sábado, 13 de dezembro de 2025

Uma continuação para o sermão das bem-aventuranças


Bem-aventurados os que não se acostumaram à injustiça,

porque sua inquietação é sinal de vida.


Bem-aventurados os que duvidam do mundo como ele é,

porque não confundiram ordem com destino.


Bem-aventurados os que erram tentando amar,

porque não fizeram da prudência um álibi para a omissão.


Bem-aventurados os que carregam perguntas sem resposta,

porque recusaram a paz duvidosa das certezas fáceis.


Bem-aventurados os que perdem tempo com os pequenos,

porque compreenderam onde o Reino começa.


Bem-aventurados os que repartem quando falta,

porque já romperam com a lógica do medo.


Bem-aventurados os que se indignam sem se tornarem cínicos,

porque guardaram o espanto diante da dor alheia.


Bem-aventurados os que caminham devagar em um mundo apressado,

porque ouviram vozes que o ruído não deixa passar.


Bem-aventurados os que caem e se levantam sem serem vistos,

porque aprenderam que a fidelidade não precisa de testemunhas.


Bem-aventurados os que são esquecidos pela história,

porque sua memória repousa onde não há esquecimento.


Bem-aventurados os que não venceram,

porque ainda sabem distinguir vitória de justiça.


Bem-aventurados os que seguem sem garantias,

porque escolheram o amor como caminho 

e a justiça como horizonte.









quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Aos trancos e barrancos parece que vai, mas não vai. O desenvolvimento exige resolução

Às vezes parece que o Brasil anda em círculos, como se desse sempre a impressão de que está prestes a resolver seus velhos problemas, mas no fim das contas só muda a decoração da sala enquanto o alicerce continua rachado. Houve um tempo, recentemente , ali nos primeiros mandatos de Lula, em que a vida de muita gente melhorou um pouco. Não foi milagre, foi vento internacional soprando a favor e um governo tentando aproveitar o impulso pra puxar quem estava mais para baixo. A demanda chinesa por commodities dava ao país uma força artificial que parecia enorme, como se tivéssemos descoberto um motor novo quando, na verdade, só estávamos sendo empurrados por um tranco alheio. A pobreza caiu, a desigualdade encolheu um pouco, o salário mínimo cresceu, e muita gente respirou melhor, comprando carro, financiando imóvel e tal. Chegou luz no nordeste . Realmente muita coisa aconteceu. Mas esse respiro tinha prazo de validade, porque nunca mexeu no coração da desigualdade brasileira. A verdade é essa.

Quando a maré virou, porque ela sempre vira, a aparente dança harmoniosa entre capital e governo se transformou num tropeço coletivo. A burguesia brasileira, que aceita concessões sociais só enquanto isso não ameaça seu poder, puxou o tapete sem cerimônia. Depois da "marolinha" enfeiar a situação econômica, da Dilma perder a mão em Brasília e de 2013 ter sido orquestrado pra bagunçar o coreto, veio o golpe de 2016, vieram os anos de brutalidade política e social, com Ponte Para o Futuro, reforma trabalhista, da previdência, Temer com 2% de popularidade despejando maldades no brasileiro; e o país descobriu que seus pequenos avanços estavam apoiados num piso escorregadio. 

A ascensão de Bolsonaro não surgiu do nada, foi o produto direto de uma crise de hegemonia, daquela fadiga estrutural de um pacto que nunca foi capaz de conciliar verdadeiramente as classes, apenas adiar conflitos. A violência institucional, o descaso com a vida e a volta da fome mostraram que, na prática, nada fundamental tinha mudado.

Quando Lula voltou e o Brasil saiu de novo do mapa da fome, houve um alívio geral, quase como abrir a janela depois de anos trancado num quarto abafado. Pouco se falou em filas do osso depois disso. A inflação foi controlada, as famílias voltaram a se alimentar melhor. Só que a paisagem lá fora continua praticamente a mesma. O agronegócio continua mandando na fronteira do país e no congresso, a economia segue dependente da exportação de coisas que tiramos da terra, a indústria anda minguada, e a desigualdade permanece de pé, firme, como uma velha árvore que se recusa a tombar. 

A estrutura que produz a miséria continua intacta. A melhora da vida de milhões é real, mas se apoia num terreno movediço, sempre sujeito ao humor do mercado internacional e à disposição da elite local de tolerar algum bem-estar social desde que isso não abale sua fortaleza, suas notas promissórias, seus títulos da dívida.

O Brasil moderno, esse que o agronegócio gosta de celebrar com tratores gigantes e recordes de safra, convive com um Brasil que vive espremido entre bicos, aluguel atrasado, transporte lotado e muita economia na hora de fazer o supermercado. É como se duas épocas convivessem no mesmo território, ligadas por estradas que levam riqueza num sentido e precariedade no outro. A reprimarização da economia deu ao país um tipo de modernidade que brilha por fora e apodrece por dentro. A cada nova fronteira agrícola aberta, vem também a destruição ambiental, a expulsão de comunidades, a violência silenciosa que mantém a engrenagem funcionando. O capital global sabe exatamente o que quer do Brasil, e não é que nos tornemos uma potência industrial, e sim que continuemos entregando produtos baratos e recursos naturais abundantes.

Ao falar tudo isso, vejam, não se trata de pessimismo, mas de honestidade histórica. A democracia trouxe conquistas importantes, mas também conviveu com limites enormes. A nova república brasileira deixa muito a desejar. A redução da indigência, o aumento do acesso à escola, a ampliação de programas sociais, tudo isso é valioso. Mas são vitórias que sempre vieram acorrentadas às regras do jogo do capital. Uma economia dependente e financeirizada não entrega soberania, entrega migalhas condicionadas à estabilidade da rentabilidade. Quando o preço do minério sobe, o país respira, quando cai, o país sufoca um pouco. Ninguém constrói um futuro assim. Não tem continuidade de política de reindustrialização. O projeto Brasil fazendão é que tá vigorando. Alguma pujança em serviços, com empregos bem ruins, superexploração bombando. Nada que inspire otimismo. 

Ou seja, o drama brasileiro é que as conquistas são reais, mas frágeis, muito frágeis, e a regressão é sempre rápida. É como construir uma casa sobre a areia da praia. A cada nova maré, um pedaço afunda. Enquanto a estrutura produtiva não mudar, enquanto a terra continuar concentrada nas mesmas mãos, enquanto o estado seguir de joelhos diante do capital financeiro e do agronegócio, seguiremos repetindo a mesma história, apenas com personagens diferentes.

O caminho que poderia quebrar esse ciclo não é milagre, é luta. Luta organizada, consciente, com horizonte claro. É a classe trabalhadora deixando de ser objeto da política e se tornando sujeito dela. Sem isso, o país continuará vivendo de pequenas ascensões e grandes quedas, sempre preso a essa contradição que já virou marca registrada. O Brasil parece uma anomalia, mas na verdade é o retrato fiel de um capitalismo dependente que nunca foi capaz de se libertar de suas próprias amarras. E enquanto não enfrentarmos isso de frente, politicamente, ideologicamente, organizando a classe trabalhadora e os partidos populares, estaremos sempre, de novo, no mesmo lugar. A questão, mais do que nunca, é criar e estabelecer uma gama de dispositivos políticos e organizativos da classe trabalhadora para fazer frente aos desafios de desenvolvimento nacional e libertação integral. 

Não dá pra depender do PT e dos partidos acomodados ao regime político colocado, definitivamente. É preciso apontar para rupturas, ganhos qualitativos, organização operária e revolucionária para fazer frente ao que está colocado pelas conjunturas e pela lógica do capital em escala internacional. Em qualquer perspectiva, o que se exige é luta revolucionária, horizontes disruptivos para que se vislumbre progresso e bem estar do povo. Aí vão dizer que não há correlação de forças favorável... Pois é, mas correlação de forças se conquista, se forja. Esperar cair do céu não é a alternativa, enquanto se entabula uma série de acordos com elementos do centrão para compor governos de frente ampla fadados a serem permanentemente acossados pelos abutres do mercado. 

A esquerda brasileira precisa reencontrar o horizonte estratégico da revolução. O que aconteceu hoje na câmara, com um mandato popular e socialista como o de Glauber sendo entregue a seis meses de suspensão para que não fosse cassado, evidencia que os limites da institucionalidade burguesa não devem e não podem ser os limites da política socialista. Isso parece tão evidente, mas fomos tragados por uma onda liberal e identitária, obscura, fatalista. Isso precisa ser superado com urgência.




domingo, 7 de dezembro de 2025

Revolução ou barbárie

Por que o capitalismo já não dá conta de si mesmo e por que uma revolução socialista se torna, de novo, uma necessidade histórica



Dizer que o capitalismo entra em crise não é novidade. A novidade é que cada crise parece reencenar a anterior com intensidade maior, como se o sistema tivesse perdido a capacidade de produzir algo além de colapsos em série. Ernest Mandel chamava isso de capitalismo tardio, um estágio no qual as crises deixam de ser acidentes e se tornam a respiração própria do sistema. O que muda é apenas a forma com que o mundo tenta disfarçar o cheiro de queimado.


As últimas décadas deixaram isso evidente. O ciclo se repete com precisão quase cômica. Vem um período de bonança, seguido de uma bolha, depois o estouro, depois o aperto fiscal, depois as desigualdades recrudescidas, depois o surgimento de algum populismo híbrido que promete resolver tudo sem tocar na propriedade privada. No final, o capitalismo continua intacto e as pessoas continuam exaustas. Não há moral aqui. Há simplesmente um modo de produção que se tornou incapaz de resolver seus próprios problemas estruturais.


Nahuel Moreno descreveu isso com uma clareza desconcertante quando analisou o esgotamento das burguesias nacionais. Segundo ele, não existe mais espaço para conciliações criativas, pactos duradouros ou reformas que alterem a essência do sistema. O capital financeiro globalizado absorve tudo, reorganiza tudo, neutraliza tudo, inclusive os governos que acreditam estar no controle. A esquerda moderada acaba girando em torno do vazio, obrigando-se a administrar crises que não escolheu, enquanto a extrema direita aparece como caricatura de solução, alimentada pelo ressentimento social que ela própria agrava.


Mas a questão é ainda mais profunda. Não se trata apenas de crises econômicas. O mundo vive crises de sentido. O trabalho se precariza, a tecnologia promete libertação enquanto aprisiona em novas formas de vigilância e subordinação, e as democracias liberais se mantêm graças a um malabarismo permanente entre austeridade, pânico moral e ilusões midiáticas. A sensação de impotência coletiva não é um efeito colateral do capitalismo, é parte constitutiva do sistema. Funciona como blindagem e como disciplina.


Diante disso, a pergunta que muitos têm medo de fazer volta à superfície com naturalidade: existe alternativa real ao capitalismo ou estamos condenados a viver em uma repetição infinita de crises? A resposta histórica aponta para um caminho que não perdeu validade, por mais que tentem enterrá-lo: a transformação revolucionária da sociedade.


Quando Mandel descreve o socialismo não fala de uma utopia abstrata, fala de reorganizar a vida social a partir daquilo que já existe de forma latente. A capacidade produtiva do mundo já permite que ninguém passe fome, que todos tenham moradia, educação, saúde e tempo livre. O problema não é técnico, é político. O capitalismo não consegue usar seus próprios avanços para o bem comum porque suas regras impedem. Acumulação privada e bem-estar coletivo são projetos incompatíveis, não por opinião, mas por lógica interna.


Moreno insiste em outro ponto, igualmente decisivo. Não há revolução possível sem sujeitos coletivos organizados. As massas não entram em cena porque foram despertadas por um discurso inspirador, mas porque já vivem contradições insuportáveis. A tarefa é transformar essa energia difusa em força histórica consciente. Isso exige partidos, movimentos, sindicatos, comitês populares, tudo aquilo que o neoliberalismo tentou desmoralizar durante quarenta anos. A revolução não nasce do vazio, nasce da autoatividade das pessoas que descobrem que podem produzir outra realidade.


Falar em revolução socialista não é romantismo, é análise concreta. O capitalismo atual já não oferece horizonte. Ele se sustenta à base de guerra permanente, destruição ambiental acelerada, financeirização generalizada, concentração obscena de riqueza e manipulação ideológica. A normalidade do sistema é a anormalidade social. A barbárie não é um risco futuro, é o presente. E, como já se tornou evidente demais vezes, o sistema prefere colapsar o planeta inteiro a abrir mão de suas estruturas de acumulação.


A revolução socialista aparece então como alternativa racional, não como delírio de militantes. Trata-se de reorganizar a economia sob controle democrático, superar a propriedade privada dos meios de produção, redistribuir poder e riqueza, e construir instituições que expressem a autogestão dos trabalhadores e das comunidades. É a única forma de interromper o ciclo destrutivo sem cair nas tentações autoritárias que sempre emergem nas crises do capitalismo.


Esse horizonte não se concretiza por gravidade histórica. Mas a história nunca foi movida por gravidade. Ela é feita de saltos, rupturas, momentos em que a imaginação política se atreve a superar seus medos. Hoje, quando o mundo parece cada vez menos governável, quando as democracias escorrem entre os dedos, quando o planeta dá sinais de esgotamento ecológico, a ideia de revolução deixa de ser tabu e se torna simples lucidez.


O século XXI talvez descubra, de novo, que a alternativa entre socialismo e barbárie não era metáfora. Era diagnóstico. E ainda é.





Se o capitalismo sempre operou em chave desigual e combinada, no século XXI essa desigualdade se transformou em engenharia globalizada. O imperialismo, longe de ser um resquício do século XX, é a própria forma de funcionamento do sistema mundial. Falar de revolução socialista hoje exige encarar esse tabuleiro internacional que mistura competição paroxística,acirradas  guerras de influência e uma coreografia caótica onde cada potência tenta administrar sua própria decadência.


O imperialismo contemporâneo não se limita ao domínio militar, embora ainda dependa dele. Ele opera, sobretudo, pela circulação de capitais, por sanções econômicas seletivas, pelo controle das cadeias produtivas e por tecnologias de vigilância que permitem aos centros hegemônicos monitorar o planeta inteiro. As crises periódicas, que antes eram sinais de instabilidade, tornaram-se instrumentos de manutenção do sistema. O choque financeiro destrói economias periféricas, barateia ativos estratégicos e permite que empresas globais absorvam tudo com voracidade clínica. Nada disso é acidente, é modus operandi.


Os Estados Unidos seguem como núcleo do imperialismo, mesmo com sinais de desgaste. Sua força não reside apenas no poderio militar mas na capacidade de impor padrões monetários, jurídicos e tecnológicos ao resto do mundo. Cada operação militar, cada base, cada tratado assimétrico funciona como parte de uma engrenagem que mantém a hegemonia do dólar e garante acesso a recursos naturais estratégicos. Não é por acaso que as guerras recentes, declaradas ou camufladas, giram em torno de energia, semicondutores, rotas marítimas e pontos de estrangulamento do comércio global.


Na disputa pela hegemonia, a China aparece como potência ascendente, mas não como alternativa sistêmica. Sua ascensão é real, mas está limitada pela própria lógica do capital. O país combina planejamento estatal com uma inserção profundamente integrada ao mercado mundial. A propriedade estatal convive com conglomerados privados gigantescos, e o partido controla os rumos macroeconômicos sem romper a estrutura fundamental do valor. Isso garante estabilidade relativa mas também não ameaça interromper as tensões insolúveis do sistema.


A China expande sua influência com infraestrutura, crédito e investimentos, não com bases militares, todavia não deixa de estar dentro do capitalismo. Por mais que consiga desafiar o poder norte-americano, não oferece um horizonte de ruptura. Garante desenvolvimento acelerado, mas reproduz exploração, desigualdades e padrões agressivos de expansão produtiva no mundo. A pobreza diminui na China, mas o planeta é tratado como estoque inesgotável de recursos. Não existe possibilidade de que a China resolva a crise global porque ela mesma está amarrada à lógica que produz a crise.


A Europa, por sua vez, vive uma fragmentação melancólica. O projeto europeu se mantém de pé pela inércia das instituições, não pela força material. Economias estagnadas, políticas de austeridade e tensões nacionalistas corroem o bloco por dentro. A social-democracia tornou-se administradora de catástrofes. Sem ferramentas para enfrentar o capital financeiro, limita-se a sustentá-lo. Em cada crise, corta gastos públicos, precariza o trabalho e, de quebra, alimenta a extrema direita, que cresce justamente sobre o desespero social.


Enquanto isso, o capitalismo avança sobre territórios periféricos com violência renovada. A América Latina é tratada como laboratório permanente de experiências neoliberais. O Oriente Médio é mantido em estado de combustão controlada. A África é alvo de uma nova corrida colonial disfarçada de investimento estrangeiro. Cada região cumpre uma função dentro da hierarquia global do capital. Se o centro acumula, a periferia absorve os choques.


A crise ambiental amplia esse quadro de forma dramática. Não existe capitalismo verde. A transição energética proposta pelas potências não rompe com nada, apenas desloca a extração para outros minerais, regiões e povos, agora ligados ao lítio, ao níquel, ao cobalto e às terras raras. A promessa de um capitalismo sustentável é ficção política e instrumento ideológico. O sistema só existe expandindo-se, e toda expansão implica destruição, deslocamento forçado, poluição ou guerra.


Diante desse panorama, fica evidente que a crise não é uma falha de gestão, é condição estrutural. O sistema internacional opera como um mecanismo de redistribuição violenta da riqueza global em direção ao topo da pirâmide. Os conflitos geopolíticos não anunciam um novo equilíbrio. Anunciam o aprofundamento da instabilidade. Cada potência tenta salvar sua própria taxa de lucro sacrificando tudo ao redor.


E é exatamente essa dinâmica que recoloca a revolução socialista no centro do debate. A mudança necessária não é de governo, mas de modo de produção. Não se trata de buscar um capitalismo humanizado, um capitalismo com alma ecológica ou um capitalismo multipolar mais simpático. Nada disso resolve. O impasse é estrutural. A lógica da acumulação não pode administrar, ao mesmo tempo, as necessidades humanas, os limites ambientais e a vida coletiva.


A revolução socialista aparece, portanto, como tarefa histórica concreta. Não é nostalgia do século XX, é exigência do século XXI. Ou o mundo reorganiza sua produção de forma democrática, igualitária e planetária, ou continuará oscilando entre guerras, crises, colapsos ecológicos e instabilidade permanente. O capitalismo já não promete futuro, ele apenas tenta adiar o próprio fracasso.


E o tempo que ele consegue comprar está ficando cada vez mais curto.