terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Fantasmas

Mais um texto da série Crônicas da Vida Operária 



                                     ☆


Três e meia da manhã, clima frio, a gente no meio da BR. A gente que eu digo era eu e o Treze. Os dois a caminho do trabalho. Arrumei esse trabalho de frentista de posto. Época de vacas magras, muito magras. Não pude recusar o emprego. Não tinha jeito. Nessa época eu tava morando numa desditosa cidade de interior, que prefiro nem mencionar o nome. Morava longe do posto, morava longe de tudo. Morava, como eles dizem por lá, no pau do urubu. 

Uma vez comentei pra um forasteiro que morava no pau do urubu. O cara abriu os olhos em um esboço de sorriso e disse que nunca tinha ouvido um nome de bairro curioso daquele jeito. A turma do posto ouviu a conversa e caiu na gargalhada. O Mirandinha, gerente, ria também, meio acanhado, sem se misturar à peãozada.

Pois eu dizia, três e meia da manhã na BR, eu e o Treze. O Treze, um negão de um metro e noventa, esguio, canelinha fina, correu feito velocista e me deixou pra trás no breu da rodovia, tamanho o susto que tomamos. O fato é que vimos um vulto. Me arrepio só de lembrar. 

A rodovia pouco movimentada, vínhamos conversando na caminhada, passos ritmados no acostamento de granizo. E vimos à meia distância uma silhueta, no mato à beira da estrada. Nem deu tempo de pensar, o reflexo condicionado foi correr. E corremos. O Treze correu como devia correr da polícia no áureo vigor físico dos seus tempos de trombadinha, seus tempos de garoto transviado. As histórias que o Treze me contava me arrepiavam como me arrepia agora a memória do vulto. Não lembro direito a história desse apelido dele. Lembro que era algo relacionado à sua passagem pela Febem. Não sei se um número de protocolo interno, ou se referente ao tempo que ele passou lá.

Passávamos longas horas na frente das bombas de gasolina, geralmente no primeiro turno, com o dia amanhecendo, até a hora do almoço. E entre papos de mulher e futebol o Treze ia me contando a sua história. Histórias de malocas, de biqueiras, de fugas da polícia, ou de quando as fugas não resultavam exitosas e os milicos judiavam dele...Histórias tristes, umas muito violentas. Poucas histórias tinham um final bom. Algumas eram inusitadas e engraçadas. Gostava de ouvir o negão contar. Ele com aquele sotaque meio matuto, carregado nos erres, tinha jeito pra contar histórias. Tinha ritmo de cronista, preciso, marcado. Sabia sugerir drama, medo, angústia, suspense. Ritmado, catártico, envolvendo o ouvinte.

Ouvi histórias inacreditáveis naquela rodovia. Outro passatempo nosso era observar os passarinhos, o Treze tinha um notável conhecimento das aves. E também brincávamos de imaginar a profissão das pessoas pelos carros com que chegavam no posto. Por exemplo, vinha um bigodudo num Del Rey prateado, limpinho, bem ajeitado; o Treze arriscava um palpite:

 _ Médico. Certeza. 

Cinco minutos depois encostava um Karmann Ghia vermelho, com um playboy ao volante.

 _ Esse aí é filho de fazendeiro. 

Se encostava um casal, a brincadeira às vezes era dizer se a mulher era esposa ou amante. E nesse ritmo, entre histórias de antigamente, passarinhos, brincadeiras ordinárias, comíamos a manhã adentro, entre goles de café e baforadas de cigarro paraguaio.

Fiquei um pouco mais de dois anos nesse posto. Depois disso vieram outros perrengues, outros trabalhos mal-pagos. E vez ou outra eu ficava desempregado. Numa dessas vezes surgiu concurso pra guarda municipal da cidade. A mãe queria que eu fizesse. Me encheu o saco. Eu fiquei tentado, não nego, mas resisti firmemente. A gente passando dificuldade em casa. Mas eu falei pra mãe que meganha eu não virava. Que eu tinha consciência das coisas. 

A mãe insistia, dizia que guardinha de cidade pequena nem pega em arma, que não troca tiro com bandido nunca, que era aquele negócio de ficar tomando cafezinho em porta de repartição pública, ou separando briga de crianças na praça. Eu não caí no papo.

Vim pra cidade, me meti nuns serviços de entrega. Às vezes me tiravam de office-boy, me mandavam pagar conta, fazer depósito, buscar o almoço da turma. Não era tão ruim como pode parecer. Ficava na rua olhando a bunda das mulheres e observando as coisas. Nato observador, um flaneur de carteira assinada. Sempre dava pra dar uma escapada e tentar fugir da condição operária. 

Jogava papo nas vendedoras das lojas, pegava telefone. Levava uns livros na pasta, lia nas pracinhas. A vida tinha seu sabor.

Fui trabalhar no centro e via as coisas mais interessantes. Uma vez tirei uma onda com um muçulmano e tomei o maior enquadro na firma. Tava eu lá na fila do banco e me aparece um cara com uma bata de linho que cobria o corpo todo, um gorrinho cobrindo a cabeça. Devia ser um clérigo, presumo. Veio numa tentativa de furar a fila, arrumando pretexto com a moça do caixa. E vinha com uma latinha de coca cola na mão. 

 _ Não pode tomar pinga mas pode tomar coca cola, né?! O que é pior, brimo?

Falei tirando uma onda. Pensando que o cara fosse levar na esportiva. Ele parou na minha frente e me deu uma medida da cabeça aos pés, sério, desafiador.

Depois me chamaram no RH e me deram uma advertência. O pessoal ficou sabendo do incidente. Me disseram que eu não podia queimar o filme da empresa. 

Histórias como essa do banco eu vivi bem umas cinco. Andar na rua, interagir com as pessoas, com os clientes, é sempre ocasião de desentendimentos. As pessoas são imprevisíveis às vezes. Um que acha determinado comportamento normal, te trata bem. Aí você se comporta exatamente igual com uma outra pessoa e arruma bronca pro seu lado. Fiquei de saco cheio também. Tive saudades do interior, do posto, do pau do urubu, do Treze e dos outros meninos. Mas é sempre besteira cair nessa de nostalgia. Na época eu intuitivamente já desconfiava disso e tomei um bom caminho. Fui estudar e tentar outras profissões, olhando sempre pra frente. 

Como na madrugada da BR, encarei outros fantasmas pelo caminho. Às vezes a gente corre, às vezes bate de frente. Os fantasmas sempre aparecem. 

Queria poder contar que vi um ovni, que vi a loira do banheiro, qualquer coisa mais interessante. Meus fantasmas foram ordinários e corriqueiros. É quando a gente aprende a elaborar espiritualmente a vida. Simbolicamente, interiormente. Sábio é o homem introspectivo, que soube compreender os seus fantasmas, que soube sorver o que estes trazem de sentido.




domingo, 16 de janeiro de 2022

Transportando histórias

Da série Crônicas da Vida Operária 



                                    ☆


A curva do ônibus nem foi tão forte, mas a tia tombou e tivemos que parar pra acudir. Uma dona de uns 70 anos, forte, como diz o outro, pesada. Paramos o coletivo mas ela não tinha força de sozinha se levantar. Um grandão no fundo disse que tínhamos que tocar pro hospital, que era o correto a se fazer. Mas tava emocionado o grandão. A tia não tinha nem arranhado o braço. O Ademar motorista por sua vez também não cometeu nenhuma loucura. Vinha sereno ao volante nesse dia. Coisa que acontece. 

 _ Mas e o braço do banco?, disse uma moça.

Realmente tava faltando um item no banco que a tia vinha. Já tinha reparado fazia uns dias e devia ter tomado providências. Se desse merda, o patrão comia meu rabo. Isso se não me mandasse embora. Acontece que o ônibus era clandestino. Tinha muito disso naquela época. E passava batido. Pouca fiscalização, se pintasse era sempre um dinheiro por fora e tava beleza. Havia centenas de clandestinos circulando pela cidade. Imagina, uma cidade grande dessa!

Mas a tia tava bem. Graças a Deus. Se a velha se estrepava eu tava fudido de verde e amarelo. Me estrepava junto. 

Foi nesse dia que eu voltei a rezar a mandinga do santo, que a tia Ana me chamou pra eu aprender com 12 anos. Ela me puxou pro quintal e me iniciou ali num ritual que, dizia ela, eu tinha que levar pro resto da vida. Vez ou outra eu esquecia aquilo, deixava pra lá. Mas naquele dia da queda da senhora eu voltei a fazer assiduamente, do jeitinho que a tia Ana tinha me ensinado. 

Depois disso não me lembro do medo ter me tomado de assalto. Acontecia as maiores loucuras do mundo naquele ônibus e eu mantinha sempre a maior calma. Sentava a bunda naquele banco velho de cobrador, com uma almofadinha macia que me acompanhava diuturnamente, e passava horas e horas pegando bilhetes e dinheiro do povo. Contando piada e dando esculacho no Ademar. E dava esculacho porque eu é que era a autoridade da linha. Tinha moral com o patrão, muitos anos de firma. Modéstia à parte, tinha uma habilidade incomum pra resolver os beós, pra dar ordens aos homens, pra colocar as coisas pra funcionar. Devia ter eu mesmo aberto firma, pra fazer dinheiro e ser respeitado no bairro. Mas eu não tinha pretensões. Vivia pra trabalhar e voltar pra casa. Um ou outro fim de semana na praia, algumas namoradinhas. Minha vida era essa. 

Ficou um pouco mais emocionante depois que eu dei pra passar no concurso da companhia de trens. Me deram umas poucas semanas de treinamento e me colocaram pra ser maquinista. No ônibus eu não dirigia, mas no trem era eu que pilotava a bagaça. 

No começo era tudo meio chato, ter que tomar nota das instruções, decorar nomes, funções, etc. Depois que eu dominei o painel de controle fiquei envaidecido. Gostava quando a composição atingia a velocidade máxima. E me deslumbrava com a paisagem, com o mato no entorno, com aqueles trilhos a perder de vista. 

Foi um tempo muito bom esse na companhia. Pouco depois de ingressar como funcionário concursado, já tinha uns contatos bons na categoria, uma meia dúzia de mulher atrás de mim, querendo casamento e tal, o Magalhães me chamou de canto e disse que tinha um negócio da China pra gente.

Ainda bem que eu não entrei na do Magalhães. O cara se picou pra Serra Pelada, no auge do garimpo. Foi e não deu mais notícia. Eu via aquelas reportagens na tv e ficava tentando encontrar o Magalhães nas imagens. Imagina que loucura. As imagens de Serra Pelada pareciam formigueiros, enxames humanos. Mas eu lembrava do Magalhães. Se tinha alguém do meu lado eu contava que o meu camarada Magalhães estava lá, que tinha largado tudo pra ir atrás de ser milionário garimpando ouro na Amazônia. 

A vida seguia a mesma na companhia. Entrava e saía gente, a turma sempre animada, piadista. Os maquinistas se cruzando no refeitório, nos banheiros, no café, contando as histórias dos atropelamentos, quem tinha mais mortes nas costas, o tanto de gente que tinha aleijado. Na maioria das vezes sem maldade alguma. Só por contar. Desencargo de consciência. "O sujeito que anda no trilho é que tá errado"! Alguém sempre repetia. A gente tinha que ter alguma frieza sempre. Tranquilidade para lidar com os contratempos. 

Só o Nequinha que uma vez entrou pelo cano com isso. Ele era novato, não sabia como a coisa funcionava. No primeiro atropelamento tomou nota do falecido e resolveu comparecer no velório. A família descobriu que ele que tinha esmigalhado o cara e a coisa desandou; pegaram ele de pau e não sei o que foi pior, se foi a cara amassada que rendeu uns dias de licença médica ou se foi a gozação da turma depois.

No mais, quem se lascava mesmo era a turma da limpeza de vias. Sempre contavam história de corpos destroçados que tinham que recolher. Às vezes chegavam com o presunto no necrotério e um engraçadinho perguntava: "Mas onde tá a cabeça? Tá faltando uma perna, um braço"

E nessa loucura toda o Magalhães só foi aparecer cinco anos depois. E apareceu entre alquebrado e místico. Um pouco mais calvo do que já era, uma barba de três ou quatro dias, os olhos verdes muito serenos entre vincos que o tempo lhe sulcara no rosto avermelhado. Veio contando histórias mirabolantes. Contou que teve mulheres, que entrara em desavenças, em aventuras homéricas floresta adentro, que se apaixonara por uma índia tipo Iracema, que ficara rico e depois pobre, e depois rico de novo. Mas que aparecera um inimigo, e que, jurado de morte, passara a procurar pajelanças pra fechar o corpo. Uma história mais impressionante que a outra! 

O que era ser maquinista de trem frente ao Magalhães das mirabolantes histórias floresta adentro? Eu já tava ficando meio deprimido quando meu camarada Magalhães chegou aos infortúnios do fim de sua história. 

Disse ele que fechou lá o corpo. E que escapou de duas ou três emboscadas do sujeito que lhe jurara. Até que resolveu dar cabo do sujeito. Ele e um compadre. O compadre furou o peito do sujeito com um tiro de calibre doze, ao que o Magalhães "temperou", palavras dele, com as seis balas de um 38. E ficou sem inimigos a partir desse dia. Mas depois pegou uma malária muito tenebrosa. Vendo que corria risco de vida, se meteu num avião e voltou. Chegou então a um hospital e deixou lá suas pepitas de ouro, em pagamento a um intensivo tratamento, ao fim do qual, uns dois meses depois, dizia ele que tinha saído com tudo em cima. 

Mas já não tinha emprego. Tinha boas histórias pra contar, mas não usufruia, como nós, de um salário certo, embora não muito generoso. Tentei levar ele no terreiro da tia Ana. Achei que seria bom. Ele não quis. Se amigou depois com uma moça muito engraçadinha da zona sul e se aprumou na vida.

Eu, uns anos depois disso, pedi pra sair da companhia. Tava cansado de atropelamentos. Quatorze ao todo. Treze óbitos. Não me sentia culpado. Mas queria uma coisa mais sossegada. Meu trabalho no transporte público acabou assim. Longos anos levando o povo pra cima e pra baixo, arrumando histórias pra contar.




terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O vírus do neoliberalismo

Essa virada de 21 pra 22 marca dois anos da pandemia da covid-19 no mundo. No Brasil, computamos mais de 600 mil mortes. Todo mundo aqui perdeu parente ou conhecido pra doença. A covid-19 veio como um furacão e deixou um rastro de destruição. Muita gente perdeu o emprego. Muita gente entrou em crises de depressão e ansiedade. A covid trouxe muito sofrimento, tirou o sono e a paz das pessoas. Mas por ventura poderia ter sido diferente? Por que é que as coisas transcorreram com tamanha barbaridade? É preciso ponderar as condições sociais que a covid encontrou por aqui, e como encontrou terreno fértil pra se disseminar. 


                                    ■■■


Quando a epidemia de covid-19 chegou ao Brasil, em meados de março de 2020, chegou pelos aeroportos, sobretudo por pessoas vindas da Itália. Ou seja, a priori as infecções por covid vitimaram pessoas de classes sociais mais abastadas. Com o passar de semanas e meses, o jogo virou, por assim dizer, com a democratização das infecções a curto prazo, e, posteriormente, a médio prazo, com as infecções vitimando sobretudo as classes mais populares, haja visto que as elites e a classe média lograram muito maior êxito no cumprimento do isolamento social necessário ao combate da covid.

Ou seja, em pouco tempo foi possível observar o peso das abissais desigualdades sociais brasileiras ocasionar um morticínio. Porque o povo pobre brasileiro vive naturalmente aglomerado, seja nos transportes públicos de péssima qualidade e de capacidade reduzida de serviço, seja nas favelas e bairros populares, onde vivem enormes contingentes de pessoas, seja dentro das próprias habitações das famílias, em geral diminutas e precárias. Tudo isso facilitou o trabalho do vírus em sua disseminação e replicação. Em poucas semanas e meses o número de infecções, internações e óbitos aumentou exponencialmente, ao passo em que, como vínhamos dizendo, transpôs de uma classe social à outra. De uma circunstância fortuita, em que o vírus alcançava especificamente pessoas abonadas, que andam de avião e que viajam à Europa, à pessoas simples do povo, que são estruturalmente adoecidas e mortas nas epidemias que surgem no mundo. Quer dizer, no caso da covid se cumpriu o que sistematicamente se cumpre sempre: a nova moléstia faz suas vítimas no campo das classes sociais que padecem com a pobreza. No caso do capitalismo de cunho neoliberal, conjuntura contemporânea nossa, enormes contingentes são relegados a uma situação de penúria, de vulnerabilidade e marginalidade. 

No Brasil ainda que temos o SUS, um sistema universal de saúde, público, conquista das lutas políticas e sociais que se consolidou na Constituição Federal de 1988. E embora muitas vezes deficiente, por conta do sucateamento nesse período de políticas neoliberais, com orçamentos insuficientes, é um sistema que muito ajuda a população. Não fosse o SUS, o número de mortes no Brasil seria muito mais alto. 

Mas o contexto neoliberal nos trás exatamente isso; ou a privatização dos serviços essenciais à população, como é o caso dos Estados Unidos, onde muitas pessoas morreram nos hospitais e seus corpos foram abandonados pelos familiares, porque estes não teriam condições de arcar com os custos hospitalares; ou o sistemático e perverso sucateamento dos serviços públicos nos países que ainda oferecem esses serviços. Porque a lógica do neoliberalismo é a lógica dos ajustes fiscais, das privatizações, do mercado regulado por si mesmo, do estado mínimo. Ou seja, bases que favorecem aos bancos e aos rentistas, à acumulação do capital nas mesmas mãos de sempre, ao capital concentrado, aos monopólios e colossais desigualdades sociais oriundas desse modelo social.

No caso da covid era uma tragédia anunciada. Bastaria que o vírus tivesse tempo oportuno para se espalhar e fatalmente vitimaria a faixa social dos excluídos de sempre. 

Em alguns momentos, por ocasião de conjunturas específicas da política e da economia, da luta de classes e suas correlações, ascendem ao poder políticos e partidos políticos que cedem um pouco mais de benefícios aos trabalhadores e aos pobres, que assumem uma política econômica mais favorável à geração de renda, ao crescimento, com políticas de distribuição de renda, com a economia girando mais, dando ao povo crédito e poder de compra, condições de melhorar de vida e de superar a pobreza. Mas esses ciclos não duram muito. Tão logo vem as crises econômicas, com a superprodução e a queda nas taxas de lucro das burguesias, e a condição política se aperta para os trabalhadores. Ascendem governos abertamente neoliberais, em geral com discursos anti-corrupção muito dissimulados, com a imprensa martelando dia e noite discursos afeitos ideologicamente ao mercado e à livre concorrência. Aí se desvanecem direitos trabalhistas, direitos aos serviços públicos essenciais como saúde, educação, moradia, etc.

O povo fica desguarnecido em meio a possíveis e eventuais crises, sejam sociais e econômicas, sejam climáticas, ou, como é o caso da covid, uma crise sanitária e pandêmica. Fica impossível o estado oferecer à população a estratégia necessária ao combate do vírus. Não há como se criar isso do dia pra noite. Os estados que conseguiram oferecer efetiva proteção aos seus cidadãos foram justamente os estados menos balizados pelo sistema e pelo pensamento neoliberal. É o caso da China principalmente, que embora não seja um país socialista, como alguns dizem, é um país que passou por uma revolução socialista e que teve o mérito de criar uma estrutura social diferente do capitalismo selvagem do ocidente. Sua estrutura política, com o Partido Comunista Chinês à cabeça, logrou rapidamente debelar a transmissão do vírus em seu território, com uma aplicação exemplar da sociedade civil, num movimento extraordinário de cooperação e de disciplina. A China, um país de dimensões continentais, com uma população absurdamente grande, teve um número de mortes irrisório. E isso sendo o primeiro país onde se conheceu o vírus. 

Outros países do ocidente, capitalistas, mas de condições de bem estar social, também tiveram oportunidade de oferecer muito maior proteção aos seus cidadãos. Mas em nenhum país houve tanto êxito como na China. E isso porque na China, mais do que um sistema materialmente anti-neoliberal, existe um pensamento social que é distinto e que não aceita as premissas liberaloides ou neoliberaloides. E isso por mais críticas que se possa ter ao regime chinês. Mas o oriental, em sua educação e cultura, é profusamente mais imbuído de sentido coletivo do que nós no ocidente. E a lógica do neoliberalismo é essa coisa do individualismo, que é egoísta, presunçoso; do sujeito anti-vacina, por exemplo, que se envaidece por não se imunizar, que com sua arrogância obtusa prejudica a si mesmo e prejudica o convívio social, porque sem ampla vacinação não há possibilidade de se limitar o vírus. 

De tudo isso depreendemos que o combate à covid, como o combate às doenças em geral, às epidemias, se daria em muito melhores condições não fosse o neoliberalismo e as mazelas sociais que este engendra. As perspectivas seriam melhores não fosse o neoliberalismo. Haveria condições de socialmente se ajustar as coisas. Haveria condições da humanidade alcançar um progresso comum, uma prosperidade comum, em condições democráticas, com equidade, com solidariedade em todos os níveis, com tecnologia universalizada, com um propósito comum de bem estar e de civilidade. 

Por enquanto estamos longe disso. Ainda bem que a vacina começa a chegar à niveis bons, de imunidade de rebanho. Mas 600 mil mortes no Brasil foi um crime, claro que com culpa do atual governo, negacionista e genocida, mas que evidentemente extrapola essa esfera. Pelo menos metade dessas mortes tem um nome. Morreram de neoliberalismo.