sábado, 31 de outubro de 2020

Caminho da Fé / Uma jornada nas montanhas



Fazia uns três anos que eu tava querendo fazer o Caminho da Fé. Desde que ouvi falar pela primeira vez. Ouvi de um padre jesuíta, numa missa. Fiquei encantado com a proposta. Decidi fazer agora, no fim dessa pandemia. 

Pra quem não conhece, o Caminho da Fé é o seguinte: é uma espécie de Santiago de Compostela pra quem não tem dinheiro pra ir pra Europa. O caminho começa no interior de São Paulo, passa pelo sul de Minas e volta a São Paulo, contornando a Serra da Mantiqueira, tendo como destino a cidade de Aparecida. Por dentro de fazendas, no meio do mato, subindo e descendo montanhas, por estradinhas de terra, poucas vezes pegando asfalto. 

Nem é preciso dizer que o caminho oferece lindas paisagens aos peregrinos. No meio da natureza, com os bichos, excelente ocasião de meditação. Nem todo mundo que faz é religioso ou crente. Muitos fazem por esporte, turismo, fazendo trekking, de bicicleta, de jipe, enfim. Há outras motivações. Mas em geral o Caminho é trilhado por motivações devocionais mesmo. Há um clima de espiritualidade no ar, de oração, de introspecção e auto conhecimento. Porque, como eu disse, o trajeto envereda pelo meio do mato, por lugares ermos. Às vezes não tem ninguém na estrada, às vezes só bichos, às vezes nem bichos. É só o caminhante e o silêncio. 

Eu adoro natureza, mato, tudo isso! Fui todo empolgado. Resolvi sair numa segunda feira pela manhã. A idéia era madrugar. Mas a cama me segurou até às 10. Saí de casa às 11. Pensando ingenuamente que conseguiria um ônibus lá pela hora do almoço. Plano frustrado. Só tinha ônibus pras três e meia da tarde. Ônibus para Paraisópolis, cidadezinha do sul de Minas. Resolvi começar por lá. Era uma das propostas de trajeto no site do Caminho da Fé. 136 km até Aparecida. Uma caminhada de 6 dias, com média de 22 km por dia. Não podia gastar muito, tava indo com dinheiro contado. Pensei que tava bom por hora. Uma semana fora de casa. Seria uma experiência. Poderia voltar em outra ocasião pra um trecho mais longo. Partindo de Águas da Prata, que é a cidade mais comum de início do caminho, o pessoal costuma levar de 10 a 12 dias na estrada.

O problema foi que eu cheguei às 19:30 em Paraisópolis. Havia "perdido" o primeiro dia de caminhada. A solução seria ficar numa pousada e sair pela manhã. No ônibus vinha enjoado. Muitas curvas na Serra. Curvas intermináveis. Conheci duas senhoras. Uma delas estava com um cajado feito de bambu, com fitinhas coloridas de Nossa Senhora. Puxei assunto.

- Vocês também estão indo fazer o Caminho da Fé?

- Sim! Por que, você vai?

E já fui me enturmando. As tias não estavam indo pela primeira vez. Eram veteranas de peregrinação. Todo ano fazem. Aproveitei pra fazer perguntas. Muito simpáticas as senhoras. Chegando lá me ofereceram carona num táxi que pegaram. Pesquisei o preço das três pousadas que haviam no centro da cidade. Todas tinham o mesmo valor. Resolvi que iria ficar na mesma pousada das tias. A dona, muito simpática, me perguntou se eu ia jantar.

- Depende. Quanto custa a janta?

- 20 reais.

- Não vou não. Obrigado. 

Jamais que ia gastar 20 pilas numa janta. Fui todo franciscano fazer o caminho. A idéia era economizar o máximo possível. Fui no mercado, comprei um pacote de pão integral e um suco de uva. Não era a janta. O pão era pro lanche do dia seguinte. O suco era pra aproveitar uma garrafa de um litro e meio que me serviria de cantil na caminhada. 

A janta eu iria descolar franciscanamente mesmo. Pedindo. Nenhum problema, tinha em mente que pediria água pelo caminho. Eventualmente comida também. As pousadas incluem café da manhã. Eu comeria bem antes de sair, andaria tomando bastante água e comendo uma ou outra fatia de pão ao longo do dia. Só a janta que tava em aberto. 

Fazia um tempo que eu não pedia comida na rua. Tava destreinado. Passei pela frente da igreja matriz da cidade e tive a brilhante idéia de manguear ali a refeição. Já passava de oito e  meia, a igreja estava fechada. Procurei pela casa do padre. Um servo de Deus não iria negar o jantar de um peregrino. Bati no portão da casa paroquial. Absoluto silêncio, luzes apagadas. Pelo jeito o padre não estava. Outro filho de Deus teria que me dar de comer. Saí andando pelas ruas escuras da cidadezinha. Ponderava as possibilidades. Me sentindo um desses personagens de literatura beatinik, viajante, andarilho, on the road na vida.

As ruas estavam praticamente desertas. Um ou outro comércio aberto. Onde, meu Deus, eu iria descolar um prato de comida? Não sabia. De repente surge um trabalhador a meio quarteirão de distância. Com uniforme de gari, vários sacos de lixo à mão.

- Companheiro, licença. Boa noite. Tô aqui de passagem, fazendo o Caminho da Fé. Você sabe me dizer onde que eu consigo alguma coisa pra comer?

O rapaz disse que tinha pizzaria, que tinha isso, aquilo, aquilo outro. Foi me falando dos lugares.

- Mas tô sem dinheiro. 

O rapaz fez uma cara pensativa por um segundo. Olhou o chão. Levantou a cabeça e disse: Não seja por isso. Eu pago alguma coisa. 

Fiquei sem jeito. Falei: Não. Você tá aí trabalhando. Não quero incomodar. Imagina. 

Ele sorriu. Disse que eu esperasse na frente de uma casa de batata recheada que havia ali a poucos metros. Que ele já voltava. Fiquei lá na frente. Tirei um livro da mochila, procurando entre os postes de iluminação um lugar com mais claridade pra me acocorar e esperar. Folheando meu livro. Fiquei ali bem uma meia hora. Passou o caminhão da coleta de lixo. Olhei. Será que esse cara tava ali? E agora? Vou ter que repensar a janta. Mas baixei os olhos novamente em direção ao livro. Depois de cinco minutos aparece o mano dentro de um carro. Me estende a mão com umas notas e pergunta se é o suficiente. 

- Tá ótimo! 

Nem tinha visto quanto tinha. Mas tava ótimo. Daria um jeito. Entrei no negócio da batata recheada. A moça caprichou no prato. Viu que eu era peregrino, que o rapaz do carro tinha me dado o dinheiro da janta. E resolveu ajudar também. Queria me dar um refrigerante. Não aceitei. Tinha o suco. Peguei a embalagem e fui pela rua saboreando a batata. Agradecendo a Deus pela providência. Parei na frente da igreja fechada. Queria rezar. Iria rezar ali mesmo. Agradecido pela janta, por estar ali, por ter a oportunidade de trilhar aquele Caminho da Fé. Seria uma coisa interessante pra mim. 

Fazia frio. Fiquei num banco da praça, o que me parecia mais próximo do que imaginei que seria a capela do santíssimo. Fiquei ali uns bons minutos papeando com Jesus. Ventava forte. Resisti por uns minutos mas tive que me retirar pra pousada. Fui descansar.

Acordei 20 pras seis. Garoava. Desci pro café da manhã. Um belíssimo café da manhã. Comi tudo que eu podia. Iogurte com granola e mel, queijo, bolo, café com leite. Entreguei a chave na recepção e fui embora. As duas senhoras já estavam iniciando a jornada. Estavam com dois rapazes de Pirassununga. Um deles se aproximou de mim. Muito gente boa o rapaz. Conversamos. Ele disse que era católico também. Ficamos de rezar o terço mais a frente. 

As mulheres não paravam de falar. Chovia. E elas falavam, falavam... Me impacientei um pouco. Tomei distância à frente. Umas das tias era mais dondoca, cheia de pulseiras de prata. Notei que era bolsonarista. A tia disse que não ia tomar a vacina chinesa, que tinha visto não sei o que lá numa entrevista da Jovem Pan. Criei um ranço. Também notei que não eram de igreja. 

Resolvi puxar o terço. Chamei as tias. Elas não quiseram rezar. Rezei eu e os meninos de Pirassununga. Na estrada fomos ultrapassados por outros dois peregrinos. Eles estavam na pousada ao lado em Paraisópolis. Acordaram mais tarde mas caminhavam em passo apertado. Eles também vinham com o terço na mão. Acabamos a reza do terço e as mulheres vinham atrás na mesma falação. Queria apreciar mais o silêncio do caminho e decidi que seria melhor caminhar sozinho mesmo. O grupo vinha num ritmo ameno atrás de mim. Apertei o passo e tomei distância. Não voltaria mais a vê-los. 

A chuva parou mas eu já estava praticamente encharcado. Muita lama no caminho, estrada escorregadia. Havia fortes subidas. Imaginei que as tias teriam dificuldade naquele trecho. Eu vinha em ritmo acelerado.

Cheguei no povoado seguinte pela hora do almoço, com uma pausa de uma meia hora num bairro rural em que havia dois botecos. Num deles vários matutos conversando.

Outro elemento interessante da viagem é a simpatia do pessoal da roça. Vez ou outra cruzam a estrada em sentido oposto. Muito simpáticos. Cumprimentam a gente de cima de seus cavalos, de dentro de seus fusquinhas. Na roça todo mundo dá bom dia e boa tarde. E são muito solícitos, muito solidários. O homem da roça é um patrimônio da cordialidade brasileira. E o interior nos possibilita essa proximidade que dificilmente temos nas cidades grandes.

Pela hora do almoço alcancei os dois peregrinos que haviam nos ultrapassado de manhã. Eram de Monte Alto, guardas civis municipais. Um aposentado e outro da ativa. Vinham de longe, de um dos ramais do Caminho da Fé. Já estavam na estrada havia uma semana. Vinham pelo caminho apontando os passarinhos. Falando das espécies de passarinhos. Eu, guri da cidade grande, não entendo nada de passarinhos. Eles também vinham rezando dezenas do terço. Ao invés de rezar o terço todo numa carreira só. E vinham esbaforidos na subida. O próximo destino seria a famosa pousada da Dona Inês, cinco ou seis km ladeira acima de Luminosa, que foi onde nos encontramos no almoço. 

Chegamos na Dona Inês quase três horas da tarde. Um dos policiais estava com a perna contundida. Eles queriam avançar mais na caminhada, mas não seria possível. Eu já tava satisfeito com os quase 30 km que tinha andado. Impressionantes 30 km. Tava exausto. Não tinha comido muito. Me furtei de um almoço por um pão de queijo de padaria, pra economizar. Tava decidido a pousar na Dona Inês. 

Mas fui pego por uma surpresa; ela não passava cartão. Uma pousadinha simples. A pousada era uma extensão da casa da mulher. Só trabalhava com dinheiro ou transferência bancária via celular. E eu não trazia dinheiro em espécie. Nunca fiz transferência via aplicativo. Ainda tentei baixar no celular, mas o banco só liberaria a senha em 24 horas. Pronto, tava ferrado. Me vi diante de um dilema dificílimo. Ou descia pra Luminosa, mas teria que subir tudo de novo no dia seguinte (seis km, uma hora na caminhada), ou ia adiante, mas a próxima pousada estava a 13 km, quatro horas de caminhada. Ali seria o trecho mais íngreme do caminho. A chamada subida do Quebra Perna. Passa-se de 900 metros de altitude, mais ou menos, em Luminosa, para 1750 metros próximo a Campos do Jordão, na divisa de Minas com São Paulo. Resolvi ir adiante. Não queria descer pra subir de novo no dia seguinte. Era melhor ganhar terreno.

A subida do Quebra Perna me pegou completamente desprevenido. Não imaginava que pudesse haver uma subida como aquela no caminho. Trechos muito íngremes, terreno escorregadio, cheio de lama. Um escorregão aqui, outro ali. O tênis todo enlameado. Não era o calçado mais adequado para a caminhada. A sola tinha frestas em que a lama formava pequenos blocos, o que me fazia perder o equilíbrio, pendendo o corpo para um lado. Parecia que eu ia torcer o pé. Eu parava em alguma pedra, tirava o excesso. Às vezes me detinha em alguma poça de água pra tentar eliminar aquela terra. 

Nos primeiros metros depois da dona Inês eu já comecei a sentir o estorvo que seria aquele trecho. Em alguns lugares já era impossível empreender a marcha sem parar pra tomar fôlego. De Paraisópolis até a pousada da dona Inês eu me julgava um atleta. Dali em diante principiou realmente a dificuldade. Não estava tão bem fisicamente quanto acreditava que estivesse. Mas a subida era tenebrosa. Estava no meio das montanhas. A cidade ficou lá pra baixo, os animais, tudo. Estava no meio do nada. Temia uma possível chuva. Seria meu fim. 

Já perdia muito das minhas forças quando me aproximei de um vilarejo. Ali, encravado no meio do nada. E tinha um bar. Estava aberto. Um bar bonito, com um deck com mesas, de frente para o vale. Saiu um rapaz. Falei pra ele que eu tava super exausto. Tava praticamente passando mal, esgotado. O rapaz falou pra eu sentar, pra respirar com calma. Fui recuperando as energias. Conversamos ali por uma meia hora. Ele me deu água. Eu comi pão integral. Falei pra ele da minha exaustão, do receio de não aguentar a subida. 

Ainda havia muita subida. Ele me disse que eu tinha subido bastante. Mas que tinha mais umas duas horas de caminhada. Que a temperatura lá em cima caia bastante, que eu passaria por uma mata de eucaliptos. Que até lá eu subiria cerca de 200 metros de altitude. Era o pico da altitude ali. 1700 metros. 

-Será que eu aguento?

-Acho que sim. Se você quiser eu te levo de carro até lá. 

-Me leva?

Puxa vida. Eu tinha encontrado uma boa alma. Esse pessoal da roça é maneiro mesmo.

O rapaz levantou, deu uns passos, voltou, pensativo. E arrematou:

-140 reais e eu te levo.

Tava bom demais pra ser verdade. O rapaz queria me ajudar mas queria levar uma graninha. 

-Nem a pau que eu gasto 140 reais, irmão. 

-É que a estrada é ruim. Você tem que ver isso aí. 

- Sei.

Levantei arrumando minhas coisas. Não podia perder muito tempo. Meia hora de descanso me fez reacreditar na minha capacidade de subir montanhas. Peguei estrada.

O primeiro trecho dali em diante não era tão severo. Ali tinha casas, animais circulando, galinhas cacarejando pela estrada. O sol apareceu. 

Foi dali a uns dois quilômetros que a subida voltou a judiar de mim. Um trecho intensamente íngreme. Tinha sol no céu, mas a temperatura caia. E eu com uma blusa fina. Mal tinha me secado da água da chuva. Transpirei muito. A roupa seguia úmida. A subida extenuante me maltratava. Jurei que nunca mais eu me metia numa aventura daquelas. Pensei: nossa, isso aqui não é de Deus não. Não é possível. Como é que o pessoal mais idoso consegue transpor essa montanha? Andava três ou quatro passos e precisava parar. Não tinha como. A duras penas empreendi esse trecho. Uma tortura. 

No alto da montanha uma porteira. Olhei. O que eu faria? Pedia ajuda ou seguia adiante? Havia uma casa lá distante. Não dava pra ver se tinha gente. Na frente desse sítio tinha um banco. Sentei. Do lado tinha uma placa com uma reflexão, que falava sobre dificuldade, superação. Alguma coisa assim. O suor me escorria pelas têmporas. Trêmulo; com um misto de frio e fraqueza. Tinha consumido muita energia. A água já estava terminando. Saquei o pão da mochila. Precisava de carboidrato. Estava no limite. O sol começaria a baixar. Mais de cinco e meia da tarde. Por um minuto me ocorreu o pensamento de ficar ali. Sem água, sem agasalho, sem abrigo. Olhava lá pra baixo e me dava quase uma vertigem. O lugar era muito alto. Presumi que o duro da subida terminava ali mesmo. Tomei coragem, levantei.

Precisava passar pela mata de eucaliptos. E estava logo em frente. São muitos quilômetros, as coisas nunca estão tão próximas. A gente acha que tá chegando e caminha ainda quilômetros e mais quilômetros. Parece que a subida termina, mas adiante tem outras pequenas subidas. 

A paisagem mudou. Já não era possível vislumbrar o caminho, tampouco parar e contemplar as montanhas atrás. Caminhava por entre um bosque de mata fechada, de árvores muito altas. No ar o cheiro refrescante de eucaliptos. O som dos passarinhos, das cigarras. Aquele eco típico de lugares análogos. Lembrei de um filme. Na Natureza Selvagem. Estava ali no meio da natureza. Podia contemplar embecido seus mistérios. Mas ela não era tão amistosa. Me exigia, me assustava. 

No meio do caminho algumas referências religiosas. Cruzeiros, pequenas capelas, com fitinhas de Nossa Senhora Aparecida, objetos deixados ali por devotos. Na Divisa de estado uma placa com a altitude, em cima de um muro rústico. 1750 metros.

Estava ansioso pelo asfalto. Sim, havia um trecho de asfalto. O rapaz do bar tinha falado. E quando eu menos esperava lá estava ele. Tinha um carro parado no acostamento. Uma esperança de carona me encheu o peito. Mas o pessoal seguia no sentido oposto ao meu. Três meninos de Paraisópolis. Falei brevemente com eles. Entrei pelo asfalto. Uma estrada muito pouco movimentada. Ainda era dia. Mesmo ali havia subidas. Mas o asfalto já me facilitava a vida. Tentei carona com os pouquíssimos veículos que transitavam por ali. Sem sucesso. Mas resignado segui meu trajeto. Estava no automático. Caminhei ali por mais uma hora e começou a escurecer. Cheguei na pousada Barão Montês. Tinha andado incríveis 42 km! Uma maratona. E quase passei direto. A pousada fica num nível mais baixo que a estrada. De longe as luzes eram mínimas. Mal se via o lugar. Parei pra pedir água. Pensei que fosse um restaurante. Não sei porque pensei isso. Um restaurante naquele fim de mundo. Era a famosa pousada!


O resto da viagem conto num próximo post.