domingo, 16 de janeiro de 2022

Transportando histórias

Da série Crônicas da Vida Operária 



                                    ☆


A curva do ônibus nem foi tão forte, mas a tia tombou e tivemos que parar pra acudir. Uma dona de uns 70 anos, forte, como diz o outro, pesada. Paramos o coletivo mas ela não tinha força de sozinha se levantar. Um grandão no fundo disse que tínhamos que tocar pro hospital, que era o correto a se fazer. Mas tava emocionado o grandão. A tia não tinha nem arranhado o braço. O Ademar motorista por sua vez também não cometeu nenhuma loucura. Vinha sereno ao volante nesse dia. Coisa que acontece. 

 _ Mas e o braço do banco?, disse uma moça.

Realmente tava faltando um item no banco que a tia vinha. Já tinha reparado fazia uns dias e devia ter tomado providências. Se desse merda, o patrão comia meu rabo. Isso se não me mandasse embora. Acontece que o ônibus era clandestino. Tinha muito disso naquela época. E passava batido. Pouca fiscalização, se pintasse era sempre um dinheiro por fora e tava beleza. Havia centenas de clandestinos circulando pela cidade. Imagina, uma cidade grande dessa!

Mas a tia tava bem. Graças a Deus. Se a velha se estrepava eu tava fudido de verde e amarelo. Me estrepava junto. 

Foi nesse dia que eu voltei a rezar a mandinga do santo, que a tia Ana me chamou pra eu aprender com 12 anos. Ela me puxou pro quintal e me iniciou ali num ritual que, dizia ela, eu tinha que levar pro resto da vida. Vez ou outra eu esquecia aquilo, deixava pra lá. Mas naquele dia da queda da senhora eu voltei a fazer assiduamente, do jeitinho que a tia Ana tinha me ensinado. 

Depois disso não me lembro do medo ter me tomado de assalto. Acontecia as maiores loucuras do mundo naquele ônibus e eu mantinha sempre a maior calma. Sentava a bunda naquele banco velho de cobrador, com uma almofadinha macia que me acompanhava diuturnamente, e passava horas e horas pegando bilhetes e dinheiro do povo. Contando piada e dando esculacho no Ademar. E dava esculacho porque eu é que era a autoridade da linha. Tinha moral com o patrão, muitos anos de firma. Modéstia à parte, tinha uma habilidade incomum pra resolver os beós, pra dar ordens aos homens, pra colocar as coisas pra funcionar. Devia ter eu mesmo aberto firma, pra fazer dinheiro e ser respeitado no bairro. Mas eu não tinha pretensões. Vivia pra trabalhar e voltar pra casa. Um ou outro fim de semana na praia, algumas namoradinhas. Minha vida era essa. 

Ficou um pouco mais emocionante depois que eu dei pra passar no concurso da companhia de trens. Me deram umas poucas semanas de treinamento e me colocaram pra ser maquinista. No ônibus eu não dirigia, mas no trem era eu que pilotava a bagaça. 

No começo era tudo meio chato, ter que tomar nota das instruções, decorar nomes, funções, etc. Depois que eu dominei o painel de controle fiquei envaidecido. Gostava quando a composição atingia a velocidade máxima. E me deslumbrava com a paisagem, com o mato no entorno, com aqueles trilhos a perder de vista. 

Foi um tempo muito bom esse na companhia. Pouco depois de ingressar como funcionário concursado, já tinha uns contatos bons na categoria, uma meia dúzia de mulher atrás de mim, querendo casamento e tal, o Magalhães me chamou de canto e disse que tinha um negócio da China pra gente.

Ainda bem que eu não entrei na do Magalhães. O cara se picou pra Serra Pelada, no auge do garimpo. Foi e não deu mais notícia. Eu via aquelas reportagens na tv e ficava tentando encontrar o Magalhães nas imagens. Imagina que loucura. As imagens de Serra Pelada pareciam formigueiros, enxames humanos. Mas eu lembrava do Magalhães. Se tinha alguém do meu lado eu contava que o meu camarada Magalhães estava lá, que tinha largado tudo pra ir atrás de ser milionário garimpando ouro na Amazônia. 

A vida seguia a mesma na companhia. Entrava e saía gente, a turma sempre animada, piadista. Os maquinistas se cruzando no refeitório, nos banheiros, no café, contando as histórias dos atropelamentos, quem tinha mais mortes nas costas, o tanto de gente que tinha aleijado. Na maioria das vezes sem maldade alguma. Só por contar. Desencargo de consciência. "O sujeito que anda no trilho é que tá errado"! Alguém sempre repetia. A gente tinha que ter alguma frieza sempre. Tranquilidade para lidar com os contratempos. 

Só o Nequinha que uma vez entrou pelo cano com isso. Ele era novato, não sabia como a coisa funcionava. No primeiro atropelamento tomou nota do falecido e resolveu comparecer no velório. A família descobriu que ele que tinha esmigalhado o cara e a coisa desandou; pegaram ele de pau e não sei o que foi pior, se foi a cara amassada que rendeu uns dias de licença médica ou se foi a gozação da turma depois.

No mais, quem se lascava mesmo era a turma da limpeza de vias. Sempre contavam história de corpos destroçados que tinham que recolher. Às vezes chegavam com o presunto no necrotério e um engraçadinho perguntava: "Mas onde tá a cabeça? Tá faltando uma perna, um braço"

E nessa loucura toda o Magalhães só foi aparecer cinco anos depois. E apareceu entre alquebrado e místico. Um pouco mais calvo do que já era, uma barba de três ou quatro dias, os olhos verdes muito serenos entre vincos que o tempo lhe sulcara no rosto avermelhado. Veio contando histórias mirabolantes. Contou que teve mulheres, que entrara em desavenças, em aventuras homéricas floresta adentro, que se apaixonara por uma índia tipo Iracema, que ficara rico e depois pobre, e depois rico de novo. Mas que aparecera um inimigo, e que, jurado de morte, passara a procurar pajelanças pra fechar o corpo. Uma história mais impressionante que a outra! 

O que era ser maquinista de trem frente ao Magalhães das mirabolantes histórias floresta adentro? Eu já tava ficando meio deprimido quando meu camarada Magalhães chegou aos infortúnios do fim de sua história. 

Disse ele que fechou lá o corpo. E que escapou de duas ou três emboscadas do sujeito que lhe jurara. Até que resolveu dar cabo do sujeito. Ele e um compadre. O compadre furou o peito do sujeito com um tiro de calibre doze, ao que o Magalhães "temperou", palavras dele, com as seis balas de um 38. E ficou sem inimigos a partir desse dia. Mas depois pegou uma malária muito tenebrosa. Vendo que corria risco de vida, se meteu num avião e voltou. Chegou então a um hospital e deixou lá suas pepitas de ouro, em pagamento a um intensivo tratamento, ao fim do qual, uns dois meses depois, dizia ele que tinha saído com tudo em cima. 

Mas já não tinha emprego. Tinha boas histórias pra contar, mas não usufruia, como nós, de um salário certo, embora não muito generoso. Tentei levar ele no terreiro da tia Ana. Achei que seria bom. Ele não quis. Se amigou depois com uma moça muito engraçadinha da zona sul e se aprumou na vida.

Eu, uns anos depois disso, pedi pra sair da companhia. Tava cansado de atropelamentos. Quatorze ao todo. Treze óbitos. Não me sentia culpado. Mas queria uma coisa mais sossegada. Meu trabalho no transporte público acabou assim. Longos anos levando o povo pra cima e pra baixo, arrumando histórias pra contar.




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