Essa virada de 21 pra 22 marca dois anos da pandemia da covid-19 no mundo. No Brasil, computamos mais de 600 mil mortes. Todo mundo aqui perdeu parente ou conhecido pra doença. A covid-19 veio como um furacão e deixou um rastro de destruição. Muita gente perdeu o emprego. Muita gente entrou em crises de depressão e ansiedade. A covid trouxe muito sofrimento, tirou o sono e a paz das pessoas. Mas por ventura poderia ter sido diferente? Por que é que as coisas transcorreram com tamanha barbaridade? É preciso ponderar as condições sociais que a covid encontrou por aqui, e como encontrou terreno fértil pra se disseminar.
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Quando a epidemia de covid-19 chegou ao Brasil, em meados de março de 2020, chegou pelos aeroportos, sobretudo por pessoas vindas da Itália. Ou seja, a priori as infecções por covid vitimaram pessoas de classes sociais mais abastadas. Com o passar de semanas e meses, o jogo virou, por assim dizer, com a democratização das infecções a curto prazo, e, posteriormente, a médio prazo, com as infecções vitimando sobretudo as classes mais populares, haja visto que as elites e a classe média lograram muito maior êxito no cumprimento do isolamento social necessário ao combate da covid.
Ou seja, em pouco tempo foi possível observar o peso das abissais desigualdades sociais brasileiras ocasionar um morticínio. Porque o povo pobre brasileiro vive naturalmente aglomerado, seja nos transportes públicos de péssima qualidade e de capacidade reduzida de serviço, seja nas favelas e bairros populares, onde vivem enormes contingentes de pessoas, seja dentro das próprias habitações das famílias, em geral diminutas e precárias. Tudo isso facilitou o trabalho do vírus em sua disseminação e replicação. Em poucas semanas e meses o número de infecções, internações e óbitos aumentou exponencialmente, ao passo em que, como vínhamos dizendo, transpôs de uma classe social à outra. De uma circunstância fortuita, em que o vírus alcançava especificamente pessoas abonadas, que andam de avião e que viajam à Europa, à pessoas simples do povo, que são estruturalmente adoecidas e mortas nas epidemias que surgem no mundo. Quer dizer, no caso da covid se cumpriu o que sistematicamente se cumpre sempre: a nova moléstia faz suas vítimas no campo das classes sociais que padecem com a pobreza. No caso do capitalismo de cunho neoliberal, conjuntura contemporânea nossa, enormes contingentes são relegados a uma situação de penúria, de vulnerabilidade e marginalidade.
No Brasil ainda que temos o SUS, um sistema universal de saúde, público, conquista das lutas políticas e sociais que se consolidou na Constituição Federal de 1988. E embora muitas vezes deficiente, por conta do sucateamento nesse período de políticas neoliberais, com orçamentos insuficientes, é um sistema que muito ajuda a população. Não fosse o SUS, o número de mortes no Brasil seria muito mais alto.
Mas o contexto neoliberal nos trás exatamente isso; ou a privatização dos serviços essenciais à população, como é o caso dos Estados Unidos, onde muitas pessoas morreram nos hospitais e seus corpos foram abandonados pelos familiares, porque estes não teriam condições de arcar com os custos hospitalares; ou o sistemático e perverso sucateamento dos serviços públicos nos países que ainda oferecem esses serviços. Porque a lógica do neoliberalismo é a lógica dos ajustes fiscais, das privatizações, do mercado regulado por si mesmo, do estado mínimo. Ou seja, bases que favorecem aos bancos e aos rentistas, à acumulação do capital nas mesmas mãos de sempre, ao capital concentrado, aos monopólios e colossais desigualdades sociais oriundas desse modelo social.
No caso da covid era uma tragédia anunciada. Bastaria que o vírus tivesse tempo oportuno para se espalhar e fatalmente vitimaria a faixa social dos excluídos de sempre.
Em alguns momentos, por ocasião de conjunturas específicas da política e da economia, da luta de classes e suas correlações, ascendem ao poder políticos e partidos políticos que cedem um pouco mais de benefícios aos trabalhadores e aos pobres, que assumem uma política econômica mais favorável à geração de renda, ao crescimento, com políticas de distribuição de renda, com a economia girando mais, dando ao povo crédito e poder de compra, condições de melhorar de vida e de superar a pobreza. Mas esses ciclos não duram muito. Tão logo vem as crises econômicas, com a superprodução e a queda nas taxas de lucro das burguesias, e a condição política se aperta para os trabalhadores. Ascendem governos abertamente neoliberais, em geral com discursos anti-corrupção muito dissimulados, com a imprensa martelando dia e noite discursos afeitos ideologicamente ao mercado e à livre concorrência. Aí se desvanecem direitos trabalhistas, direitos aos serviços públicos essenciais como saúde, educação, moradia, etc.
O povo fica desguarnecido em meio a possíveis e eventuais crises, sejam sociais e econômicas, sejam climáticas, ou, como é o caso da covid, uma crise sanitária e pandêmica. Fica impossível o estado oferecer à população a estratégia necessária ao combate do vírus. Não há como se criar isso do dia pra noite. Os estados que conseguiram oferecer efetiva proteção aos seus cidadãos foram justamente os estados menos balizados pelo sistema e pelo pensamento neoliberal. É o caso da China principalmente, que embora não seja um país socialista, como alguns dizem, é um país que passou por uma revolução socialista e que teve o mérito de criar uma estrutura social diferente do capitalismo selvagem do ocidente. Sua estrutura política, com o Partido Comunista Chinês à cabeça, logrou rapidamente debelar a transmissão do vírus em seu território, com uma aplicação exemplar da sociedade civil, num movimento extraordinário de cooperação e de disciplina. A China, um país de dimensões continentais, com uma população absurdamente grande, teve um número de mortes irrisório. E isso sendo o primeiro país onde se conheceu o vírus.
Outros países do ocidente, capitalistas, mas de condições de bem estar social, também tiveram oportunidade de oferecer muito maior proteção aos seus cidadãos. Mas em nenhum país houve tanto êxito como na China. E isso porque na China, mais do que um sistema materialmente anti-neoliberal, existe um pensamento social que é distinto e que não aceita as premissas liberaloides ou neoliberaloides. E isso por mais críticas que se possa ter ao regime chinês. Mas o oriental, em sua educação e cultura, é profusamente mais imbuído de sentido coletivo do que nós no ocidente. E a lógica do neoliberalismo é essa coisa do individualismo, que é egoísta, presunçoso; do sujeito anti-vacina, por exemplo, que se envaidece por não se imunizar, que com sua arrogância obtusa prejudica a si mesmo e prejudica o convívio social, porque sem ampla vacinação não há possibilidade de se limitar o vírus.
De tudo isso depreendemos que o combate à covid, como o combate às doenças em geral, às epidemias, se daria em muito melhores condições não fosse o neoliberalismo e as mazelas sociais que este engendra. As perspectivas seriam melhores não fosse o neoliberalismo. Haveria condições de socialmente se ajustar as coisas. Haveria condições da humanidade alcançar um progresso comum, uma prosperidade comum, em condições democráticas, com equidade, com solidariedade em todos os níveis, com tecnologia universalizada, com um propósito comum de bem estar e de civilidade.
Por enquanto estamos longe disso. Ainda bem que a vacina começa a chegar à niveis bons, de imunidade de rebanho. Mas 600 mil mortes no Brasil foi um crime, claro que com culpa do atual governo, negacionista e genocida, mas que evidentemente extrapola essa esfera. Pelo menos metade dessas mortes tem um nome. Morreram de neoliberalismo.
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