terça-feira, 30 de novembro de 2021

Vila Industrial

Continuação da série Crônicas da Vida Operária 


                                    ☆



O chão da Vila Industrial era mais avermelhado em Julho. Tempo de frio, não chovia de jeito nenhum. Subia aquela poeira das estradinhas que iam dar na roça. Ida e vinda constante de caminhões, caminhonetes, ônibus de operários, ônibus escolar, eventualmente carrinhos particulares, todos muito simples, que morriam no caminho, a turma tendo que descer pra empurrar. 

Minhas memórias do inverno são as mais satisfatórias, apesar do ar mais pesado, da fuligem e da poluição. A bem dizer, o ano inteiro era tempo de fumacê nas chaminés das fábricas. Os asmáticos sofriam terrivelmente. O sujeito tinha que ter pulmão bom pra morar na Vila Industrial. Tísico ali não se criava. As crianças doentinhas tinham de ser levadas pra outros arredores mais salubres. 

O inverno era rigoroso, mas acendíamos fogueiras de noites inteiras, com música, namoricos, pinhão na brasa e outros atrativos juninos. Saboreávamos, por exemplo, canjica, arroz doce, doce de abóbora. Tinha arrasta pé e diversão, tinha também briga, risca-faca, homens de bucho furado nas desavenças que em geral se originavam por causa de mulher. Mexer com mulher casada na Vila Industrial era praticamente sentença de morte.

O mais curioso ali na Vila Industrial era a mistura de gentes e culturas. Tinha os nordestinos, arretados, de sangue quente, Hércules Quasimodos do chão de fábrica; tinha os italianos, de temperamento semelhante; e os espanhóis. Os portugueses eram mais discretos. E os japoneses, muito cordiais, de poucas amizades mas de muito bons modos. Árabe tinha também, em menor quantidade, como os polacos. Era uma mistura interessantíssima. Sempre curioso observar as diferenças entre uma terra e outra, os hábitos arraigados, mais característicos das culturas, e aqueles hábitos mais flexíveis, que iam sendo deixados de lado à medida em que as comunidades se adaptavam ao novo país. Algumas famílias de origem italiana, por exemplo, já falavam só o português. Um palavrão ou outro soltava-se na velha língua. Desconfio que muitos não saberiam mais nem dar a tradução certa. Sangue italiano completamente convertido em brasileiro. Não blasfemavam. Pelo contrário, eram devotos e supersticiosos. De jeito nenhum falavam mal de falecido. Abaixavam a cabeça e repetiam a fórmula do "que Deus o tenha". 

Os japoneses não eram de bater cartão em fábrica. Eram muito independentes e gostavam de trabalhar por conta própria fosse na roça ou no asfalto. Uns plantavam legumes e hortaliças, outros mais espertos mexiam com assistência técnica. Eram sorridentes e faziam ginástica, muito esguios e de hábitos modestos. Eram certamente os que menos se misturavam. Aparentemente eram comedidos em tudo. Disciplina asiática.

Os espanhóis eram os mais lascivos, gostavam de farra e apreciavam as aventuras do adultério. 

Certa vez flagrei Seu Argemiro currando uma moça nos fundos de sua oficina de ferreiro. Uma mulher de peitos generosos, mulata, rosto muito simpático. No lado do balcão em que me meti ali dava pra ver parte dos fundos do recinto. Entre velharias e móveis estropiados o espanhol copulava ardorosamente com a morena. A moça inclinada por sobre uma mesa de madeira, Argemiro pegando- a pelas costas, com esgar de deleite, puxando-lhe os cabelos por debaixo do lenço. Era época em que algumas mulheres andavam ainda de lenço. 

Alguns homens também andavam de chapéu, ou boina. Era um pessoal de roupas mais triviais o da Vila Industrial. Macacões de fábrica, vestimenta simples do trabalho braçal, sem muita ocasião pra ostentar arrumação, perfume, essas coisas. Mesmo em hora de divertimento havia pouco interesse em se arrumar. Andávamos todos entre as mesmas famílias de sempre. Tínhamos intimidade, nos dávamos bem e nos tratávamos como a velhos camaradas. As mulheres ainda que se arrumavam mais, mas não como as donas do centro. 

Em certa medida tínhamos na Vila Industrial uma vida mais frugal. Tinha os brutalismos do chão de fábrica, o regime semi-inclemente das fábricas de antigamente, pouco arejado, ruidoso, estafante e tedioso. Isso levávamos em ritmo maquinal. Nossos pais já vinham disso. Tínhamos o ritmo da labuta impregnado no caráter. Aproveitámos a vida apesar da condição operária. Nossos fins de semana eram de alegria, contemplávamos os pequenos detalhes. Jogávamos bola nas encostas do morro, fazíamos o famoso churrasco de gato, carne de segunda mas temperada com afeto. Íamos às matinês no domingo, ver as fitas de bang-bang, Carlitos, Mazaropi. Não era propriamente uma vida boa. Mas não era ruim. Na singeleza do cotidiano atravessávamos a vida. Comíamos fruta do pé, íamos aos bailes, tínhamos uma boa vista da paisagem ali pelos arrabaldes. Era bonito ver o sol cair nas tardes da estrada, os tons alaranjados do céu em contraste com o banhado de poéticas paletas verdes. Éramos operários da indústria, a maioria filhos de operários da indústria, mas trazíamos ainda um pouco da condição contemplativa dos homens do campo. Tomávamos chá, sabíamos das ervas. Andar pelo subúrbio da Vila Industrial era experimentar diferentes fragrâncias a cada 10 ou 20 metros. Do jardim de uma casa sentia-se cheiro de anis, indo em frente vinha cheiro de menta, ou erva doce. E por aí afora. Muito cheiro de mato nos terrenos grandes ainda sem construções, cheiro das queimadas, cheiro de terra.

Tínhamos uma relação muito aberta com aquele pedaço de chão. Nem sempre essa relação aberta se estendia totalmente às pessoas, afinal sempre há um ou outro mais arisco, menos dado ao trato social, um que bate na mãe, ou que resolve fumar droga. Seu Irandir, sindicalista da velha guarda, combativo, costumava dizer que filho da puta e problemático nasce até nas melhores famílias operárias. Mas em geral desfrutávamos de relações muito francas, muito apraziveis. Havia certamente diferenças entre as gerações. Daquela época lembro bem da revolução sexual que se urdia entre os jovens. Havia ali remanescentes do sonho anarquista, gente que aspirava a uma sexualidade mais natural, mas no geral eram famílias que traziam hábitos conservadores. Queriam casar as filhas virgens, não deixavam as meninas saírem sozinhas. Não que isso adiantasse de alguma coisa. 

O lugar mais interessante da Vila Industrial era conhecido por nós como o baixio da metelança. Nome assustador, verdade. O lugar era uma espécie de jardim da promiscuidade. Um oásis dos casaizinhos num trecho mais recôndito de bosque. Tipo um brejo, com troncos de velhas árvores caídas e maritacas cantando. Era ali que a moça de família era feliz sem o pai sequer desconfiar.

Havia uma espécie de código de ética para a fornicação. O que acontecia no baixio ficava no baixio. Se um cara, por exemplo, pegava uma moça e saía espalhando ou comentando, nunca mais  pegava nenhuma outra moça. O silêncio era condição da vida sexual do cara. De algum jeito as meninas se articulavam pra acabar também com a reputação do falastrão. E dava certo. 

Outras revoluções foram similarmente arquietadas no seio da Vila Industrial. Algumas mais sutis, outras menos. Veio depois muitas novidades. Veio a droga, enfim, todas essas coisas de cidade que vai crescendo. E tudo nessa vida muda. Ficamos com saudade dos nossos dias de jovens. Era um tempo bom, apesar de tudo. Lembro com nostalgia do chão avermelhado da Vila Industrial.






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