quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Vida de operário


Da série Crônicas da vida operária

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Descia a rua baratinado, pulara da cama chamado por Dona Soledade, a senhora gorda da pensão, mal lavara o rosto. Pela rua vinha entre dormindo e acordado, com fragmentos de sonhos nos pensamentos, o cérebro a reclamar descanso para o corpo e fantasias para si, resistente à vigília, buscando à força mais alguns instantes de letargia. Na rua um vento cortante e gelado. Eram muito frias as manhãs na Vila Operária. A gente saía pra trabalhar com o dia amanhecendo, o céu cinzento; o sol ia despontar com a gente já no turno da fábrica. Geralmente tinha neblina cobrindo as ruas, os filhos dos trabalhadores brincando de soprar fora o ar quente pra ver uma espécie de fumaça que se formava em contato com o ar frio. 

A cidade era muito fria nessa época, garoava muito também. E vinha eu pela rua entre o sono e a vigília, as pernas a pulso pelos caminhos da Vila Operária. Barriga vazia, barriga roncando. Entrei na padaria do Seu Manuca e fiz o sinal do café. Olhava a estufa de salgados com olhos gordos. O pão com manteiga habitual enjoava a gente. Pedi um pão com môi. Pão com môi era como se chamava o pão com molho. Tinha lá um lanche que se fazia com pão e salsicha. Tipo um cachorro quente, a salsicha embebida em molho de tomate com pimentão e condimentos. Acontecia que o pão com molho saía pela metade do preço. Era como se o pão com a salsicha saísse por um cruzeiro, e o pão sem a salsicha saísse por 50 centavos. 

E era o que cabia no nosso bolso de peão de fábrica. A salsicha ficava pros engravatados dos escritórios, ou pros operários das montadoras. Os operários das montadoras tinham vida melhor que a nossa. Em geral um pouco mais estudados, com passagens pelo Senai, cursos de especialização, essas coisas. 

Mas  como eu dizia, comia lá o meu pão com môi e café. O café vinha bem doce, naqueles copinhos americanos que cheiravam sempre à cachaça. O operário brasileiro sempre apreciou muito o trago. Mas geralmente era no fim do expediente; de sexta-feira uma cervejinha pra acompanhar um jogo de sinuca, o pessoal reunido nos batentes dos botecos pra ver as ancas das raparigas que subiam apressadas nos coletivos. Cachaça de manhã só os alcoólatras mesmo; alguns engoliam um trago na hora do almoço. O almoço quase sempre arroz com feijão e carne de segunda, uma salada murcha e feia, e farinha. Os homens dos escritórios comiam feijoada às quartas e peixe frito às sextas. O pessoal do chão da fábrica tinha um cardápio mais resumido. A maioria também não se dava ao luxo de pagar comida, levava de casa, deixava no marmiteiro da cozinha. Enormes marmiteiros pra acondicionar a quentinha da peãozada. Era essa nossa gastronomia operária básica. Anos depois trabalhei em lugares que ofereciam refeitório. Mas a comida era basicamente a mesma. Também entupiam a gente de groselha e gelatina. Nada mais. Diziam as más linguas que metiam salitre na comida, que era pra dar sensação de bucho cheio.

Um recurso que a turma tinha nos dias festivos era reunir as famílias das ruas em encontros grandes. Cada um levava um prato. Era uma forma de comer coisas diferentes. E as famílias se ajudavam também, trocavam ítens, se solidarizavam com os mais pobres, dividiam o que podiam. Gostavam muito de carnes gordurosas e pratos típicos dos lugares de onde tinham vindo. 

Terminei de engolir o café com pão e fui me direcionando à gigantesca fachada amarela da fábrica. Um pátio muito grande, com bonitos ipês do lado esquerdo, a guarita dos vigias rodeada de gramado e plantinhas mais rasteiras. Uma pequena massa de homens e mulheres à espera da abertura dos portões. Todos depois em direção aos vestiários. Troca rápida de roupa e tomada de postos nas máquinas. Uma barulheira. À essa altura a cirene já havia soado. Não tinha mais como bater cartão. Os atrasados perdiam o dia. Fechavam-se os portões e a fábrica toda era um grande organismo a pulsar. 

Havia ali alguns galpões, todos eles muito grandes, centenas de operários, a linha de produção a todo vapor. No meu galpão os homens engravatados nos observavam de um mezanino à leste. Cerca de vinte ou trinta metros nos dividiam. Lá em cima uma sequência de pequenas salas alojavam escritórios. Era estranho trabalhar ali. Preferíamos os galpões sem mezanino. Assim a gente cruzava olhares só entre operários, sem ninguém a nos medir o tempo, a nos roubar alguma privacidade. 

Subi poucas vezes ao mezanino. O que se dizia era que o pessoal do administrativo passava horas em reuniões pra saber como aumentar a produção. Operário lá em cima era quase sempre pra levar esporro da chefia, pra ser mandado embora ou ameaçado de ser mandado embora. 

Essa foi minha primeira fábrica. Passei por outras tantas menores, ou quase do mesmo porte. Mas essa era a maior. No coração da Vila Operária, ali no olho do furacão, entre outras fábricas, fabriquetas, o comércio, as ruas de paralelepípedo, com casinhas operárias, pequenas, pé direito baixo, muros baixos, pinturas desgastadas; muitas casinhas geminadas, algumas com modestos jardins de frente. No fim da tarde as pessoas sentavam nas portas pra conversar com os vizinhos, ouvir rádio, ver as crianças brincando. 

Eu saía da fábrica e fazia uma hora, andando na praça, indo ao sindicato, ou ao clube dos ferroviários. A cabeça cansada do turno, a janta mal digerida de sempre, deglutida de pé em frente à casa da dona que nos servia a refeição da noite. Eu só podia entrar na pensão pra deitar depois das dez da noite. Era o acordo com dona Soledade. Até às nove e meia a minha cama era de outra pessoa, alguém que trabalharia em turno da noite, um vigia, qualquer dessas profissões noturnas. Esse esquema de cama compartilhada a gente chamava de cama quente. A gente virava o colchão e dormia, às vezes com a cama ainda quente do sujeito que tinha acabado de levantar. Quartos coletivos, com cheiro de gente, sons noturnos, de companheiros roncando, às vezes um ou outro com modos de falar dormindo, gente caminhando pelo quarto atrás de ir tomar água ou ir ao banheiro, o assoalho rangendo. 

A vida do operário era uma coisa muito compartilhada. Dia e noite. Éramos comprimidos, ajuntados, aglomerados. A impressão é que se isolar era algo impossível ali. A gente quando deitava ia longe nos pensamentos. Era o que a gente tinha de individualidade na Vila Operária. No contra-turno  da labuta, dez ou quinze minutos antes de nossos corpos sucumbirem ao sono. De resto éramos compelidos ao convívio.





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