segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Entre identidades e identitarismos

☆ Breve comentário marxista-freire-gramsciano sobre o tema


O que é bom pra mim talvez não seja bom pra fulano, beltrano ou sicrano. O que você considera belo ou justo talvez não seja tão belo e justo na opinião do seu vizinho, colega de trabalho, ou de quem quer que seja. E isso vale pra tudo e é absolutamente natural. Desde pequenos nos habituamos a lidar com o contraditório. E não se trata aqui de advogarmos uma filosofia pós-moderna e relativista. Pelo contrário, trata-se de reconhecermos a legitimidade da opinião divergente, ao passo em que reconhecemos a singularidade da pessoa, suas especificidades materiais, de meio, cultura, suas impressões subjetivas e sua história. E aí poderemos pensar x sobre determinada pessoa ou situação, à medida que outros pensarão y, ou z, e assim sucessivamente, dependendo da complexidade do quadro analisado e de suas possíveis interpretações. O que cabe, e isso é essencial pontuar, é que haja a possibilidade democrática do pensamento, do posicionamento diante de qualquer coisa. Numa sociedade de regime político democrático, há que ser assim. Não há como ser diferente sem que haja uma enorme contradição de termos. Cientificamente, racionalmente, tendo em conta as circunstâncias, o contexto, os diversos fatores condicionantes de um caso, tem-se maiores condições de representá-lo com fidedignidade. Mas em ciências humanas as coisas evidentemente não são matemáticas. Como dizia, há o caráter subjetivo intrínseco a ser ponderado e levado em consideração. 

Um negro pode falar com mais propriedade sobre racismo, por exemplo. Pelo menos sobre suas próprias experiências, que estão longe de serem as experiências de vida das pessoas brancas. Não quer dizer que ele esteja mais certo, ou que só ele possa expressar opinião ou análise sobre o assunto. Longe disso. A questão não é o lugar de fala como balizador epistemológico. A questão é a escuta como um processo humanizador, capaz de despertar a empatia. E não só isso, mas também a busca da materialidade do tema, de uma base empírica sólida na teorização e no exercício de elaboração do tema em sociedade. 

E falo isso com o claro intuito de me deslindar do campo dos que se posicionam pelo identitarismo. Tenho veementemente feito isso ao longo dos últimos anos. 

O identitarismo peca porque coloca como centro a questão da identidade, seja cultural, de raça, gênero ou opção sexual. E isso tem ocorrido muito. É bem característico do espírito do tempo, neoliberal e individualista, anti-marxista e anti-moderno no sentido que se desloca do eixo da estrutura de classes em que está colocado o modo de produção.




Insisto, o que norteia os marxistas é o método da práxis, do pensamento articulado entre a base produtiva e social com o conceito crítico e dialético. Mais objetivamente, falando em termos de identidades, implica em observar com atenção as diversas demandas, advindas das mais diversificadas experiências, tratá-las de maneira ética, dando espaço para que tenham voz na sociedade, progressivamente, nas instituições, meios de comunicação, como sociedade que caminha, paulatinamente, e em meio a uma acirrada disputa hegemônica. Entendendo e possibilitando entender que, como dizia no início, nossos posicionamentos são distintos, nosso lugar no mundo, nossa visão de mundo, enfim, em tudo ou quase tudo existe distinção. E que há de haver, por questão de respeito e de humanidade, uma interlocução sadia. 

Além de outro fato mencionado acima, que pensamos melhor quando pensamos juntos, e que cada caso é um caso, cada experiência traz em si algo de único e inigualável. A sociedade tem que levar isso em conta.

Não será tal predisposição uma carta branca a obscurantismos e similares no convívio social. A menos que se trate de religião ou pensamentos metafísicos de caráter individual e sem relação direta com as questões sociais. Porque cada um é livre para escolher entre as também diversas narrativas a respeito da origem da vida e do sentido do universo. De resto, estamos em sociedade e um bom convívio, harmonioso e sem violência, deverá sempre ser imperativo. Ou seja, desde que não se atente contra os direitos humanos fundamentais, os direitos civis e democráticos dos cidadãos, cada um que pense como bem entende. Um contrato social moderno basilar estimulará este modo de vida. E, no socialismo, superada a dirigência política burguesa, os homens se aprimorarão em uma cogestão democrática da vida.

Por isso é que por agora é imprescindível lutar para que se implementem políticas públicas que garantam acesso à educação inclusiva, que dê aos sujeitos os atributos necessários para o desenvolvimento de um senso ético e comunitário. Freireanamente falando, fazendo aqui honras ao educador brasileiro que extraordinariamente pautou a educação pela via emancipatória, humanística, que tão bem pontuou a necessidade de se garantir aos sujeitos a condição de automamente pensar o mundo, e poder assim discordar, criticar, propor quebras de paradigmas, e para o seu lugar propor novas bases. 

Fazemos isso à medida em que nos educamos em sociedade para o convívio com o diferente, para a compreensão da alteridade. Isto é, à medida em que superamos nossos impulsos infantis de intolerância com tudo aquilo que de alguma maneira nos contraria. 

Isso não é nada simples, porque tudo que se move sob os céus é perpassado por relações materiais e de interesse. É um trajeto histórico notável e pertubador, que todavia tem se encaminhado para a progressiva conquista de direitos, muito embora à custa de muita luta, e passando por algumas etapas de retrocessos, como a atual, em que nos batemos contra os capitalistas na luta por direitos trabalhistas básicos, ou por serviços públicos também básicos.

Mas enfim, hoje se sabe bem que as diferentes características das pessoas lhes proporciona experiências que tanto podem ser diferentes das nossas, como que podem ser causa de sofrimento. Não é só a classe social que conta, ok. Da segunda metade do século passado pra cá a sociedade evoluiu muito nesse quesito. Tem sido assim com a questão do negro, com a questão  dos homossexuais, dos indígenas, etc. E cabe observar que essas pessoas, como sujeitos de direito, devem ter suas peculiaridades asseguradas contra qualquer manifestação de preconceito ou violência. É para isso que se tem produzido teoria decolonial, que se tem pensado as especificidades do sul global, para a produção de um conhecimento que tenha horizonte ético e político consolidado, um conhecimento que no limite nos ajudará na maior das conquistas, que será a emancipação deste ciclo de exploração do homem pelo próprio homem. O socialismo virá. Uma hora ele vem.





 





sexta-feira, 28 de outubro de 2022

O que será da política brasileira nos próximos anos?


Segundo turno, eleição pra presidente em 2014. Vocês se lembram? Dilma estava fazendo um governo ruim. Mas o adversário dela era um playboy safado, que todo mundo sabia que não prestava e que queria assumir a presidência da república pra voltar com um neoliberalismo ainda mais violento do que o projeto que estava em curso. Pois bem, mesmo sendo um elemento altamente suspeito, um picareta de marca maior e com projeto maldoso de governo, aquele cidadão mineiro residente no Rio, um famigerado playboy usuário de droga e agressor da mulher, cínico, hipócrita, mentiroso, dissimulado maldito, teve mais de 48% dos votos, perdendo pra Dilma por uma estreita margem de 3 milhões e meio de votos. 

Notem que a polarização política era classista e muito acirrada. No entanto, não havia movimentação de extrema direita declarada. De 2018 pra cá que a situação tem evoluído neste sentido. 

O meu medo é que agora, nesta eleição de 22, tendo o Brasil passado pela trágica experiência de uma gestão de extrema direita, genocida inclusive, o país se consolide agora num modelo extremamente semelhante ao regime político norte-americano, com uma oposição de praticamente duas correntes políticas apenas: uma de extrema direita, e uma de centro-direita. Sim, o Partido Republicano é de extrema direita e o Partido Democrata é de uma direita mais amena. Aí a esquerda americana precisa toda eleição declarar voto útil no menos pior, pra não ver os malucos republicanos voltando ou permanecendo na Casa Branca.

E o meu medo é justamente porque mesmo o pior governo da nossa história tem tudo pra chegar agora nesse marco dos 48%, que o desgraçado direitista do Aécio já chegou 8 anos atrás. É uma loucura, mas é Brasil, é o regime político dos ricos, onde eles tem uma série de fatores pra manipular o eleitorado e pra mexer ideologicamente com a cabeça da população. 

Então o que seria uma polarização esquerda x direita se encaminha pra polarização extrema direita x centro-direita, ou centro. De esquerda não vai ser. O Lula vai governar acuado pelo sistema, com a sombra do Alckmin, do mercado, do centrão, do imperialismo, etc. Tomara que ele não ceda pras privatizações. Se estancar a sangria das privatizações, já está ótimo. 

Mas e o que será do bolsonarismo, este fenômeno neofascista assustador que deixaram se gestar no Brasil? O Xandão vai colocar o genocida atrás das grades? O STF vai pegar as maracutaias da milícia? Não sabemos. Se sim, aí o movimento reduzirá bastante, dando ensejo para uma nova conformação do bloco direitista. Se não, aí a coisa se consolida nessa polarização muito semelhante à americana. 

E isso seria extremamente deletério para o Brasil. 

Temos também que ver como vai evoluir a direção política pós Lula. O homem já disse que não será candidato à reeleição em 26. Outra liderança surgirá. Muito provavelmente uma sucessão encaminhada pelo próprio Lula. Sem corrida política pelas bases dos partidos, o que também é sinal da apatia nos movimentos sociais e na esquerda como um todo. 

Ou seja, os prognósticos para o próximo período são ruins. Não existe a curto e médio prazo a expectativa de uma movimentação política em direção a um projeto emancipatório ou pelo menos de desenvolvimento nacional. 

Alguém poderá dizer: Ah, mas, Mário, o Lula vai apontar pra isso, com o Lula o Brasil vai ser gigante, se industrializar e tal. Creio que é muita dose de otimismo pensar assim. As coisas aqui são extremamente complexas, geoestrategicamente falando, das correlações de força entre classes, dos interesses econômicos em jogo, da ausência de uma direção política operária, da própria natureza política do PT, inclinada à conciliação, disposta a encurtar o programa pra contar com o consentimento do andar de cima. Enfim, o cenário é de disputa contra a extrema direita, pelo mínimo de dignidade e por um regime que se mantenha democrático apesar do tempo da economia ser um tempo de profundos ataques aos trabalhadores. Não temos horizontes políticos de emancipação. Não nos tem sido permitido um imaginário político revolucionário. Isso é sintomático nas juventudes, observem. Os jovens ou estão circunscritos às ideologias identitárias e movimentistas, com coletivos disso e daquilo, que não se entendem como classe trabalhadora que aspira ao poder político; ou estão por aí atrás de algum consolo existencial ancorado na forma mercadoria. 

São tempos tenebrosos pra nação.








sexta-feira, 7 de outubro de 2022

O pensamento político de Maquiavel

(Que seu professor de história no ensino médio provavelmente não te falou).



Tido como o criador das ciências políticas, Maquiavel é um pensador da Renascença que antecipa pontos importantíssimos que seriam depois trabalhados por teóricos do quilate de Hobbes e Marx. A questão do contrato social, que seria trabalhada no século seguinte por Hobbes, Locke e Rousseau, e a questão da luta de classes, que seria super-elaborada por Marx no século 19, são questões determinantes do pensamento político maquiavelino. Apesar de ter entrado para a história com o sinônimo maquiavélico, que significa o desejo despudorado e antiético pelo poder político, Maquiavel tinha um pensamento bastante democrático e inclusivo. Prova disso são seus principais escritos: O Príncipe e Discurso para a primeira década de Tito Lívio. 

Ao longo de sua obra O Príncipe, o autor se dispõe a traçar os modos como um governante pode permanecer no poder. E estrutura sua escrita recorrendo a exemplos históricos, e colocando de modo pragmático quais seriam as astúcias e artimanhas de um homem disposto ao poder político. Mas não por isso Maquiavel prescinde de considerações morais e éticas. Com efeito, ao longo do texto lastima os exemplos tirânicos e faz questão de elogiar os governantes humanistas. 

Para entender Maquiavel é necessário compreender o homem do renascimento. Maquiavel era um moderno, que vinha de um rompimento com o mundo medieval e suas concepções teocêntricas de mundo e sociedade. Para Maquiavel importavam os valores de nobreza, hombridade, virtude, etc, mas era necessária também uma análise fria da política. E política são interesses em jogo. Os homens se unem em sociedade por interesse de auto-preservação, optam pela vida coletiva para fugirem de eventuais violências, mas precisam determinar para essa sociedade um código que resguarde internamente seus cidadãos, para que o convívio seja minimamente harmonioso e para que a vida siga funcional para todos. O homem para Maquiavel não é um ser naturalmente bom, mas um sujeito de interesses, e que em busca de seus interesses fará o mal. Cabe então que a sociedade civil se conforme politicamente para precaver a tirania e o despotismo, a violência e a injustiça. 

Há modos variados de se chegar a isso, distintos regimes políticos que podem ser empreendidos, mas que em suma precisam nascer de um pacto que se arranjará pela política. E a política é potência, o direito é potência, como diria o filósofo Espinosa.  Esse conceito é determinante em Maquiavel. As forças políticas em jogo se arranjarão de modo a estabelecer esse poder político no qual a sociedade encontrará seu funcionamento. 

Os grandes da sociedade naturalmente vão querer impor seus desejos, ao que o povo fará objeção, porque há os que querem oprimir e do mesmo modo há os que não querem ser oprimidos. E haverá então um mecanismo de contrapesos. Contra os interesses dos poderosos, haverá a contramola que resiste. A sociedade é imersa em interesses, em interesses materiais. O rico desejará acumular, e o pobre lutará por não passar fome. O poderoso tentará permanecer no poder e usufruir deste poder, e o povo fará o possível para não se ver ultrajado e explorado. 

Se o governante for sábio, se for arguto e perspicaz, tratará o povo de forma benéfica, de modo a não ceder ensejo para ocasiões de descontentamento e rebelião. Como diz em O Príncipe, o governante pode se impor pela força, mas é preferível que seja amado. 

E deste modo a astúcia do governante será provada por uma constituição civil que estabeleça um saudável equilíbrio entre as forças políticas, entre os grandes e o povo. A participação do povo na política será importante para que este tenha seu espaço e encontre soluções para suas demandas, de modo que não se verá excluído, mas partícipe, e que não tentará por outras vias fazer cumprir o seu direito. A lei então tratará de consolidar uma sociedade harmoniosa, onde os grandes serão impedidos de usurpar o povo, e este, conciliado com as frações poderosas por meio de um entendimento político, permanecerá pacífico.

Poderá haver tensionamentos políticos nas altas esferas do poder, com conspirações palacianas e tentativas de golpe, mas que sempre encontrarão no povo resistência, pois que este batalhará por seu governante. 

De tudo isso, depreendemos que o pensamento político de Maquiavel é bastante democrático, e suas concepções e análises  são bastante avançadas para sua época. A análise de base material, apesar dos laivos moralizantes e de resquícios supersticiosos do pensamento, é a análise realista de antagonismos sociais postos, que, como Marx assinalará depois, é histórica e dialética. A história da sociedade é a uma história de luta de classes. E o que determina o poder político é a força. 

Para os homens do tempo de Maquiavel, a fortuna era elemento significativo das narrativas e do entendimento. Bem como a virtú. Ao longo de seus textos vamos nos batendo com essas concepções de boa ou má sorte, de auspiciosidades, ou de considerações que podem parecer muito moralistas, mas tais concepções ladeiam uma concepção de teoria da política muito progressiva para o seu tempo, que é eminentemente material e realista, pragmática e de aspiração democrática.




* Fortuna: sorte ou azar, o destino e suas vicissitudes. 

* Virtú: virtude, mérito de um pensamento perspicaz e sábio.