domingo, 30 de agosto de 2020

Um bispo contra todas as cercas





No início desse mês de Agosto perdemos uma grande referência da teologia da libertação e dos direitos humanos no Brasil. Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito da prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Aos 92 anos, tendo lutado muitos anos contra o Parkinson e a pressão alta, Casaldáliga faleceu na Santa Casa de Batatais, interior de São Paulo. A notícia de sua morte foi omitida pelos grandes meios de comunicação, mas tomou as redes sociais. Faço questão de deixar aqui uma pequena resenha de um excelente livro sobre a vida e as causas de Pedro. 


"Não poderia ser a vida de uma pessoa uma obra de arte?" E aqui cabe ainda lembrar que a estética aristotélica definia ser belo aquilo que encanta. Pedro gozou, sem dúvida, de uma vida encantadora. Uma verdadeira obra de arte.


Esse parágrafo acima é um trecho do livro "Um bispo contra todas as cercas. A vida e as causas de Pedro Casaldáliga, da Editora Vozes, escrito pela jornalista Ana Helena Tavares. Essa primeira frase do excerto é uma pergunta que Foucault faz em alguma parte de sua obra. Pergunta muito interessante. Excelente mote pra qualquer assunto referente à vida. 


De fato, a vida de uma pessoa deveria ser uma obra de arte. E se a vida ainda não se converteu em obra de arte é porque esse mundo, com seu modo de produção dominante, com seus sistemas econômico, político e social não permite que assim seja. E arrisco dizer que se a vida deste santo, Pedro Casaldáliga, foi uma obra de arte, uma vida encantadora, inspiradora, o foi por conta de suas firmes decisões que em tudo contrariaram a lógica desse mundo. Pedro foi um revolucionário. Ele mesmo se auto-classificava como revolucionário. Chamado de subversivo pelas forças da ditadura militar, pelos setores conservadores da sociedade, fazia questão de assumir. E acrescentava: Não só sou subversivo. Sou revolucionário. 


Vejam a coragem do homem, a firmeza de propósito. Pedro era um religioso. Padre da congregação dos claretianos. E se tornou bispo pouco tempo depois de chegar ao Brasil, para onde veio em missão após um período na África. Era de origem espanhola, mais precisamente da Catalunha; de um pequeno povoado próximo a Barcelona. 


Nascido numa família de pequenos produtores rurais, família tradicional, de pensamento reacionário, Pedro tomou outro caminho. Desde cedo se decidiu pelos pobres.


Foi no Brasil, já depois dos 50 anos de idade, que alçou um degrau na hierarquia da igreja, sendo promovido a bispo. Não queria aceitar o cargo. Foi convencido pelos amigos, que argumentavam que na condição de bispo, teria mais condições de seguir seu trabalho com os pobres. Ganhou visibilidade com seu trabalho junto aos povos indígenas e ribeirinhos da região do Araguaia, se indispôs com o regime militar nos anos de chumbo, quase foi expulso do país, ganhou projeção nacional e internacional. A cúpula da igreja brasileira o defendeu. O próprio papa à época, Paulo VI, mandou recado aos militares para que estes não tocassem em Pedro, que não admitiria que Pedro fosse alvo de hostilidades por parte do estado brasileiro.


E assim se tornou um dos principais nomes da nascente teologia da libertação, movimento que surgiu na igreja da América Latina e que dialoga com o marxismo. 


Pedro se colocava claramente contrário ao latifúndio, mesmo que este fosse produtivo. Há na Internet uma histórica entrevista de Casaldáliga ao programa Roda Viva, em que o bispo menciona essa opinião. 


Pedro, praticamente até o fim da vida, foi alvo de ameaças de morte por conta de sua indisposição com os grandes latifundiários da região amazônica. Havia na região uma terrível concentração de terra, com marginalização e miséria dos trabalhadores rurais, casos de trabalho escravo, torturas aos trabalhadores, mortes, etc. Uma situação realmente muito delicada. E Pedro nunca se calou, nunca se vergou diante das ameaças. 


Em determinada ocasião, dentro de uma delegacia, onde reclamava a soltura de duas mulheres negras que sofriam tortura das autoridades, Pedro foi testemunha do assassinato do padre João Bosco Penido Burnier, que o acompanhava. Contrariado com a presença dos religiosos no distrito, um dos policiais o assassinou com um tiro na nuca. Acontece que o tiro não era para o padre Burnier, mas para Pedro. Só que, nas próprias palavras de Pedro, "o padre Burnier tinha mais pinta de bispo". Estava com um clérgima no pescoço, aquele colarinho que os padres usam. 


Pedro andava como um homem simples do povo, de chinelos de dedo. Não havia em seu visual deferências clericais. Trazia um anel de tucum na mão, ao invés do anel de bispo. Foi condição estipulada por ele na nomeação a bispo. Não queria trazer consigo nenhum sinal de poder. Seu báculo de bispo foi um remo indígena.  Tinha uma concepção de igreja muito próxima do que tem agora o Papa Francisco. Defendia uma igreja pobre, que se misturasse no meio do povo, sem distinção, sem privilégios, parceira do povo trabalhador em seu cotidiano. 


Na sua casa em São Félix, uma casa simples, de paredes sem reboco, em nada parecida com um palácio episcopal, por muito tempo não teve nem geladeira. Se recusava a ter. Não queria ter em casa um eletrodoméstico que muitos ribeirinhos não tinham condições de ter. Muitos anos depois foi convencido pelo padre e pela freira que também moravam na casa. Era um homem democrático. Sabia ser voto vencido. Tinha profundo respeito pela opinião das pessoas, pela autonomia da comunidade. 


Embora bispo, nunca almejou conforto ou notoriedade. Coisas que são muito próprias aos bispos. Por exemplo, nunca aceitou ter ar condicionado em casa. Se refrescava com um ventilador em meio ao clima de altas temperaturas do Mato Grosso. Falou que quando morresse queria ser enterrado num cemitério Karajá às margens do rio Araguaia, entre um peão e uma prostituta.  


E assim aconteceu. Foi sepultado descalço, com uma estola (item litúrgico utilizado pelos padres) nicaraguense. Pedro foi defensor de primeira hora da revolução na Nicarágua. Esteve em Cuba, onde foi recebido pelo presidente Fidel Castro. Era um homem confessadamente de esquerda. Um santo dos nossos dias. 


Muito em breve será conhecido como São Pedro Casaldáliga dos indígenas e pobres. Patrono da floresta, dos rios, da libertação. E da poesia. Pedro foi exímio poeta. 


Tudo isso e mais um pouco está lá no livro da Ana Helena. Recomendo muito a leitura.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Paulo Guedes acuado? / Paulo Guedes é só mais um detalhe da miséria brasileira




Bozo e Guedes representam o mesmo programa. Se o Guedes tá sendo apertado, é porque esse aperto passou pelo Bozo antes.


Não tem como os caras passarem incólumes por uma barbárie social como esta que estão engendrando. 


A diferença do Guedes pro Bozo é que não precisa de processo de impeachment pra tirar um ministro de estado. Aí ele paga o pato. Apesar de ser muito estimado pelo imperialismo e pela especulação. 


Que é o mesmo caso do Bozo. Se a coisa apertar, ele também vai embora, descartado. 


Ele percebeu que se não baixasse a bola ia dançar. Aí fez essa notória movimentação de ficar mais calado nas últimas semanas. Mas, reparem, arguido sobre os cheques da Michele, deu um coice no repórter e voltou a ser contestado. Tem que ver como que a coisa vai evoluir agora. 


Mas a gente tem que notar que ninguém no estado burguês tem cadeira cativa. Ainda mais em se tratando de Bozo. Trump tá pra ser descartado lá em cima. Os donos do poder, ao que parece, não são muito simpáticos aos fascistões. Não que os donos do poder não queiram baixar o cacete no povo. Mas é que o político de plantão deles tem que baixar o cacete ao passo em que simula uma certa conduta democrática. Como é o caso da chapa Biden/Kamala. 

Isso se aplica em escala global. O tacão de ferro do neoliberalismo contemporâneo conta com sutis (às vezes não tão sutis, porque as contradições tomam vulto) mecanismos ideológicos. E nessa toada eles seguem com a política de rapinar o povo. Queimam um ministro aqui, um presidente ali, trocam nomes, seis por meia dúzia, rearranjam a logística e é capitalismo tardio que segue. Até o Paulo Guedes pode ser rifado. Por impressionante que isso nos soe.


Aí vem alguém e pergunta: ah, mas e o teto de gastos?! Pois bem. Eles não vão furar o teto. A questão não é essa.

O Renda Brasil não vai alterar a estrutura orçamentária. A banca não permitiria. Não agora. 


Esse dinheiro vai sair de outro lugar. O problema deles é que não existe muita margem orçamentária pra fazer esse populismo. O Renda Brasil vai ser um dinheiro de pinga. Um Bolsa Família 2.0. 

A questão do Guedes é a economia em frangalhos. Que era bem evidente que seria assim. 


Se a coisa piorar muito, aí eles dão um recuo e permitem uma política mais desenvolvimentista. Com um Huck da vida, alguém assim. 


Isso é o que temos para o Brasil a curto prazo. Infelizmente. Por isso que a gente fala que tem que haver um projeto de esquerda revolucionária pro país. O quadro atual é desolador. E com tendências bem claras de piora. Não só a qualidade de vida das massas tá em risco. É a própria vida das massas que tá em jogo. O corona mostra isso com bastante nitidez. Um país sem rumo, como o Brasil, verga ante qualquer obstáculo. E o povo morre, órfão de direção.

sábado, 22 de agosto de 2020

A versão populista do Bozo / Um ardiloso arranjo das elites

 


Bozo se estabilizou no populismo. A versão fascista iria levá-lo ao impeachment em tempo recorde. Foi obrigado pelas condições a se reposicionar. 


A sociedade brasileira, a despeito desse terço fascista que a gente descobriu que tem, não tá disposta a aceitar um outro vôo bonapartista. Há tentativas nesse sentido por parte do capital atrófico. Mas a resistência da sociedade impossibilita essa política da maldade no grau máximo. As elites se bateram tanto nesse um ano e meio de governo que acabaram chegando a um meio termo. A banca faz a festa mas deixa o Bozo liberar um pixuleco pra conter a fúria da massa. E aí a gente vê essas cenas miseráveis de pessoas se acotovelando em portas de loja de eletrodomésticos, ou lotando os shoppings, ou formando filas intermináveis nas calçadas das agências da Caixa ou das lotéricas país afora. 


A lógica é a mesma do Bolsa Família. Distribuem umas migalhas a pretexto de girar a economia, mas quem lucra mesmo são os bancos e os grandes lojistas. Esse dinheiro dura pouco na mão dos pobres, mas ajuda a amortecer o impacto da miséria e da desigualdade social. É uma maquiagem, uma política pra ludibriar sorrateiramente as camadas mais pauperizadas da população. A economia mesmo continua em frangalhos, com larga margem de desemprego, subemprego, etc. Carteira verde amarela, cortes nos direitos trabalhistas, perseguição aos servidores públicos, etc, etc. 


Uma política de destruição do patrimônio. Há resistência. A dilapidação só não é maior por conta dessa pequena resistência, que não é organizada da forma correta pra inviabilizar o governo, mas que consegue impor alguns limites civilizacionais. 


Bozo por sua vontade acabaria com tudo. Mas percebeu que pra se manter presidente precisa levar em fogo brando a situação. O rearranjo caiu no populismo. As instituições se equivalem em força. A correlação tende à estabilização. Rodrigo Maia e STF preferiram não levar adiante o impeachment. Deixaram passar a oportunidade. Certamente que há interesses poderosos por detrás. A política bolsonarista segue à risca a cartilha neoliberal. Realmente não há motivos pra uma interrupção agora que Bozo foi domesticado pelo cerco à rachadinha e aos filhos. Agora só resta a ele estabelecer uma maior base de apoio ao passo em que se entende com os donos do poder que marionetam Maia e STF. Eles chegam a um entendimento e é vida que segue. 


Pro povo brasileiro isso é extremamente negativo. Porque a médio e longo prazo esse arranjo político vai jogar o Brasil ainda mais na indigência. Não tem política de desenvolvimento, a privatização vem aí, a desindustrialização também, já não temos incentivo à tecnologia, etc. É um país sem rumo, destinado a um lugar de segunda linha na divisão internacional do trabalho, relegado a um papel marginal na geopolítica mundial. Um pária, uma espécie de Arábia Saudita dos trópicos, um quintalzão dos Estados Unidos. Sem soberania, sem progresso, sem grandeza, maltratando sua classe trabalhadora, superexplorando seu povo. 


A situação é realmente dramática. Pasma que a esquerda esteja praticamente inerte diante de uma tal conjuntura, sem sair às ruas, se apegando à alternativas jurídicas e parlamentares que já se sabem nulas. 


É preciso apresentar um programa de revolução brasileira, de organização popular, de resistência. Só a esquerda revolucionária poderá apontar um horizonte de rupturas com o que tá posto no Brasil de hoje.