quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Entre vivos e mortos

Da série Crônicas da Vida Operária 



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Tem pessoas que a gente vê e pensa que vai viver um tempão, que tem no mínimo mais uns 20 ou 30 anos pela frente. Daí a dois, três anos a gente fica sabendo do velório, vem alguém e conta que a pessoa passou dessa pra melhor. Gozado isso. "Gozado" era como a turma da Vila Operária costumava se referir a fatos curiosos ou engraçados. E na Vila Operária muita gente morria também. A morte era um fato corriqueiro na Vila Operária. Morria gente de tiro, de facada, em brigas conjugais, entreveros familiares, desentendimentos de bêbados nos bares, etc. Morria também muita gente do coração, de diabetes, de avc. Morria velho, novo, criança. Morria-se de acidente nas fábricas às vezes. Era meio difícil, mas acontecia. 

Tinha gente na Vila Operária que até gostava dos ritos funerários. Muitas famílias velavam seus defuntos em casa mesmo. Passavam a madrugada adentro entre cafés e lanchinhos. As pessoas cochichando pelos cantos no começo do velório, e aquele vozerio depois de todos se ambientarem. Tinha gente que aí esquecia se tratar de velório. Iam zanzar no quintal, olhar a lua, falar do campeonato de futebol, das notícias da semana na política, das novelas. As crianças correndo de um lado pro outro, sujando as roupinhas de terra e levando bronca dos pais. Aí de manhã partia o cortejo em torno do féretro, sombrinhas pra cobrir a cabeça do sol. Passava o caixão e os populares tiravam o chapéu pelo caminho, fazendo o sinal da cruz. 

O cemitério da Vila Operária era simplezinho. Mixuruca, mas digno. Tinha bonitas copas de árvores, com passarinhos, gatos nos muros laterais. Um lugar simpático. De um lado o cemitério antigo, com pequenas edificações, cruzes e imagens de santo. De outro as covas recentes, só o bolo de terra pra indicar o sepultamento. 

Eu conhecia como a palma da mão o cemitério da Vila Operária, e mais adiante vou contar o porquê. Uma vez entrei correndo lá de noite, fugindo de um quebra pau na frente do sindicato. Baixou a polícia atrás da peãozada. Os homens já tinham me marcado de um piquete naquela semana. Vieram ao meu encalço. Desci a rua desabalado, vim no impulso da corrida e pulei o muro. Caí na parte das covas recentes. No apuro devo ter passado por cima de uma meia dúzia de companheiros recém finados. Segui na correria e só fui parar quando tive certeza que os homens não vinham atrás. 

Mas, eu dizia, a morte era tema constante na Vila Operária. Pouca gente morria velhinha. Toda semana partia alguém pro mundo do além. E a gente de certa forma se acostumou com aquilo. Teve uma época em que eu tava queimado com os patrões nas empresas. Meu nome foi parar numa lista negra de operários subversivos. Aí fui me virar com bicos. O Charles, meu camarada das antigas, dono de uma funerária, me chamou pra dar uns expedientes por lá. Me chamou e disse: "Olha, o serviço é moleza. Faz assim, faz assado. Tem muita história em torno disso mas aqui você passa bem. Vai por mim"

Eu peguei a manha do negócio e por alguns meses ganhei o pão com a carne morta, como dizia o Charles pra fazer gracejos entre os amigos. E foi o próprio, camarada Charles, que me arrumou um emprego no cemitério. Lá eu teria carteira assinada, alguns direitos e tal, coisa que eu não tinha na funerária. Foi aí que passei esse tempo atuando no cemitério, até a poeira baixar e eu poder voltar pro chão de fábrica. 

Outros companheiros precisaram fazer o mesmo: desbaratinar por um tempo em outros afazeres. Deixar um pouco as fábricas enquanto o bicho pegava. E ouvi histórias interessantíssimas. Teve gente que foi varrer rua, gente que foi animar festas infantis no bairro dos ricaços...Gente com menos escrúpulos, que tinha rodado meio por acaso, sem o envolvimento político nosso, que foi fazer trambiques, aplicar pequenos golpes como o do bilhete premiado na loteria, essas sacanagens que se vê por aí. Companheiras mulheres foram fazer faxina, trabalhar em casas de família, em hospitais, em asilos. Teve até uma que chegou a trabalhar em manicômio. Voltou pra Vila Operária e nos divertia com as histórias dos malucos. Reparei depois que ela evitava falar muito desse trabalho, pelo menos da parte séria do negócio. Outros companheiros menos perspicazes não podiam notar. Mas eu notava em seus olhos que muita coisa ruim ela tinha visto por lá, e que aquilo tinha mexido com ela.

Pois então, muitos desses amigos pareciam imortais, ou "imorríveis", como a gente brincava entre os peões coveiros. (Coveiro não tem tempo nem de morrer. Era a frase que corria lá entre a gente.) E desses "imorríveis" eu vi vários morrendo. Dava um aperto no coração. Um nó na garganta. Mas que diferença realmente faz morrer aos 50 ou aos 80? Tenho saudades de todos eles. Mas creio que estejam bem no mundo dos mortos. Aqui embaixo era que a coisa apertava. Peão de fábrica entende bem disso.




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