Conto
Gente, dessa vez eu vou contar pra vocês a tragicômica história do tio Virgílio, marido da saudosa tia Ana. A nossa vida é de natureza tragicômica mesmo, né? E, pra fazer um jogo de palavras simpático e no qual vejo muito sentido, digo que é até bom a gente fazer graça com a desgraça. É mais ou menos o que todo mundo faz quando desabafa na timeline do Facebook, fazendo piada com alguma adversidade.
Na história do tio Virgílio e da família, a comicidade veio uns meses depois da tragédia, e trouxe consigo um ar de leveza diante da realidade que se impunha. Acontece que, depois de um avc, tio Virgílio começou a apresentar um quadro de violento alzheimer. O tio foi esquecendo das pessoas e parando de falar. Em pouco tempo, seu vocábulo se reduziu a quatro palavras. Na verdade três; a quarta palavra era uma abreviação. E era tudo palavrão. Tio Virgílio só dizia "caralho", "cacete", "porra" e "orra".
Eu não consigo lembrar da história do tio sem lembrar do conceito de jogos de linguagem do Wittgenstein. O filósofo trabalhava tentando desconstruir a ideia de função designativa da linguagem, de que toda palavra corresponderia a um objeto no mundo. Wittgenstein defendia a tese de que as palavras tem significado de acordo com o meio em que são empregadas.
Tio Virgílio, depois do avc, passou a se valer de apenas um restrito e indecoroso jogo de linguagem. Óbvio que um idoso enfermo nem precisa de muito vocabulário. Em casa, na companhia de familiares, numa vida restrita a poucos movimentos, quase sempre monótonos, a linguagem não é algo que faça tanta diferença.
O curioso da história é que tio Virgílio perdeu a capacidade de articular palavra mas não perdeu o costume de falar palavrão, e passou a empregar os palavrões pra todas as ocasiões.
Tia Ana, por exemplo, chegava com o bule de café e o marido soltava um comentário. Se o café tivesse demorado muito, o tio soltava um "cacete", com voz frágil mas autoritária. Se o café estivesse muito quente, soltava um "porra", como se a xícara lhe queimasse os dedos. Se o café estivesse amargo, era um "caralho", compassado e acompanhado de sobrancelhas cerradas.
A molecada se divertia. Tia Ana fazia um ar de reprovação mas se resignava. Era uma mulher sem muitos moralismos. Minha impressão é de que ela ficava chateada pelo fato do tio ser ranzinza, e não pelos palavrões em si. E, no fim das contas, tudo virava gozação, como aquela turma que via a Dercy Gonçalves falando um palavrão atrás do outro na tv e se esborrachava de rir.
_Orra!, dizia o tio após uma colherada no bolo de cenoura da tia.
Tio Virgílio morreu falando o que era estritamente necessário. Reclamava do café pelando mas sabia reconhecer o virtuoso bolo da tia. Lembro sempre disso ao falar do tio, além do Wittgenstein. Não tem jeito, a vida é tragicômica.
Gostei do conto...podia ser mais trágico! Mas tá bom pra cacete! Ah! Ah!
ResponderExcluirMuito bom e já vai para o blog historiasdopari.
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