sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Sorte e azar







Da série Crônicas da Vida Operária 



                                   ☆


Minha vida foi uma coisa repleta de controvérsias. Veja só. Tive a sorte de nascer em beira de praia. Gostoso, né? Mas tive o azar de nascer pobre. Nasci e cresci na ponta do cais, bairro de trabalhadores, casas simples, lugar pacato. Mas nasci na casa mais pobre. As casas na ponta do cais eram todas de alvenaria. Certamente que algumas um pouco maiores que as outras, mas todas de alguma dignidade. Já a nossa casa era de madeira, muito velha. Devia ter já uns cinquenta anos aquela casa. Mais parecia um rancho de roça, com avarias pra todo lado, goteiras, uma casa realmente muito pobrezinha.

Sempre vejo pessoas dizendo que eram pobres mas eram felizes, que eram felizes e não sabiam, com saudades da infância, dos bons tempos de antigamente e tal. Bom, no meu caso faço questão de dizer que as condições materiais não eram boas e que todo o resto também deixava a desejar. 

Tenho saudades de muitos amigos daquele tempo, pessoas de lá que cresceram com a gente, correndo pelas ruas de terra da ponta do cais, indo ao mercado em rabeira de caminhão, brincando de se esconder nos mangues. É, nostalgia até o mais pobre cidadão vai ter um pouco. Faz parte da nossa cultura. Fomos habituados a isso. E olha que tinha mesmo umas coisas legais naquele nosso tempo de infância. Pequenos detalhes que não existem mais, que o tempo tratou de levar embora e que naturalmente figuram na memória como coisas muito afetivas pra gente. Lembro dos parquinhos em festas juninas; do homem do papagaio que tirava a sorte em pequenos papeizinhos, ao som de realejos muito simpáticos; do vendedor de biju, que vinha agitando uma matraca, sempre com uma renca de moleques em seu encalço. Coisas que não voltam mais. Coisas da minha infância nos anos 60. 

Mas era um tempo de penúria pra gente. Pra muitos, aliás. Isso que eu digo era sessenta e poucos, os milicos tinham acabado de dar o golpe, ainda não havia nem sombra do milagre brasileiro. E a gente passava fome, e via muitas famílias naquela mesma situação deplorável. 

Eu e meus irmãos tínhamos um costume quando a coisa apertava e a barriga desancava a roncar. Pegávamos nossa bola de pano, que a gente mesmo costurava, uma bolinha vagabunda e surrada, e íamos brincar na porta da Dona Landina. Ela sempre nos dava um pão, um biscoito. E havia um acordo tácito entre a gente. Pegávamos o que comer e caíamos fora. Sem bagunça em sua porta, sem mais palavras. Funcionava sempre assim. Chegávamos e ficávamos lá na porta até que ela desse conta de nossa presença. Dona Landina, uma senhora de idade, cabelos cacheados e grisalhos na altura dos ombros, muito branca, de belos olhos verdes. Tinha um ar respeitabilíssimo, cara de boa gente no sorriso tímido. Dona Landina aparecia e fazíamos cara de coitadinhos. Nenhuma palavra. A fome estampada na cara. Chutávamos aquela bola velha de um lado pro outro, com má vontade, só pra dar por feita aquela praxe, até que ela viesse com alguma coisa nas mãos. Agradecíamos a comida, que quase nunca era suficiente pra matar a fome, e tomávamos o caminho do mercado. No mercado pegávamos quando muito umas poucas frutas. Umas uvas numa banca, uma maçã em outra, a pretexto de experimentar. Os feirantes sabiam muito bem que não tínhamos com o que comprar. Mas ninguém falava nada. Não precisava falar. 

A um canto do mercado tinha gente que recolhia a xepa. Era uma possibilidade. Muitas famílias dos morros desciam pra pegar, e praticamente todas as famílias das palafitas, de modo que era difícil chegar no canto da xepa e ter a sorte de pegar coisas que ainda prestassem. 

A situação era muito feia mesmo. Nasci em casa de gente muito problemática. A mãe vivia de uns bicos em casa de família. Vivia sendo mandada embora. Tinha o hábito de furtar. O pai era carregador no porto. Trabalho o mais braçal possível, não sabia nem ler. Analfabetismo, diga-se, era coisa muito comum naquele tempo. 

No berço dessa miséria crescemos acumulando frustrações. Tem coisa que me lembro e às vezes ainda me pego chorando. Uma vida inteira pra aprender a lidar com os frutos da escassez, da família desestruturada, como diziam, das desonras e das vergonhas.

Nossa sorte foi deixar a praia e subir a serra. Isso por intermédio de uma boa alma (ok, não tão boa assim, confesso, caro leitor) que nos arranjou uma oportunidade numa fábrica. Era o Seu Martins, de saudosa memória em nossa casa. Figura deveras simpática e generosa. Empregou o pai e a mãe nessa fábrica, arrumou um lugar com aluguel barato e nos ajudou. Depois vim a saber que o homem era trambiqueiro profissional, e dos bons. Talento raro para a má-fé, mexia com vultosas somas de dinheiro sujo. E tinha uma característica estranha na hora de lavar o dinheiro. Só colocava grana em portas de igreja. Podia ser evangélica, católica, terreiros, centros espíritas, etc. Não fazia distinção de religião. Seu Martins ajudou o pai e por tabela ajudou a gente. Penso que foi pro céu o velho. Porque deve ter feito isso com outras famílias, eu imagino. De repente um modo de conseguir o perdão para os seus pecados. Talvez fosse também nesse intuito que entregava dinheiro aos religiosos. 

Pois bem, saímos da miséria. (E calculo que Seu Martins ganhou o céu. Coisa meio de Robin Hood, merecidamente). A vida foi seguindo seu rumo. Muitas dificuldades sempre. A vida não é coisa fácil. Todo mundo sabe. Ademais, tivemos enormes dificuldades de lidar com os fantasmas do passado, com algumas rusgas do tempo da fome, com o caráter duvidoso da mãe. 

Depois de mais grandinho tomei a iniciativa de sair fora, de tomar meu caminho. Operário, correndo atrás de pagar minhas contas com o salário habitualmente mirrado. 

Morei um tempão em pensões. Tomando cuidado pra não perder os poucos pertences nas mãos dos larápios. E nunca deixei que me engabelassem. Tive esse mérito. Vivia entre operários, mas vez ou outra tinha cafetão, marginal, drogado. A turma dormindo em beliches de quartos enormes. Às vezes dez, doze pessoas debaixo do mesmo teto. Não dava pra botar a mão no fogo. Andava pelo centro, conhecia os batedores de carteira, suas gírias, suas artimanhas. Tomava o trem, habituado aos acontecimentos mais insanos. O rame rame de uma vida entre tipos sociais que dariam frio na espinha do leitor ter de encarar nos olhos. E a gente encarava, combinando uma postura de autoridade com deferência. Pra não dar ocasião de problemas. A gente não podia esboçar medo; seria pior. Tinha que ter firmeza, traquejo pra contornar a coisa.

Sempre tive a sorte de conseguir me virar e de algum jeito resolver os problemas. Mas no meu caso não consegui nunca fugir dos problemas. E ter que resolver problemas é um negócio que me incomoda profundamente. Desde o tempo do cais do porto. Saía de um problema aqui e logo aparecia outro ali. Não dava muito tempo de esfriar a cabeça, de respirar aliviado. 

Na última pensão em que morei, antes de me casar e ter filhos, quando a situação já tava mais tranquila financeiramente, conheci um rapaz que era esquizofrênico, o Zé Carlos. Sempre penso no Zé Carlos como um exemplo de instabilidade da vida. O Zé era um sujeito muito carismático e popular. Sabia conversar com as pessoas, educado. O problema era quando o figura surtava. Às vezes tava escorado no alpendre da pensão, fumando, olhando a rua, e do nada começava a falar sozinho, a ralhar como se estivesse em discussão com alguém. Começava nisso com a voz até meio baixa. E ia escalando. Quando a gente via o Zé Carlos tava aos berros. Batia com as mãos na chapa de aço do portão, chutava o cachorro. O Zé passava uns tempos internado, depois voltava sereno. Contava das injeções de sossega leão, das enfermeiras bonitas. E trabalhava, operário qualificado. Até uma próxima internação. Minha vida tinha esse ritmo de altos e baixos. Às vezes medo, às vezes perigo. Uns breves lapsos de monotonia. E voltava à carga a loucura da vida. Como numa montanha russa de emoções, às vezes sinistra e perversa. Sorte e azar vizinhos desapartados.



quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Entre vivos e mortos

Da série Crônicas da Vida Operária 



                                    ☆


Tem pessoas que a gente vê e pensa que vai viver um tempão, que tem no mínimo mais uns 20 ou 30 anos pela frente. Daí a dois, três anos a gente fica sabendo do velório, vem alguém e conta que a pessoa passou dessa pra melhor. Gozado isso. "Gozado" era como a turma da Vila Operária costumava se referir a fatos curiosos ou engraçados. E na Vila Operária muita gente morria também. A morte era um fato corriqueiro na Vila Operária. Morria gente de tiro, de facada, em brigas conjugais, entreveros familiares, desentendimentos de bêbados nos bares, etc. Morria também muita gente do coração, de diabetes, de avc. Morria velho, novo, criança. Morria-se de acidente nas fábricas às vezes. Era meio difícil, mas acontecia. 

Tinha gente na Vila Operária que até gostava dos ritos funerários. Muitas famílias velavam seus defuntos em casa mesmo. Passavam a madrugada adentro entre cafés e lanchinhos. As pessoas cochichando pelos cantos no começo do velório, e aquele vozerio depois de todos se ambientarem. Tinha gente que aí esquecia se tratar de velório. Iam zanzar no quintal, olhar a lua, falar do campeonato de futebol, das notícias da semana na política, das novelas. As crianças correndo de um lado pro outro, sujando as roupinhas de terra e levando bronca dos pais. Aí de manhã partia o cortejo em torno do féretro, sombrinhas pra cobrir a cabeça do sol. Passava o caixão e os populares tiravam o chapéu pelo caminho, fazendo o sinal da cruz. 

O cemitério da Vila Operária era simplezinho. Mixuruca, mas digno. Tinha bonitas copas de árvores, com passarinhos, gatos nos muros laterais. Um lugar simpático. De um lado o cemitério antigo, com pequenas edificações, cruzes e imagens de santo. De outro as covas recentes, só o bolo de terra pra indicar o sepultamento. 

Eu conhecia como a palma da mão o cemitério da Vila Operária, e mais adiante vou contar o porquê. Uma vez entrei correndo lá de noite, fugindo de um quebra pau na frente do sindicato. Baixou a polícia atrás da peãozada. Os homens já tinham me marcado de um piquete naquela semana. Vieram ao meu encalço. Desci a rua desabalado, vim no impulso da corrida e pulei o muro. Caí na parte das covas recentes. No apuro devo ter passado por cima de uma meia dúzia de companheiros recém finados. Segui na correria e só fui parar quando tive certeza que os homens não vinham atrás. 

Mas, eu dizia, a morte era tema constante na Vila Operária. Pouca gente morria velhinha. Toda semana partia alguém pro mundo do além. E a gente de certa forma se acostumou com aquilo. Teve uma época em que eu tava queimado com os patrões nas empresas. Meu nome foi parar numa lista negra de operários subversivos. Aí fui me virar com bicos. O Charles, meu camarada das antigas, dono de uma funerária, me chamou pra dar uns expedientes por lá. Me chamou e disse: "Olha, o serviço é moleza. Faz assim, faz assado. Tem muita história em torno disso mas aqui você passa bem. Vai por mim"

Eu peguei a manha do negócio e por alguns meses ganhei o pão com a carne morta, como dizia o Charles pra fazer gracejos entre os amigos. E foi o próprio, camarada Charles, que me arrumou um emprego no cemitério. Lá eu teria carteira assinada, alguns direitos e tal, coisa que eu não tinha na funerária. Foi aí que passei esse tempo atuando no cemitério, até a poeira baixar e eu poder voltar pro chão de fábrica. 

Outros companheiros precisaram fazer o mesmo: desbaratinar por um tempo em outros afazeres. Deixar um pouco as fábricas enquanto o bicho pegava. E ouvi histórias interessantíssimas. Teve gente que foi varrer rua, gente que foi animar festas infantis no bairro dos ricaços...Gente com menos escrúpulos, que tinha rodado meio por acaso, sem o envolvimento político nosso, que foi fazer trambiques, aplicar pequenos golpes como o do bilhete premiado na loteria, essas sacanagens que se vê por aí. Companheiras mulheres foram fazer faxina, trabalhar em casas de família, em hospitais, em asilos. Teve até uma que chegou a trabalhar em manicômio. Voltou pra Vila Operária e nos divertia com as histórias dos malucos. Reparei depois que ela evitava falar muito desse trabalho, pelo menos da parte séria do negócio. Outros companheiros menos perspicazes não podiam notar. Mas eu notava em seus olhos que muita coisa ruim ela tinha visto por lá, e que aquilo tinha mexido com ela.

Pois então, muitos desses amigos pareciam imortais, ou "imorríveis", como a gente brincava entre os peões coveiros. (Coveiro não tem tempo nem de morrer. Era a frase que corria lá entre a gente.) E desses "imorríveis" eu vi vários morrendo. Dava um aperto no coração. Um nó na garganta. Mas que diferença realmente faz morrer aos 50 ou aos 80? Tenho saudades de todos eles. Mas creio que estejam bem no mundo dos mortos. Aqui embaixo era que a coisa apertava. Peão de fábrica entende bem disso.