domingo, 18 de julho de 2021

Gato atropelado



Alguma vez vocês já viram um gatinho agonizar? Eu nunca tinha visto, vi hoje. A coisa mais triste. 

Vinha no ônibus, distraído, lendo um livro. De repente o motorista pára e aponta um gato estirado no meio da rua. 

- O carro atropelou.

-Que carro, moço?

- O carro lá da frente. Você não viu?

Eu não tinha visto nada. Vinha entretido na minha releitura de Carisma e poder, o clássico do Boff. 

Lá estava o gato no asfalto, cuspindo sangue, tentando erguer a cabeça, tremelicando. O carro que atropelou não parou pra socorrer. Eu vinha na parte da frente do ônibus, que o motorista tava sem troco. Ele abriu a porta, ameaçou descer. Eu desci antes, fui até o gato, quase fui atropelado também, dessa vez por um motoqueiro que vinha atrás. A rua praticamente deserta de pedestres, mas com muito movimento de automóveis. O motorista do ônibus sugeriu tirar o gato do meio da rua antes que um outro automóvel passasse por cima e terminasse de matar. E era isso mesmo o melhor a se fazer. O gatinho preto, no meio do asfalto de uma rua escura, fatalmente seria esmagado. Na calçada talvez tivesse uma chance de ser resgatado e viver. 

Arregacei as mangas pronto para me sujar com o sangue do gato. Temi que ele me mordesse ou me arranhasse. Quase não esboçou reação, só um leve contrair-se de patinhas. Atravessei a rua e o deixei na calçada de uma casa, com o peito apertado, ele me olhava com os olhinhos vidrados, um dos olhinhos ensanguentados. Olhei pros lados da rua, ninguém por perto, ninguém pra pedir ajuda. Me acocorei ao lado do gato, fiz um carinho em sua cabeça. O moço do ônibus me chamou. Previsava arrancar com o veículo, havia passageiros. 

Entrei de volta no ônibus, me limpando com álcool gel pra tirar o sangue das mãos. Fui pelo caminho rezando pra que o gato tivesse uma chance. Puxa, mas que falta de sorte, pensei. Todo dia deve ter gatinhos que são atropelados no mundo. Mas eu tinha que presenciar a agonia do gato?! Podia ser o atropelo de uma pomba, de um rato. O atropelo de um gatinho fofo é muito triste. 

Pensei que talvez devesse ter tocado a campainha da casa. Talvez o gato fosse de lá. Podia ter desistido da viagem pra procurar socorro pro gato. Mas também eu estava em um lugar desconhecido. Vinha numa linha que nunca pego quase, que não sei do caminho. Peguei essa linha porque a minha linha habitual demorava pra passar dessa vez. 

Estava indo pra missa. E já estava atrasado. Cheguei na igreja no meio da missa. Dia de azar. Me atrasei porque fiquei em casa assistindo o jogo do Palmeiras. Bom, pelo menos o Palmeiras ganhou a partida. Mas se eu saísse de casa mais cedo não teria presenciado o atropelamento do gato, estaria dentro da igreja, protegido dessas desgraças que acontecem por aí nas ruas. 

Demorei a me concentrar na igreja. Na cabeça vinha a imagem do gatinho ensanguentado e agonizante. No altar mor da paróquia uma imagem do menino Jesus me chamava a atenção. Nunca tinha entrado nessa igreja. Zona norte de São Paulo, Igreja Menino Jesus do Tucuruvi, uma igrejinha velha, muito simples, sem graça, de bancos velhos, povo desanimado. O menino Jesus do altar, também mal apanhado, mas um menino Jesus. Deve ser difícil encontrar coisa mais singela e comovente que um menino Jesus. Só se for um desses meninos Jesus de carne e osso que mendigam ou vendem balinhas pelos centros das cidades. Esses também chamam a atenção da gente. Fazem chorar aos sensíveis tanto como um gato atropelado em sua agonia de morte. 

Saí da igreja e vi uma pomba espatifada na rua.  Atropelamentos de bichos são mais comuns do que a gente imagina. É o ciclo da vida. Verdade. Faz parte. Mas eu continuo meio sensível pra essas coisas. Acho que vou levar uns dias pensando nesse gato.



3 comentários:

  1. Isso deu uma crônica muito bem feita!
    👏👏👏👏👏

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  2. Atropelamentos de animais....humanos.... sinceramente o mundo está precisando t um novo olhar

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  3. Certa vez, atropelei uma Saracura. Eram duas, bem alegres, que cruzavam a rua rapidamente. Eu estava levando meus filhos no colégio. Não deu tempo de parar, elas cruzaram quando o carro já estava na linha do acidente. Surgiram tão rápido do mato na calçada e não tinha como eu evitar. Na volta, parei o carro, e com uma sacola de mercado retirei ela da rua e coloquei na calçada. A rua praticamente não tem movimento. Um atalho meu. Um senhor que caminhava enquanto eu retirava a avezinha, me destratou, que eu não tinha sentimentos... Ele não tinha ideia de quanto eu estava triste com a situação. Forte abraço fraterno, Mário Medina

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