classe era legítima na medida em que esta ocorria para se contrapor à violência desferida contra os revolucionários e a classe trabalhadora.

O ex-guerrilheiro argentino Sorel, em texto clássico sobre a violência, publicado em 1908, condena os métodos da inquisição medieval e do terror jacobino na revolução francesa, e classifica a violência proletária como limpa. A luta revolucionária, segundo o autor, ocorreria com vistas a subjugar o inimigo irreconciliável, excluindo quaisquer abominações ou desonras.
Em livro sobre a história das organizações da esquerda revolucionária brasileira, publicado no ano de 1987, Jacob Gorender diz que a violência praticada pelos revolucionários acontecia de acordo com princípios éticos que visavam preservar-se da moral corrupta das classes dominantes.
Gorender admite que os grupos armados mataram, praticaram atos de terrorismo, seqüestraram e inclusive chegaram a executar traidores condenados por uma justiça revolucionária, mas argumenta que episódios de tortura jamais foram verificados nas guerrilhas .
A violência revolucionária não era uma violência gratuita, com finalidade de infligir dores ou castigos, muito menos com ranço revanchista. A violência era praticada com objetivo político. Era uma violência limpa, por assim dizer, que se precavia de atos moralmente degenerados e que, principalmente, encontrava sua razão de ser na luta por democracia, fazendo frente a todo tipo de barbárie que ocorria em instalações dos órgãos de repressão política.

Concepção marxista de direitos humanos

Como vimos, desde as décadas de 60 e 70, a pauta de direitos humanos foi assumida pela esquerda brasileira não mais como questão secundária sem movimento próprio, por ser enquadrada como contradição secundária específica, mas foi admitida e incorporada no conjunto de uma plataforma de direitos básicos do cidadão. O direito à integridade física será defendido como direito à vida, no mesmo patamar político dos direitos à saúde, à moradia, à educação, etc. O que configura um grande avanço no campo do direito social, haja visto que todo tipo de crime contra a humanidade era corriqueiramente praticado pelas forças de segurança contra pobres, moradores de periferia e pessoas marginalizadas. A partir de então, lutou-se e defendeu-se muito mais os direitos humanos no Brasil, sistematizando-se um movimento em sua defesa que até então não gozava de organicidade considerável.
Outra característica da inclusão dos direitos humanos na pauta da esquerda foi uma crítica ao que se julgava liberal-burguês ou individualista no que concernia à natureza da pauta, aproximando-a do combate por direitos sócio-econômicos.
Bem sabemos que a pauta dos direitos humanos pode ser facilmente instrumentalizada pela direita e pelas classes burguesas, que, em algumas ocasiões, lançam mão do termo direitos humanos associado ao direito à propriedade, por exemplo, ou reclamando direito à expressão ou liberdade de imprensa como forma de se blindar de medidas governamentais por gestores progressistas.
Mas, em suma, grande parte da militância por direitos humanos, no Brasil e na América Latina, surgiu vinculada à teologia da libertação e com um discurso de fortes críticas às premissas individualistas do liberalismo clássico.
Diversos autores surgirão com uma ácida crítica aos movimentos de individualismo burguês que se circunscrevem na defesa da ordem capitalista. Autores como estes criticarão os fundamentos do direito moderno, tido muitas vezes como avalizador formal de fenômenos típicos da sociedade capitalista, como circulação de mercadorias e a própria compra da força de trabalho do proletário pelo burguês.
Afinal, a crítica de Marx aos direitos humanos fazia sentido. O discurso jurídico pós- revolução francesa atomizou os homens para estes se relacionarem entre si com o intemédio do estado, como pontua o argentino Oscar Correas; permitindo que a vida, a liberdade ou a propriedade apareçam como direitos naturais. A declaração dos direitos do homem de 1789 é afiançadora do modo de produção capitalista; é a zeladora jurídica do status quo burguês.
Verdade que a promulgação de 1789 garante princípios de direitos universalmente caros à vida. Na verdade, um avanço progressivo que o marxismo irá caracterizar como mais uma das transições do homem ao sistema igualitário a ser visado.
Os novos movimentos sociais, movimentos de minorias e o próprio movimento por direitos humanos foram ganhando autonomia e vulto com o passar dos anos e dos processos de luta por visibilidade dentro da pauta geral dos movimentos. Muitos foram cooptados por matriz ideológica distinta da inclinação inicial à esquerda, e hoje se encontram em partidos ou filosofias alinhadas com o liberalismo ou mesmo com o conservadorismo.
Em geral, os movimentos foram aos poucos se tornando independentes de partidos ou movimentos supra-partidários, com pauta específica elaborada que muitas vezes se situa mais no domínio do sócio-cultural do que no econômico ou da luta de classes. Os próprios partidos acatam em seu seio setoriais de temas específicos, como movimentos pelo direitos das mulheres, dos lgbtt´s, etc, mas a tendência geral foi a independência política de tais movimentos.


Bibliografia
Imagens da Democracia, Oliveira, Luciano. Pindorama, 1995, Recife-PE

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Nostalgia

Nostalgia
Há pouco mais de 15 dias perdi minha vó paterna, Dona Leonor. Minha vó era filha de espanhóis que chegaram ao Brasil no inicio do século passado. De família numerosa, ao modo habitual daquela época, estudou pouco e começou a trabalhar cedo. Também casou cedo e ficou viúva aos 28 anos, tendo que criar sozinha seus três filhos, sendo o meu pai, o mais novo, um bebê de apenas um ano e meio.
Mas não pense o leitor que esse artigo se trata de uma nota de falecimento. Só achei por bem começar o texto falando da trajetória de minha avó pois foi pensando nela que me peguei relembrando passagens da minha infância, memórias dos dias que passava em sua casa, no Pari, bairro no qual, embora eu não tenha nascido, vivi dos dois anos em diante.
Minha vó vivia numa casa térrea e pequena, ao fundo de uma comprida vila de casas na rua Olarias. Vez ou outra passava o dia com ela. Ficava vendo televisão enquanto ela passava a maior parte do dia sentada diante de uma máquina de costura. Minha vó era costureira de cortinas.
Agora que perdi minha vó há tão poucos dias, sou tomado por uma natural nostalgia daqueles tempos. Lembro do forte cheiro adocicado da fábrica de biscoitos que havia no quarteirão de trás. Naquele tempo o Pari era um bairro mais ameno, um bairro residencial, com muitas casas de muro baixo com jardins à  frente.
Agora o Pari é uma continuação mal acabada do que o Brás foi por muito tempo seguido, ou seja, uma região de comércio pujante, com escassos moradores; lugar de muita movimentação durante o dia e de ruas quase desertas no período da noite.
Natural que as coisas mudem com o tempo, e mais natural ainda que eu tenha nostalgia do Pari da minha infância, o Pari antigo, dos campos de várzea, das praças apinhadas de crianças, dos botecos de esquina onde a gente parava pra pedir água... (naquela época a gente bebia água da torneira mesmo, não me lembro de comprar água mineral).
Por quase uma década vivi com minha família numa casa razoavelmente grande na rua Padre Lima. Lá a gente brincava nas ruas com alguma tranqüilidade; as famílias sentavam a frente das casas enquanto as crianças jogavam bola ou andavam de bicicleta. Lá eu interagia com meninos que moravam num cortiço do outro lado da rua. De lá, por exemplo, me lembro de uma família de onze filhos, todos com nomes que começavam com a letra M. Depois morei na rua da Madeira. E, depois, na Monsenhor Andrade.
Mas o Pari das minhas memórias infantis nao é tão curioso quanto o Pari das histórias inusitadas. Uma das minhas tias, durante o velório da mãe, em meio a uma mórbida conversa, dizia que não desejaria ser cremada depois de morta, e, como argumentação, evocava a memória da historia de um conhecido que morava na rua Rodrigues dos Santos e que quase fora enterrado vivo.
No tempo da febre amarela, o homem, internado no hospital da Santa Casa, depois de tido como morto, foi colocado numa sala com muitos corpos que seriam enterrados no dia seguinte. No meio da noite o sujeito despertou, pulou o muro do hospital e foi pra casa. Bateu na porta mas a mulher, apavorada, não abria. A mulher, desesperada e aos prantos, gritava ao marido que voltasse ao mundo dos mortos, que ele não estava mais vivo, que fosse embora dali. A filha teve que acalmar a mãe e abrir a porta ao pai. Minha tia conta que o homem ainda viveu muito depois do incidente, que morreu depois da mulher, inclusive.
Hoje tendo a ver o Pari de forma mais amarga, e me ressinto sobremaneira de ver que com o tempo não veio a virtude. É duro ver que o bairro abriga uma classe média rancorosa e reacionária. Porque eu tenho saudade do Pari da minha infância, mas não suporto o Pari dos velhos bairristas, malufistas ou tucanos, todos eles uns chatos; o Pari dos senhores que xingam o Haddad porque não querem conviver com os refugiados haitianos ou com os imigrantes bolivianos, por exemplo.
Tenho amor pelo Pari dos meus dias juvenis, dos meus tempos de adolescente, quando ia com os amigos comer os lanches gordurosos da Balneária. (Agora eu sou um rapaz mais saudável, garanto).
Uma vez, voltando do Rei das Esfihas com três amigos, levei uma batida da policia, memorável de tão engraçada. Eu estava com um rosário no bolso. O policial, na hora da revista, tateou-o e perguntou do que se tratava. Falei que era um rosário. O soldado puxou aquele rosário enorme e o meu amigo Edu caiu na risada. O Edu era chamado de Soneca também. Tinha as pálpebras meio caídas, era cabeludo e muito magro. Quase apanhou da PM nesse dia...
Quando chegamos a casa do Ricardo, não sabíamos do que riamos mais; do incidente com a policia ou de um acontecimento anterior no restaurante. Acontece que naquela época o Rei das Esfihas era menor e tínhamos que esperar vagas de mesas. Umas meninas bonitinhas desocuparam uma, e, antes que o Tadeu, lendário garcon pariense, limpasse a mesa, nos sentamos e eu comi uma coxinha que fora deixada ali quase intocada, com apenas uma mordida. O pessoal me chamou de nojento, tirou o maior barato. Eu não tava nem aí... Ah os jovens... meu Deus... É deste Pari que tenho saudades.



terça-feira, 28 de junho de 2016

Dia de reacionário

Tio, adorei essa canjica, disse o garoto com desejo de agradar o padrinho.
- E Jesus, menino?
-Também, tio, disparou a criança sem pensar direito no que dizia.
-Jesus adora canjica?! Não me diga!
O menino fez cara de interrogação e, antes que pudesse articular palavra pra se safar do interrogatório, foi liberado pela avó que disse:
- Sai daqui, peste, vai terminar de engolir isso longe. Hoje tô sem paciência, Alfredo. Você acredita que o delegado não quis fazer o B.O?
- Ah é?
- É. O filho da puta disse que não se mete em briga de vizinho. Falei pra ele que a ladrona me pegou os dois bujões de gás e não devolveu e ele me disse na maior cara dura que emprestado não é roubado. Emprestado não é roubado, emprestado não é roubado, repetia fazendo feição de retardo mental, com os olhos volvidos pra cima.
- Verdade, mãe, tenho que dar razão ao sujeito. Essa dona não é bem uma ladra. É caloteira, isso sim. Vamos dar os nomes certos.
- E agora, como fica?!, indignou-se a velha.
- Eu pago a porra desse bujão.
- Eu não quero que você me pague nada. Eu tô é revoltada com essa lambisgóia. Sabe, Fred, essas coisas deixam a gente sentida. Não é pelo bujão do gás.
- Tá ok, a senhora tá sentida. Mas B.O no DP não é a melhor forma de resolver sentimento. A senhora fica aqui quietinha que hoje à noite a gente vai ver o apóstolo e a bispa. Hoje é o culto do chinelo da prosperidade.
Tá bom, respondeu a anciã resignada.
Sentou na poltroninha surrada e ligou a tv no apresentador do programa policial.
- É isso aí, João- dizia a velha ao apresentador da tv.
- Tá falando com a televisão, vó?, provocou o netinho, com um sorriso detido nos lábios.
A idosa não fez caso do menino e com os olhos vermelhos de raiva esbravejava com o aparelho: - Tem que matar! Tem que matar! Onde já se viu?! Eu disparava com o fuzil na cabeça. Não tem conversa. Tem que matar...
Foi se acalmando e cochilou.




quinta-feira, 26 de maio de 2016

Esse país não é sério


O Brasil é uma piada. Esse país não é sério, definitivamente. Vejam, vocês, habitamos um país em que o vice presidente eleito chega a conspirar abertamente para derrubar a cabeça de chapa presidencial e efetivamente a derruba, não sem o auxílio da maioria do senado e da câmara, que por sua vez também abrem mão de quaisquer escrúpulos de moralidade e na maior cara dura do mundo se vendem aos interesses imperialistas.
A hipocrisia reina quase absoluta por aqui. E é difícil ter de dar mão à palmatória e reconhecer, como o historiador Leandro Karnal o fez nessa semana, dizendo que um país com uma classe política desonesta não pode ser considerado um país de povo honesto.
E a questão aqui não é de analisar o Brasil apenas num contexto de luta de classes e regime eleitoral burguês. Elementos de cultura e história da formação desta nação precisam ser criteriosamente trazidos à superfície para um entendimento a contento do que faz desse país lugar tão trágico. Quem caminha por aí e observa com alguma atenção nosso cotidiano há de concordar comigo que as relações de interesse é que tem dado a tônica dos acontecimentos.
A filosofia de vida do brasileiro pode ser sondada em pequenos e corriqueiros fatos do dia a dia das cidades, nas filas de banco, nos supermercados, nas praças públicas. Ética e solidariedade são coisas cada vez mais raras por aí. Como poderia vigorar justiça em condições semelhantes?
O que dizer, por exemplo, de um lugar onde uma moça é estuprada por 30 homens de uma vez? Existe aqui uma defasagem ética gravíssima. O país do jeitinho, das irrisórias concessões à mentira e à malandragem, é também o país em que milhares de mulheres apanham dos maridos em casa; é o país em que o número de homicídios só baixa por intervenção do crime organizado nas comunidades. Não fosse por ordem de tais poderes paralelos, seríamos o país que mais mata no mundo.
Um dia desses eu tava num ônibus a caminho da faculdade e presenciei uma cena que me deixou estarrecido. Uma jovem entrou no coletivo lotado e em voz alta pediu assento, pois estava gestante. Vários homens estavam sentados mas nenhum lhe cedeu o lugar. Uma senhora idosa teve de levantar para que a grávida não seguisse o trajeto em pé.
O povo é mal educado mesmo. As pessoas raramente dão demonstração de gentileza genuína. Tudo é regulado pelo interesse. As pessoas, vejam só, no máximo estão dispostas a apenas retribuir. São boas com os que "fazem por merecer" sua bondade. Do contrário, na hora da vingança se mostram pródigas em maldades.
É só entrar num vagão do metrô em horário de pico pra ver do que as pessoas são capazes. A civilidade passa longe.
Pois bem, é essa massa que elege o governo e o congresso, os prefeitos e as câmaras municipais. Muitas dessas pessoas vendem o voto por dinheiro ou pequenos favores. Só isso explica o fato de políticos notadamente corruptos obterem votações expressivas. O interesse mais imediato do eleitor confere mandatos de quatro anos a parlamentares que, financiados por patrões, vão votar a política de seus fiadores. O círculo é vicioso e a merda predomina.
Trocando em miúdos, o Brasil amarga estrutura sócio-política frágil, desenvolvimento incipiente e cultura de curral eleitoral. Precisamos rever nossa história urgentemente ou teremos de conviver com estruturas arcaicas que nos massacram diariamente. Falta-nos honestidade com nós mesmos. Um dia há de haver seriedade nessa porra!