terça-feira, 21 de dezembro de 2021

As ideologias no chão de fábrica

Quarta crônica da série Crônicas da Vida Operária 


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Filho da puta tem em todo lugar. Não tem jeito. Em todo lugar se encontra esse tipo de gente. No chão de fábrica também tinha. A começar pelos chefes. A maioria era de filhos das putas profissionais. Sabiam ser carrascos, gostavam de tripudiar a peãozada, de gozar da nossa cara. Às vezes de forma muito sutil, com um risinho de canto de boca, uma palavra maldosa disfarçada em meio a um pretenso conselho. Canalhas, cínicos. Dava pra sentir o gozo deles ao soltarem as listas de dispensa, ou quando afixavam no quadro de avisos a escala da hora extra, fudendo com a gente que ia perder a sexta feira à noite. 

Mas os que nos metiam mais raiva eram os puxa-sacos, os peões como a gente que ficavam lambendo os caras da chefia. O mais filho da puta conheci numa indústria têxtil em que passei uns meses. Ali era mais mulher trabalhando, operando as máquinas. Os poucos homens faziam os trabalhos acessórios. Um deles era o Antônio Justino. Filho da puta de marca maior. Cagueta. Tinha o péssimo costume de entregar os deslizes da turma. Gente que chegava atrasada, e que um companheiro batia o cartão por camaradagem; pequenas avarias nas máquinas, por distração na operação. Esse tipo de coisa. O filho da puta entregava mesmo. E se achava no direito de entregar. Se envaidecia, se inchava de orgulho, achava que era o peão padrão de qualidade, caxias, irrepreensível, o peão que qualquer patrão queria em sua firma.

Pois bem, foi assim até que uns mal-elementos primos de uma operária delatada resolveram amaciar a carne do Justino. Pegaram o sujeito num beco perto da fábrica, a tarde caindo, o dia quase escuro. Pegaram e judiaram. Deixaram o Justino todo moído de porrada. Era o aviso pro cara deixar de ser filho da puta. 

Depois disso não passei lá muito tempo. Difícil um filho da puta se emendar. Lembro bem do regozijo coletivo da turma ao saber do acontecido. Até o Elói da portaria de certa forma apreciou o corretivo. E o Elói era extremamente religioso. Elói foi um dos primeiros crentes da Vila Operária. Desses que vão de terno e gravata pela rua, bíblia debaixo do braço, dando a paz do senhor pro pessoal. Elói era religioso mas também não gostava de filhos da puta. 

Os crentes da Vila Operária eram como os crentes de todo lugar daquela época. Trabalhavam duro de dia e à noite faziam alguma atividade da igreja. Não tinham tv em casa, e isso numa época em que a tv se popularizava muito nas casas operárias. Eram discretos de dia, e à noite rezavam meio alto nas igrejinhas improvisadas em portas de garagem. Banquinhos de madeira mal-arranjados, luzes amarelentas, um cidadão empunhando uma viola à frente dos fiéis, regendo os hinos, o pastor pregando o reino dos céus. E era um discurso esquisito, mas tirava muita gente da cachaça, atraía umas donas de casa. Sempre tinha meia dúzia de gente nas igrejinhas. As mulheres de cabelos compridos e saias abaixo das canelas, entravam no templo e ajoelhavam aos pés dos banquinhos de madeira, olhos fechados, a boca murmurando orações. E cantavam, cantavam, mal afinados, vozes sôfregas, o ar faltando. Cantavam e rezavam lá dentro. Fora da igreja tentavam incorporar novos membros. No começo não dava muito certo. Teve uma época depois que o movimento deles ficou mais encorpado. Eram conservadores, mas não eram exatamente reacionários. Não todos. Eram pessoas simples, de pouca leitura. Na Vila Operária as igrejas juntavam menos gente que na favela. Tinha lá um morro em que prosperaram umas quatro ou cinco igrejinhas. No mesmo morro havia uma só capelinha católica, igualmente improvisada.

Era curioso observar a movimentação dos religiosos. Depois de tantas décadas tenho uma noção mais aclarada da coisa, obvio, mas na época já dava pra, de alguma forma, observar as tendências.

Na Vila Operária, por exemplo, teve uma época em que chegou um padre operário. Padre Inácio, homem inteligente, meio calvo, olhos brilhantes, rosto pacífico. Sujeito calmo, de bom humor. Se meteu numas fábricas como se peão de fábrica fosse. E isso numa época da pesada, em que a repressão comia solta. O homem era politizado, esclarecia os operários, tinha coragem. Me mudei e depois não tive mais notícias. 

A Vila Operária era assim. Tinha filho da puta, tinha padre. Tinha de tudo na Vila Operária. A Vila Operária nos dava uma boa medida do mundo. Éramos cosmopolitas nas ruas da Vila Operária. O nosso mundo era sim muito pujante e muito vivo.

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