quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Memórias de 40 anos atrás

Da série Crônicas da Vida Operária 



                                    ☆


Um dia desses aí fiquei gripada e me lembrei de quando descia do ônibus no Brás pra entrar na fábrica. Coisa de memória olfativa, como se o cheiro no meu nariz 40 anos depois fosse o mesmo de um determinado instante em que chegava no trabalho, num tempo já remoto. Curioso, né. Um cheiro, uma sensação olfativa agora que me remete à vida operária de outrora, mais especificamente de um momento exato em que eu adentrava a fábrica. 

E era uma fábrica de pão, muito grande, vários setores, gente indo e vindo, homens descarregando sacos de farinha, de açúcar, as companheiras do setor de embalagem trazendo os pedidos, me dizendo que se incomodavam da quentura que vinha dos fornos, que não aguentavam mais cheiro de pão. Imagina, que loucura, um cheiro tão popular, tão aclamado entre poetas e pessoas do povo. Mas a gente não aguentava mais cheiro de pão. Eram fornadas e fornadas. O dia inteiro saindo pão. Oito, nove, dez horas por dia com aquele mesmo cheiro na cara da gente.

Depois o cheiro da gripe no nariz me lembrou outras passagens da vida, de antes, de depois, de tantos momentos diferentes. Daquele tempo me lembrei de um dia em que eu tava no supletivo, o professor de matemática explicando equações, riscando um estridente giz na lousa. Os colegas atentos, a maioria com cara de não entender a matéria. 

Fiz supletivo numa escola fuleira da rua Sete de Abril. Chegava lá depois do turno da fábrica, direto, sem passar em casa, sem jantar. E na correria. Saía com a rua escura e semi-deserta, ia chegar em casa depois das onze da noite e com o estômago revirando de fome. Nessa época a gente morava na zona norte, de modo que eu circulava por diferentes regiões da cidade ao longo do dia. Sacudia no ônibus o dia inteiro, tomando cuidado com os tarados, tirando breves cochilos, sempre com cara de sono, meio descabelada, preocupada com os horários, inventando possíveis desculpas para eventuais atrasos. Na bolsa sempre uma cartelinha de comprimidos pra azia. Se o patrão dava bronca já me surgia uma queimação na boca do estômago. Um comprimido pra dentro. A gente não podia responder, não havia condições de contestar. O silêncio era a melhor estratégia 

Em casa também era bom tomar cuidado com o que se dizia. Certa vez, tava me lembrando esses dias, levei um esporro da mãe por comentar que um turco do mercado municipal tinha me chamado pra sair.

 _ Maria Aurélia, você nunca mais me fale isso! Tá entendendo?!

 _ Mas o que foi que eu fiz? Eu, hein.

 _ Mulher rampeira é que fica com esse tipo de conversa. Entende isso de uma vez. Se um homem te chama pra sair, você diz que não e morre o assunto. Esse tipo de coisa moça de família não fica falando por aí! 

Era assim que era naquele tempo. A mãe esculachava e o pai dava bordoada se ficasse contrariado. Os meninos eram mais soltos. Já a gente tinha que andar na linha pra não dar ocasião de reprimenda. Em casa era assim, na fábrica também. 

O ambiente podia ser muito hostil. Até a cidade, pra dizer a verdade, me parecia hostil. Tinha coisas bonitas. Claro, sempre tem. Mas a cidade tinha suas feiuras, suas maldades. De manhã a gente saía de casa com os dentes rangendo pelo frio. Sair da cama quente pra rua gelada era um choque térmico razoavelmente mordaz. Tínhamos repetidas doenças respiratórias. Do quentinho da cama pro frio da rua, e dali pra quentura da fábrica. A alimentação precária, lanches e salgadinhos pra forrar a barriga nos horários de trânsito até a escola. Frio de novo à noite, muitas vezes chuva. Era uma loucura. E nos meses de chuva tinha as enchentes. A cidade parava, tudo intransitável. Uma vez perdi a sandália perto da marginal Tietê. A enxurrada levou embora. Cheguei em casa descalça. A gente descia com água pelas canelas nas chuvas mais amenas do verão. Nas chuvas torrenciais a coisa era muito feia mesmo. Quantas vezes andei com água pela cintura! Dava um frio na espinha indizível quando a água começava a bater na virilha. Uma tristeza, um desgosto profundo. Dava vontade de morrer.

Chegava em casa e tomava um banho de meia hora. A mãe esmurrando a porta do banheiro. Dizia que puxava muita eletricidade. Antes de cair na cama um comprimidinho de azia e um banho de álcool nos pés. Dia seguinte tinha labuta de novo. Era preciso pôr o sono em dia. Mesmo com a mãe resmungando pelos cantos. Em dia assim ela ficava quase tão puta como em dia de chegar a conta do telefone. A gente tinha que ter artimanhas pra fugir do embate. Antevíamos as datas espinhosas e tratávamos também de preparar o espírito pras palavras duras que fatalmente nos seriam lançadas. 

No mais era isso que vivíamos em São Paulo naquela época. Correria, dificuldades. Todo mundo trabalhando pra dar conta da vida. Foi mais ou menos por essa época que conheci o primeiro marido. Ele tinha bigode e dirigia carros de segunda mão que trocava duas ou três vezes por ano. Era bom comigo, atencioso, delicado. Depois de umas semanas que estávamos namorando fiquei sabendo que ele tinha dado um treme-terra na Cecília do departamento pessoal. Em alguma das salas do escritório da fábrica. Foi assim que falou a Neusa, minha colega de seção, que me adiantou a história pensando que ia azedar o namoro. Mas eu fui uma das primeiras moças lá que se casou.

Até virem as crianças a gente saracoteou bastante pelos bailes, pelas festinhas. Antes do casamento tinha sempre que ir um irmão comigo no passeio. A gente andava muito pela cidade. Eu gostava de ver os anúncios, as placas da publicidade. São Paulo nessa época era um emaranhado de informações visuais, um outdoor do lado do outro. E as ruas eram sujas no centro da cidade. Muita gente circulando, vendedores ambulantes, crianças de rua, pastores fazendo pregações nas praças. Muitas fábricas jogando no ar fumaça até não poder mais, a poluição dos automóveis, nos engarrafamentos, nos pontos de ônibus. O trem, por exemplo, ia e vinha dos subúrbios sempre apinhado de gente, uma massa de trabalhadores atrás do sustento. São Paulo era uma loucura. E nossa vida não era muito diferente não.




terça-feira, 21 de dezembro de 2021

As ideologias no chão de fábrica

Quarta crônica da série Crônicas da Vida Operária 


                                  ☆





Filho da puta tem em todo lugar. Não tem jeito. Em todo lugar se encontra esse tipo de gente. No chão de fábrica também tinha. A começar pelos chefes. A maioria era de filhos das putas profissionais. Sabiam ser carrascos, gostavam de tripudiar a peãozada, de gozar da nossa cara. Às vezes de forma muito sutil, com um risinho de canto de boca, uma palavra maldosa disfarçada em meio a um pretenso conselho. Canalhas, cínicos. Dava pra sentir o gozo deles ao soltarem as listas de dispensa, ou quando afixavam no quadro de avisos a escala da hora extra, fudendo com a gente que ia perder a sexta feira à noite. 

Mas os que nos metiam mais raiva eram os puxa-sacos, os peões como a gente que ficavam lambendo os caras da chefia. O mais filho da puta conheci numa indústria têxtil em que passei uns meses. Ali era mais mulher trabalhando, operando as máquinas. Os poucos homens faziam os trabalhos acessórios. Um deles era o Antônio Justino. Filho da puta de marca maior. Cagueta. Tinha o péssimo costume de entregar os deslizes da turma. Gente que chegava atrasada, e que um companheiro batia o cartão por camaradagem; pequenas avarias nas máquinas, por distração na operação. Esse tipo de coisa. O filho da puta entregava mesmo. E se achava no direito de entregar. Se envaidecia, se inchava de orgulho, achava que era o peão padrão de qualidade, caxias, irrepreensível, o peão que qualquer patrão queria em sua firma.

Pois bem, foi assim até que uns mal-elementos primos de uma operária delatada resolveram amaciar a carne do Justino. Pegaram o sujeito num beco perto da fábrica, a tarde caindo, o dia quase escuro. Pegaram e judiaram. Deixaram o Justino todo moído de porrada. Era o aviso pro cara deixar de ser filho da puta. 

Depois disso não passei lá muito tempo. Difícil um filho da puta se emendar. Lembro bem do regozijo coletivo da turma ao saber do acontecido. Até o Elói da portaria de certa forma apreciou o corretivo. E o Elói era extremamente religioso. Elói foi um dos primeiros crentes da Vila Operária. Desses que vão de terno e gravata pela rua, bíblia debaixo do braço, dando a paz do senhor pro pessoal. Elói era religioso mas também não gostava de filhos da puta. 

Os crentes da Vila Operária eram como os crentes de todo lugar daquela época. Trabalhavam duro de dia e à noite faziam alguma atividade da igreja. Não tinham tv em casa, e isso numa época em que a tv se popularizava muito nas casas operárias. Eram discretos de dia, e à noite rezavam meio alto nas igrejinhas improvisadas em portas de garagem. Banquinhos de madeira mal-arranjados, luzes amarelentas, um cidadão empunhando uma viola à frente dos fiéis, regendo os hinos, o pastor pregando o reino dos céus. E era um discurso esquisito, mas tirava muita gente da cachaça, atraía umas donas de casa. Sempre tinha meia dúzia de gente nas igrejinhas. As mulheres de cabelos compridos e saias abaixo das canelas, entravam no templo e ajoelhavam aos pés dos banquinhos de madeira, olhos fechados, a boca murmurando orações. E cantavam, cantavam, mal afinados, vozes sôfregas, o ar faltando. Cantavam e rezavam lá dentro. Fora da igreja tentavam incorporar novos membros. No começo não dava muito certo. Teve uma época depois que o movimento deles ficou mais encorpado. Eram conservadores, mas não eram exatamente reacionários. Não todos. Eram pessoas simples, de pouca leitura. Na Vila Operária as igrejas juntavam menos gente que na favela. Tinha lá um morro em que prosperaram umas quatro ou cinco igrejinhas. No mesmo morro havia uma só capelinha católica, igualmente improvisada.

Era curioso observar a movimentação dos religiosos. Depois de tantas décadas tenho uma noção mais aclarada da coisa, obvio, mas na época já dava pra, de alguma forma, observar as tendências.

Na Vila Operária, por exemplo, teve uma época em que chegou um padre operário. Padre Inácio, homem inteligente, meio calvo, olhos brilhantes, rosto pacífico. Sujeito calmo, de bom humor. Se meteu numas fábricas como se peão de fábrica fosse. E isso numa época da pesada, em que a repressão comia solta. O homem era politizado, esclarecia os operários, tinha coragem. Me mudei e depois não tive mais notícias. 

A Vila Operária era assim. Tinha filho da puta, tinha padre. Tinha de tudo na Vila Operária. A Vila Operária nos dava uma boa medida do mundo. Éramos cosmopolitas nas ruas da Vila Operária. O nosso mundo era sim muito pujante e muito vivo.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Vila Industrial

Continuação da série Crônicas da Vida Operária 


                                    ☆



O chão da Vila Industrial era mais avermelhado em Julho. Tempo de frio, não chovia de jeito nenhum. Subia aquela poeira das estradinhas que iam dar na roça. Ida e vinda constante de caminhões, caminhonetes, ônibus de operários, ônibus escolar, eventualmente carrinhos particulares, todos muito simples, que morriam no caminho, a turma tendo que descer pra empurrar. 

Minhas memórias do inverno são as mais satisfatórias, apesar do ar mais pesado, da fuligem e da poluição. A bem dizer, o ano inteiro era tempo de fumacê nas chaminés das fábricas. Os asmáticos sofriam terrivelmente. O sujeito tinha que ter pulmão bom pra morar na Vila Industrial. Tísico ali não se criava. As crianças doentinhas tinham de ser levadas pra outros arredores mais salubres. 

O inverno era rigoroso, mas acendíamos fogueiras de noites inteiras, com música, namoricos, pinhão na brasa e outros atrativos juninos. Saboreávamos, por exemplo, canjica, arroz doce, doce de abóbora. Tinha arrasta pé e diversão, tinha também briga, risca-faca, homens de bucho furado nas desavenças que em geral se originavam por causa de mulher. Mexer com mulher casada na Vila Industrial era praticamente sentença de morte.

O mais curioso ali na Vila Industrial era a mistura de gentes e culturas. Tinha os nordestinos, arretados, de sangue quente, Hércules Quasimodos do chão de fábrica; tinha os italianos, de temperamento semelhante; e os espanhóis. Os portugueses eram mais discretos. E os japoneses, muito cordiais, de poucas amizades mas de muito bons modos. Árabe tinha também, em menor quantidade, como os polacos. Era uma mistura interessantíssima. Sempre curioso observar as diferenças entre uma terra e outra, os hábitos arraigados, mais característicos das culturas, e aqueles hábitos mais flexíveis, que iam sendo deixados de lado à medida em que as comunidades se adaptavam ao novo país. Algumas famílias de origem italiana, por exemplo, já falavam só o português. Um palavrão ou outro soltava-se na velha língua. Desconfio que muitos não saberiam mais nem dar a tradução certa. Sangue italiano completamente convertido em brasileiro. Não blasfemavam. Pelo contrário, eram devotos e supersticiosos. De jeito nenhum falavam mal de falecido. Abaixavam a cabeça e repetiam a fórmula do "que Deus o tenha". 

Os japoneses não eram de bater cartão em fábrica. Eram muito independentes e gostavam de trabalhar por conta própria fosse na roça ou no asfalto. Uns plantavam legumes e hortaliças, outros mais espertos mexiam com assistência técnica. Eram sorridentes e faziam ginástica, muito esguios e de hábitos modestos. Eram certamente os que menos se misturavam. Aparentemente eram comedidos em tudo. Disciplina asiática.

Os espanhóis eram os mais lascivos, gostavam de farra e apreciavam as aventuras do adultério. 

Certa vez flagrei Seu Argemiro currando uma moça nos fundos de sua oficina de ferreiro. Uma mulher de peitos generosos, mulata, rosto muito simpático. No lado do balcão em que me meti ali dava pra ver parte dos fundos do recinto. Entre velharias e móveis estropiados o espanhol copulava ardorosamente com a morena. A moça inclinada por sobre uma mesa de madeira, Argemiro pegando- a pelas costas, com esgar de deleite, puxando-lhe os cabelos por debaixo do lenço. Era época em que algumas mulheres andavam ainda de lenço. 

Alguns homens também andavam de chapéu, ou boina. Era um pessoal de roupas mais triviais o da Vila Industrial. Macacões de fábrica, vestimenta simples do trabalho braçal, sem muita ocasião pra ostentar arrumação, perfume, essas coisas. Mesmo em hora de divertimento havia pouco interesse em se arrumar. Andávamos todos entre as mesmas famílias de sempre. Tínhamos intimidade, nos dávamos bem e nos tratávamos como a velhos camaradas. As mulheres ainda que se arrumavam mais, mas não como as donas do centro. 

Em certa medida tínhamos na Vila Industrial uma vida mais frugal. Tinha os brutalismos do chão de fábrica, o regime semi-inclemente das fábricas de antigamente, pouco arejado, ruidoso, estafante e tedioso. Isso levávamos em ritmo maquinal. Nossos pais já vinham disso. Tínhamos o ritmo da labuta impregnado no caráter. Aproveitámos a vida apesar da condição operária. Nossos fins de semana eram de alegria, contemplávamos os pequenos detalhes. Jogávamos bola nas encostas do morro, fazíamos o famoso churrasco de gato, carne de segunda mas temperada com afeto. Íamos às matinês no domingo, ver as fitas de bang-bang, Carlitos, Mazaropi. Não era propriamente uma vida boa. Mas não era ruim. Na singeleza do cotidiano atravessávamos a vida. Comíamos fruta do pé, íamos aos bailes, tínhamos uma boa vista da paisagem ali pelos arrabaldes. Era bonito ver o sol cair nas tardes da estrada, os tons alaranjados do céu em contraste com o banhado de poéticas paletas verdes. Éramos operários da indústria, a maioria filhos de operários da indústria, mas trazíamos ainda um pouco da condição contemplativa dos homens do campo. Tomávamos chá, sabíamos das ervas. Andar pelo subúrbio da Vila Industrial era experimentar diferentes fragrâncias a cada 10 ou 20 metros. Do jardim de uma casa sentia-se cheiro de anis, indo em frente vinha cheiro de menta, ou erva doce. E por aí afora. Muito cheiro de mato nos terrenos grandes ainda sem construções, cheiro das queimadas, cheiro de terra.

Tínhamos uma relação muito aberta com aquele pedaço de chão. Nem sempre essa relação aberta se estendia totalmente às pessoas, afinal sempre há um ou outro mais arisco, menos dado ao trato social, um que bate na mãe, ou que resolve fumar droga. Seu Irandir, sindicalista da velha guarda, combativo, costumava dizer que filho da puta e problemático nasce até nas melhores famílias operárias. Mas em geral desfrutávamos de relações muito francas, muito apraziveis. Havia certamente diferenças entre as gerações. Daquela época lembro bem da revolução sexual que se urdia entre os jovens. Havia ali remanescentes do sonho anarquista, gente que aspirava a uma sexualidade mais natural, mas no geral eram famílias que traziam hábitos conservadores. Queriam casar as filhas virgens, não deixavam as meninas saírem sozinhas. Não que isso adiantasse de alguma coisa. 

O lugar mais interessante da Vila Industrial era conhecido por nós como o baixio da metelança. Nome assustador, verdade. O lugar era uma espécie de jardim da promiscuidade. Um oásis dos casaizinhos num trecho mais recôndito de bosque. Tipo um brejo, com troncos de velhas árvores caídas e maritacas cantando. Era ali que a moça de família era feliz sem o pai sequer desconfiar.

Havia uma espécie de código de ética para a fornicação. O que acontecia no baixio ficava no baixio. Se um cara, por exemplo, pegava uma moça e saía espalhando ou comentando, nunca mais  pegava nenhuma outra moça. O silêncio era condição da vida sexual do cara. De algum jeito as meninas se articulavam pra acabar também com a reputação do falastrão. E dava certo. 

Outras revoluções foram similarmente arquietadas no seio da Vila Industrial. Algumas mais sutis, outras menos. Veio depois muitas novidades. Veio a droga, enfim, todas essas coisas de cidade que vai crescendo. E tudo nessa vida muda. Ficamos com saudade dos nossos dias de jovens. Era um tempo bom, apesar de tudo. Lembro com nostalgia do chão avermelhado da Vila Industrial.






quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Vida de operário


Da série Crônicas da vida operária

                                   ☆


Descia a rua baratinado, pulara da cama chamado por Dona Soledade, a senhora gorda da pensão, mal lavara o rosto. Pela rua vinha entre dormindo e acordado, com fragmentos de sonhos nos pensamentos, o cérebro a reclamar descanso para o corpo e fantasias para si, resistente à vigília, buscando à força mais alguns instantes de letargia. Na rua um vento cortante e gelado. Eram muito frias as manhãs na Vila Operária. A gente saía pra trabalhar com o dia amanhecendo, o céu cinzento; o sol ia despontar com a gente já no turno da fábrica. Geralmente tinha neblina cobrindo as ruas, os filhos dos trabalhadores brincando de soprar fora o ar quente pra ver uma espécie de fumaça que se formava em contato com o ar frio. 

A cidade era muito fria nessa época, garoava muito também. E vinha eu pela rua entre o sono e a vigília, as pernas a pulso pelos caminhos da Vila Operária. Barriga vazia, barriga roncando. Entrei na padaria do Seu Manuca e fiz o sinal do café. Olhava a estufa de salgados com olhos gordos. O pão com manteiga habitual enjoava a gente. Pedi um pão com môi. Pão com môi era como se chamava o pão com molho. Tinha lá um lanche que se fazia com pão e salsicha. Tipo um cachorro quente, a salsicha embebida em molho de tomate com pimentão e condimentos. Acontecia que o pão com molho saía pela metade do preço. Era como se o pão com a salsicha saísse por um cruzeiro, e o pão sem a salsicha saísse por 50 centavos. 

E era o que cabia no nosso bolso de peão de fábrica. A salsicha ficava pros engravatados dos escritórios, ou pros operários das montadoras. Os operários das montadoras tinham vida melhor que a nossa. Em geral um pouco mais estudados, com passagens pelo Senai, cursos de especialização, essas coisas. 

Mas  como eu dizia, comia lá o meu pão com môi e café. O café vinha bem doce, naqueles copinhos americanos que cheiravam sempre à cachaça. O operário brasileiro sempre apreciou muito o trago. Mas geralmente era no fim do expediente; de sexta-feira uma cervejinha pra acompanhar um jogo de sinuca, o pessoal reunido nos batentes dos botecos pra ver as ancas das raparigas que subiam apressadas nos coletivos. Cachaça de manhã só os alcoólatras mesmo; alguns engoliam um trago na hora do almoço. O almoço quase sempre arroz com feijão e carne de segunda, uma salada murcha e feia, e farinha. Os homens dos escritórios comiam feijoada às quartas e peixe frito às sextas. O pessoal do chão da fábrica tinha um cardápio mais resumido. A maioria também não se dava ao luxo de pagar comida, levava de casa, deixava no marmiteiro da cozinha. Enormes marmiteiros pra acondicionar a quentinha da peãozada. Era essa nossa gastronomia operária básica. Anos depois trabalhei em lugares que ofereciam refeitório. Mas a comida era basicamente a mesma. Também entupiam a gente de groselha e gelatina. Nada mais. Diziam as más linguas que metiam salitre na comida, que era pra dar sensação de bucho cheio.

Um recurso que a turma tinha nos dias festivos era reunir as famílias das ruas em encontros grandes. Cada um levava um prato. Era uma forma de comer coisas diferentes. E as famílias se ajudavam também, trocavam ítens, se solidarizavam com os mais pobres, dividiam o que podiam. Gostavam muito de carnes gordurosas e pratos típicos dos lugares de onde tinham vindo. 

Terminei de engolir o café com pão e fui me direcionando à gigantesca fachada amarela da fábrica. Um pátio muito grande, com bonitos ipês do lado esquerdo, a guarita dos vigias rodeada de gramado e plantinhas mais rasteiras. Uma pequena massa de homens e mulheres à espera da abertura dos portões. Todos depois em direção aos vestiários. Troca rápida de roupa e tomada de postos nas máquinas. Uma barulheira. À essa altura a cirene já havia soado. Não tinha mais como bater cartão. Os atrasados perdiam o dia. Fechavam-se os portões e a fábrica toda era um grande organismo a pulsar. 

Havia ali alguns galpões, todos eles muito grandes, centenas de operários, a linha de produção a todo vapor. No meu galpão os homens engravatados nos observavam de um mezanino à leste. Cerca de vinte ou trinta metros nos dividiam. Lá em cima uma sequência de pequenas salas alojavam escritórios. Era estranho trabalhar ali. Preferíamos os galpões sem mezanino. Assim a gente cruzava olhares só entre operários, sem ninguém a nos medir o tempo, a nos roubar alguma privacidade. 

Subi poucas vezes ao mezanino. O que se dizia era que o pessoal do administrativo passava horas em reuniões pra saber como aumentar a produção. Operário lá em cima era quase sempre pra levar esporro da chefia, pra ser mandado embora ou ameaçado de ser mandado embora. 

Essa foi minha primeira fábrica. Passei por outras tantas menores, ou quase do mesmo porte. Mas essa era a maior. No coração da Vila Operária, ali no olho do furacão, entre outras fábricas, fabriquetas, o comércio, as ruas de paralelepípedo, com casinhas operárias, pequenas, pé direito baixo, muros baixos, pinturas desgastadas; muitas casinhas geminadas, algumas com modestos jardins de frente. No fim da tarde as pessoas sentavam nas portas pra conversar com os vizinhos, ouvir rádio, ver as crianças brincando. 

Eu saía da fábrica e fazia uma hora, andando na praça, indo ao sindicato, ou ao clube dos ferroviários. A cabeça cansada do turno, a janta mal digerida de sempre, deglutida de pé em frente à casa da dona que nos servia a refeição da noite. Eu só podia entrar na pensão pra deitar depois das dez da noite. Era o acordo com dona Soledade. Até às nove e meia a minha cama era de outra pessoa, alguém que trabalharia em turno da noite, um vigia, qualquer dessas profissões noturnas. Esse esquema de cama compartilhada a gente chamava de cama quente. A gente virava o colchão e dormia, às vezes com a cama ainda quente do sujeito que tinha acabado de levantar. Quartos coletivos, com cheiro de gente, sons noturnos, de companheiros roncando, às vezes um ou outro com modos de falar dormindo, gente caminhando pelo quarto atrás de ir tomar água ou ir ao banheiro, o assoalho rangendo. 

A vida do operário era uma coisa muito compartilhada. Dia e noite. Éramos comprimidos, ajuntados, aglomerados. A impressão é que se isolar era algo impossível ali. A gente quando deitava ia longe nos pensamentos. Era o que a gente tinha de individualidade na Vila Operária. No contra-turno  da labuta, dez ou quinze minutos antes de nossos corpos sucumbirem ao sono. De resto éramos compelidos ao convívio.





sábado, 6 de novembro de 2021

Peões de obra

Crônicas da vida operária.

Inicio aqui uma série de crônicas com a temática operária. Li recentemente Crônicas da Vida Operária, do Roniwalter Jatobá. O próprio é organizador de uma coletânea de contos sobre o trabalhador brasileiro. Meu amigo Rodrigo Silva me sugeriu. Fui atrás e fiquei encantado. Segue então a primeira história. 

                                      ☆


Deco gordo, Zé Inácio, Alfredão, Vicente e Pubinha; Tonhão, Luís Carlos, Elias e Mauro; Claudinho e eu. Era esse o time titular da firma. Jogar bem a gente não jogava, mas nunca faltava disposição. Nossa especialidade era a marcação cerrada. O que faltava em caráter técnico a gente compensava com gana e certa dose de malandragem. Do Mauro não posso reclamar. O cara sabia me colocar na cara do gol. Metia bolas ótimas, não tinha muito vigor físico mas tinha uma visão inteligente do campo. Vez ou outra acertava passes que superavam o nível canhestro do futebol de várzea. A gente jogava naqueles campos de terra batida. Alguns tinham um rastro de grama nas laterais, dos gramados mais precários e vagabundos que se possa imaginar. Em dias de chuva ficava praticamente inviável o esporte. Saíamos tomados de barro, os uniformes de algodão fadados a uma condição de encardido insuperável. Banho gelado na sequência. Nossos corpos operários treinados para o infortúnio. Geralmente a gente jogava no sábado à tarde. Dali a turma sempre esticava pra uma caninha com petisco, ou pra uma cerveja em puteiro, coisa do tipo. Peão de obra também é dado a essas coisas. O pessoal muito dificilmente era moralista. Todos, ou quase todos, tinham suas casas, suas mulheres, seus filhos. Eram homens de fibra, que davam duro na semana, batendo o dia inteiro na obra, suando pra levar o sustento pras crias, pra colocar o pão na mesa da família. Podiam muito bem entrar numa birosca e ficar lá umas horas no fim da semana, passar a mão na bunda das moças da vida, pagar uma cervejinha pra elas, falar um pouco mal do chefe, afinal as moças eram exímias psicólogas pra gente, davam atenção, não faziam mal juízo, muito menos nos davam preleção de como agir. Dessas coisas que o homem não encontra em casa. Elas davam carinho e pegavam um pouco do nosso dinheiro, a coisa justa do sistema. 


Dessa turma de peões, da época de canteiros de obra, lembro com consideração de praticamente todos os homens. O peão de obra, diga-se, é um patrimônio do povo brasileiro, é uma jóia da nossa sociedade. As pessoas não costumam dar muito crédito, mas o peão de obra traz nos ombros esse país, e não fica nisso. O peão é o homem que bota a mão na massa mas que não deixa de pensar a sociedade. Tem suas convicções, sua personalidade, é homem experimentado, de vivência vasta, de horizontes expandidos. Ninguém dá muito pra reparar nisso. Prestam atenção nos eruditos, nos letrados, nos salões de homens afetados da alta sociedade. Eu, que vivi entre peões, os operários da construção civil, os pedreiros, ajudantes, mas não só, entre as tias da cozinha também, os moleques aprendizes, as vendedoras de café, os motoristas, entregadores, as moças da vida que circulavam entre todas essas categorias de trabalhadores, enfim, toda essa gente, por anos a fio observei o brio das pessoas comuns do povo. Como peão de obra especialmente vivi as histórias mais marcantes, mais inusitadas, engraçadas, que muitas vezes não tive sutileza de pensamento pra notar, fui reparar depois, no correr dos anos, no acúmulo das memórias. Histórias que dariam livros, histórias de amor, sofrimento, de richas de família, de mortes, vinganças. Histórias mais leves, corriqueiras, brejeiras, da infância daquele povo na roça, da chegada nas cidades, das primeiras experiências, das dificuldades mas também da nostalgia, das moradias improvisadas, das camas compartilhadas, dos dias de frio, a fogueira na porta dos alojamentos, as festas noite afora, das namoradas, as mocinhas das famílias operárias atrás de marido nos clubes, nas quermesses. enfim.


São muitas memórias. Dessa turma que citei o nome aí, por exemplo, tenho histórias ótimas. A começar pelo Deco gordo, nosso goleiro. Deco gordo era azulejista de primeira. Sujeito engraçado, de cara rechonchuda e um pouco infantil. Tinha um jeito curioso de andar, como que a calcular os movimentos, pra economizar energia, evitar esforço. Tinha as mãos pequenas, uma habilidade extraordinária no manuseio dos instrumentos. Teve uma época em que tentamos emagrecer o cara. Mandamos que ele comesse no máximo duas vez ao dia de trabalho. O cara comia toda hora! Antevendo problemas, pegamos no pé pra figura perder peso. Orientamos o Deco a beber um copo d'água toda vez que sentisse fome. Foi quando de vinte em vinte minutos passamos a vê-lo entornando canecas d'água no meio da obra. Boas lembranças dele. Era muito amigo do Vicente. Se entendiam muito bem na nossa pequena área. Tinham personalidades parecidas, os dois mais quietos, contemplativos, de palavras mais objetivas. O Vicente uma vez arrumou a maior confusão numa obra. Era numa igreja. Dávamos reparo completo no templo. Lá de cima do forro, ajudando o Elias nas telhas, ouvi um grito de mulher. Demoramos a descer, ficamos sabendo no fim da tarde que a polícia tinha baixado e levado o Vicente. Nosso camarada Vicente, vejam vocês que loucura, foi flagrado por uma das senhoras da igreja em pleno ato masturbatório. A dona disse que o Vicente estava de calça arriada, de joelhos em frente a uma imagem de santa. Não me lembro que santa era. Sei que a dona chamou a polícia e a situação foi delicada na firma. Levaram um advogado pra tirar o Vicente da cadeia, chamaram todo mundo e deram ordem pra que ninguém tocasse mais no assunto. Um dos diretores segurou a bronca dele, não deixou que o demitissem. Tiveram que ligar pra esposa do cara e dar uma desculpa pro atraso. Abafaram o ocorrido e quase mais nada foi falado entre a gente. 


Que a gente soubesse, só o Deco gordo ali era dado à punheta. Circulava com revistas de sacanagem, de mulher pelada. Mas era discreto. Os homens em geral eram modestos. De hábitos regulares, gente simples e de bom trato. Ficamos sem entender direito o acontecido. Até hoje me lembro disso e dou risada sozinho, tentando compreender o que se passa pela cabeça de um sujeito pra se excitar com as curvas de uma imagem de gesso, pra se dar a esse ato libidinoso em lugar público e de devoção. 


É como eu dizia, o operário é um homem de vida interior considerável. Não dá pra resumir o operário à vida funcional. Nunca. Eram homens que traziam pensamentos próprios, alguns mais criativos, introspectivos. Uma vez peguei o Jacinto com um livro do Sartre em cima da surrada maleta com emblema do Sport. A Náusea. Imaginem um peão de obra existencialista! 


Vi coisas muito interessantes entre os peões de obra.




quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Damnation. Luta de classes na veia








Dia desses comecei a assistir Netflix. Eu não me ligo em seriados, mas vi que a Netflix tem muitos filmes também. Pedi recomendações aos amigos e muitos deles me sugeriram a série Damnation. Vi que a série era de uma temporada só, dez episódios de 40 minutos cada. Resolvi conferir. 

Como não me ligo muito em seriados (prefiro filmes, onde a história se desenvolve e se encerra em questão de uma hora e meia ou duas), Damnation começou a prender minha atenção só a partir do sétimo episódio, já lá pelo final. 

Seriados tem aquela dinâmica de idas e vindas, né, aquele formato novela. Não é muito minha praia. Não digo que toda novela seja chata, que não haja boas novelas. É uma questão de preferência. 

Mas Damnation é realmente muito interessante. Tem uma leitura marxista da realidade. Fala de luta de classes, conta a história de dois irmãos que tomam rumos opostos. Um deles vira fura greve profissional, matador de líderes grevistas, e o outro vira revolucionário, comunista. 

O inusitado da história desse que vira revolucionário é que ele adota o disfarce de pastor evangélico. Ele é como um missionário, um pastor itinerante que vai de cidade em cidade pra levar sua mensagem e organizar comunidades. O nome dele é Sef. Sef se casa com uma moça revolucionária. Filha de um industrial, ela abandona a família e cai na militância política. Sef é o pastor e a ela cabe o papel de mulher do pastor. Os dois tem um discurso religioso, mas se valem disso para a agitação política com os trabalhadores, dizendo a eles que a vontade de Deus é que o povo viva bem e que resista à ganância dos patrões. 

Sef e a esposa se estabelecem numa cidadezinha do Iowa (a história se passa nos EUA dos anos 30, e retrata a grande depressão americana) e passam a liderar um grupo de fazendeiros pobres que se opõe aos bancos e aos ricaços. Eles batalham contra o sistema de hipotecas, em que muitos pobres perdem suas casas para os bancos, e contra o controle dos preços pelos monopólios, o que gera a miséria dos pequenos produtores locais.

E é uma história cheia de violência e sangue, de mortes, torturas, todo tipo de barbaridade e injustiças. Me lembrou bastante um romance do Jack London chamado O Tacão de Ferro, que resenhei aqui em 2017 se não me engano. Essa história do London também retrata a fúria da burguesia em busca de suas taxas de lucro, e também envolve espionagens, contra-espionagens, personagens que adotam disfarces, que vivem na clandestinidade, etc.

O fato realmente interessante nessa série, e aí entra um spoiler aqui, é que Sef, além de irmão do fura greve, é filho de fura greve e ele próprio fora fura greve na juventude. Em determinado momento se arrepende e muda de vida, como numa conversão religiosa. E de fato ele tem crença religiosa, ao contrário da esposa, que é ateia e que tão somente faz as vezes de mulher de pastor pra militar politicamente. 

É interessante que esse seriado coloca a questão da religião como elemento de libertação do povo. A religião que na maioria das vezes é instrumento da alienação mental dos explorados e miseráveis, o ópio do povo ao passo que serve de máscara ideológica aos donos do poder. 

Mas a religião pode servir a uma e outra coisa. Depende. Em alguns momentos da história a religião teve papel importantíssimo em revoltas populares. O verdadeiro espirito do cristianismo, por exemplo, é este. A igreja primitiva, nos primeiros séculos cristãos, antes que o Império Romano cedesse ao crescimento vertiginoso da nova religião, era uma crença de pobres e miseráveis que reivindicavam a dignidade humana, a fraternidade, a igualdade universal, o advento de um homem novo num reino de justiça. 

Em vários momentos da história essa questão ressurge ruidosa. O expoente desse pensamento nos dias de hoje é a Teologia da Libertação, e se observa essa influência no papado e nas palavras de Francisco. Nesse sentido, vivemos um período auspicioso, de ver no líder máximo da Igreja Católica um homem progressista e extremamente arejado.

Mas, enfim, esse meu pequeno texto é pra sugerir que vocês assistam Damnation. Aos professores, tá aí uma excelente opção pra trabalhar com os aluninhos. Vão chamar isso de doutrinação marxista...rs... Tomem cuidado!


Obs: Infelizmente a série não teve continuação. É uma temporada só. Aí dá pra ver em poucas horas. 

Os amigos me sugeriram uma série brasileira. 3%. Vou dar uma conferida. Aceito novas sugestões.

domingo, 18 de julho de 2021

Gato atropelado



Alguma vez vocês já viram um gatinho agonizar? Eu nunca tinha visto, vi hoje. A coisa mais triste. 

Vinha no ônibus, distraído, lendo um livro. De repente o motorista pára e aponta um gato estirado no meio da rua. 

- O carro atropelou.

-Que carro, moço?

- O carro lá da frente. Você não viu?

Eu não tinha visto nada. Vinha entretido na minha releitura de Carisma e poder, o clássico do Boff. 

Lá estava o gato no asfalto, cuspindo sangue, tentando erguer a cabeça, tremelicando. O carro que atropelou não parou pra socorrer. Eu vinha na parte da frente do ônibus, que o motorista tava sem troco. Ele abriu a porta, ameaçou descer. Eu desci antes, fui até o gato, quase fui atropelado também, dessa vez por um motoqueiro que vinha atrás. A rua praticamente deserta de pedestres, mas com muito movimento de automóveis. O motorista do ônibus sugeriu tirar o gato do meio da rua antes que um outro automóvel passasse por cima e terminasse de matar. E era isso mesmo o melhor a se fazer. O gatinho preto, no meio do asfalto de uma rua escura, fatalmente seria esmagado. Na calçada talvez tivesse uma chance de ser resgatado e viver. 

Arregacei as mangas pronto para me sujar com o sangue do gato. Temi que ele me mordesse ou me arranhasse. Quase não esboçou reação, só um leve contrair-se de patinhas. Atravessei a rua e o deixei na calçada de uma casa, com o peito apertado, ele me olhava com os olhinhos vidrados, um dos olhinhos ensanguentados. Olhei pros lados da rua, ninguém por perto, ninguém pra pedir ajuda. Me acocorei ao lado do gato, fiz um carinho em sua cabeça. O moço do ônibus me chamou. Previsava arrancar com o veículo, havia passageiros. 

Entrei de volta no ônibus, me limpando com álcool gel pra tirar o sangue das mãos. Fui pelo caminho rezando pra que o gato tivesse uma chance. Puxa, mas que falta de sorte, pensei. Todo dia deve ter gatinhos que são atropelados no mundo. Mas eu tinha que presenciar a agonia do gato?! Podia ser o atropelo de uma pomba, de um rato. O atropelo de um gatinho fofo é muito triste. 

Pensei que talvez devesse ter tocado a campainha da casa. Talvez o gato fosse de lá. Podia ter desistido da viagem pra procurar socorro pro gato. Mas também eu estava em um lugar desconhecido. Vinha numa linha que nunca pego quase, que não sei do caminho. Peguei essa linha porque a minha linha habitual demorava pra passar dessa vez. 

Estava indo pra missa. E já estava atrasado. Cheguei na igreja no meio da missa. Dia de azar. Me atrasei porque fiquei em casa assistindo o jogo do Palmeiras. Bom, pelo menos o Palmeiras ganhou a partida. Mas se eu saísse de casa mais cedo não teria presenciado o atropelamento do gato, estaria dentro da igreja, protegido dessas desgraças que acontecem por aí nas ruas. 

Demorei a me concentrar na igreja. Na cabeça vinha a imagem do gatinho ensanguentado e agonizante. No altar mor da paróquia uma imagem do menino Jesus me chamava a atenção. Nunca tinha entrado nessa igreja. Zona norte de São Paulo, Igreja Menino Jesus do Tucuruvi, uma igrejinha velha, muito simples, sem graça, de bancos velhos, povo desanimado. O menino Jesus do altar, também mal apanhado, mas um menino Jesus. Deve ser difícil encontrar coisa mais singela e comovente que um menino Jesus. Só se for um desses meninos Jesus de carne e osso que mendigam ou vendem balinhas pelos centros das cidades. Esses também chamam a atenção da gente. Fazem chorar aos sensíveis tanto como um gato atropelado em sua agonia de morte. 

Saí da igreja e vi uma pomba espatifada na rua.  Atropelamentos de bichos são mais comuns do que a gente imagina. É o ciclo da vida. Verdade. Faz parte. Mas eu continuo meio sensível pra essas coisas. Acho que vou levar uns dias pensando nesse gato.



terça-feira, 11 de maio de 2021

Lula 22. Algumas perspectivas

 



Um amigo meu veio me perguntar se a o apoio da esquerda ao Lula em 22 irá depender de alguma discussão programática. Achei um pouco ingênuo o questionamento. Em condições normais de temperatura e pressão, uma discussão programática seria mais ou menos natural, muito embora a gente não deva se iludir de que os capa-pretas dos partidos e sindicatos se orientem senão por interesses mais imediatos e cálculos pragmáticos. Mas, ok, eu respondi ao meu amigo. Segue o raciocínio. 


1- O cara pra ser presidente se submete aos desejos do mercado financeiro e da classe política. É o esquema que tá posto. É extremamente improvável que alguém contrarie essa lógica. Com o Lula não vai ser diferente. 


2- O Lula não tá preocupado exatamente com um programa, mas com uma articulação política que o permita voltar à presidência e lá se manter. 


3- As condições econômicas do país são extremamente ruins. Qualquer um que for eleito vai ter que dar um jeito de recuperar o negócio. O Lula tá se candidatando a isso. O capital quer soluções moderadas, claro. Nenhum programa nacional desenvolvimentista. Só uma azeitada superficial na máquina, pra seguir com o regime de acumulação.


4- Acontece que o apoio das esquerdas ao Lula não estará condicionado a um determinado programa progressista. Porque a coisa tá se desenvolvendo de um modo que será ou Lula ou Bolsonaro. 


5- Se o Bolsonaro for incriminado e impedido de seguir na vida política, aí talvez a polarização volte a ser PT x PSDB. Mas mesmo assim o cenário não se altera substancialmente. A esquerda, infelizmente, tá muito refém do lulismo. E é aquele negócio que a gente sabe. O Lula não é de esquerda. Perto da direita brasileira o Lula é um herói do povo, mas não é de esquerda. Ele tá disposto a recosturar toda a aliança de outrora com as oligarquias, com o capital nacional, com bênçãos do imperialismo se necessário. E se as elites não tiverem outra solução à mão, liberam o homem pra ser presidente de novo; encarregam ele pra esse trabalho de "reconstrução nacional".


É basicamente isso.