Fez história no Mato Grosso há uns 100 anos atrás. Era tido como sujeito contraditório. Prezava pela modernização de sua fazenda, mas era extremamente conservador quanto aos hábitos da vida coletiva na cidadezinha. Tentou a vida pública, tinha pretensões políticas. Gostava de ser notado na vida social do lugar, era pernóstico, gostava de atrair toda atenção para si. Demorou a casar, queria a moça mais vistosa do lugarejo. E disputou-a com meia dúzia de pretendentes, todos eles filhos da elite local, dos senhores de fazenda, coronéis.
Ao cabo de uma boa peleja, como era corrente na língua dos matutos, desposou a jovem, filha única de pais comerciantes. Os velhos negociaram caro a mão da menina. O tino pro negócio fez arrancarem ao Matias uma pequena fortuna, suficiente para morrerem ricos e terem os restos depositados em bela capela de mármore branco, entre palmeiras e mortos ilustres da redondeza.
Matias via sua pequena fortuna voltar com juros e correções no nome da esposa, uma dona de meia idade capaz de atrair a lascívia de jovens, velhos, padres, quem a notasse.
E foi assim, ostentando a mulher mais desejada e tentando se projetar como político, que passou da condição de inusitada figura menor ao posto de lendária personagem local. Queria porque queria ver aprovado projeto seu de erigir um par de torres de 40 metros na igreja da matriz, já havia proposto um recolhimento compulsório afim de criar uma escola de oficiais; dizia acreditar no progresso do município, exaltava energicamente as qualidades morais dos sertanejos.
Não havia logrado êxito em nenhum empreendimento, com exceção do próprio casamento. Não contava com a simpatia das gentes. Tinha de se contentar com uma inexpressiva claque composta de poucos parentes e compadres. Até que por um novo capricho caiu definitivamente na boca do povo.
Foi quando tentou convencer os vereadores a criar um projeto de lei que proibisse os guarda-chuvas. E foi extremamente diligente na tarefa a que se propôs. Redigiu manifesto, coletou assinaturas, proferiu discurso de 50 minutos na tribuna da câmara. Moveu céus e terra para convencer a quem pudesse de que sua tese era acertada. Argumentava calorosamente sobre o absurdo de portar guarda-chuvas, ainda mais naquela sedenta terra em que viviam. O guarda-chuva era um desaforo à natureza benfazeja que proporcionava o refrigério à terra e a seus habitantes, o guarda-chuva era antinatural, objeto estranho a interpor o ciclo da vida dos corpos daqueles que o empunhavam, um sacrilégio! Tomassem chuva sobre suas cabeças e saberiam o que estavam perdendo, o contato íntimo com um dos fenômenos da natureza mais indispensáveis ao ciclo do desenvolvimento humano.
- A modernidade tem limites!, esbravejava. Aumentava o tom, vociferava, os olhos vermelhos de ira: - Não sejam renegados, os senhores estão a injustiçar a dádiva do Altíssimo, que do céu lhes envia o líquido da vida!
Começou a ficar impopular. Não que antes fosse popular, mas começava a atrair inimizades. Antes era apenas um fanfarrão a despertar inveja aos demais pela mulher que tinha. Passou a ser evitado, encarado como sujeito impertinente e maçante.
Caiu no ostracismo, relegado ao papel de lunático, motivo de piada, reduzido a objeto do escárnio de toda uma região. Acabrunhou-se por uns dias, forçando-se à tarefas da fazenda, porém sem ânimo, deprimido.
Optou por retirar-se uns dias. Embrenhou-se na mata para caçar, montou acampamento ao pé de um ribeirão. Contemplava o céu estrelado do sertão, lembrava da meninice. Sentiu-se aliviado da tensão lá pelo décimo dia de retiro. Tomou caminho de volta. Veria a mulher, faria amor, tomaria uns tragos da cachaça predileta. As coisas iriam melhorar. Chegou na casa da fazenda e surpreendeu a mulher em ardente felação a um jagunço.
Abafaram o caso com uma viagem, depois de uma conversa com o empregado. A história dos guarda-chuvas já havia sido suficientemente desgastante.
terça-feira, 28 de novembro de 2017
sexta-feira, 24 de novembro de 2017
Nunca gostei de trabalhar / Encarando o desajuste
"Do suor de teu rosto comerás o teu pão"
Gênesis 3, 19
Quando eu tô deprimido, escrevo menos. E escrever menos não é interessante pra mim, haja visto que mantenho esse blog. Ou seja, depressão atrasa bastante o meu lado. Até porque o blog tem poucas visualizações; e se eu posto menos conteúdo, as visualizações caem ainda mais. E aí eu fico deprimido. É um círculo maldito.
Então, pra tentar matar dois coelhos em uma cajadada só, pensei: Bom, vou escrever sobre depressão. Mas depressão implica muita coisa. E outra, depressão pode ter várias causas. Então vou falar de mim. Eu sou narcisista o bastante pra fazer isso sem me preocupar muito.
A depressão no meu caso chegou há uns quatro anos e meio. Depois de uma crise de abstinência de rivotril. Tomei o tarja preta por sete anos. Isso mesmo. Sete longos anos. Rivotril é uma delícia. Comecei a tomar por conta de uma síndrome de pânico que me acompanha desde os 17. Pois então, fui tentar parar com o rivotril e dei uma surtada. O que era pânico virou pânico e depressão, muita ansiedade, pensamentos suicidas, etc. Mudaram meu diagnóstico pro cid F-41, transtorno misto de ansiedade e depressão. Por esses dias fui pegar um encaminhamento pra ser atendido mais perto de casa e observei no prontuário que o último psiquiatra que tinha me visto resolveu alterar o cid; colocou F-39, transtorno de humor.
Mas enfim, o fato é que sou um transtornado. Não que isso faça muita diferença. Meio mundo é, muita gente já surtou, outros tantos estão surtando e muitos outros irão surtar. O surto é parte integrante da contemporaneidade e a gente vai empurrando com a barriga, antidepressivos ( também podem ser ansíoliticos, reguladores de humor, benzodiazepínicos, anti-psicóticos nos casos mais graves, etc ) e sessões de análise. A impressão que eu tenho, e eu julgo que minha impressão faz muito sentido, é que nada disso realmente resolve.
Tomo antidepressivos há mais de 15 anos, faço análise há quase cinco; cheguei à conclusão, empírica mesmo, com conhecimento de causa, de que os sintomas só melhoram mesmo quando a vida melhora, as condições materiais da vida, o conforto material, o nível de sossego, essas coisas.
Eu falei mais ou menos o seguinte há uns meses atrás: não dá pra entender esse mundo em que a gente vive sem ler Marx e Freud. Mas nessa sequência, primeiro leiam o Marx e depois o Freud. O materialismo dialético é insuperável. Porque são as coisas materiais que determinam tudo nesse mundo.
Mas, voltando ao tema, e justificando o desvio, chego aqui ao que julgo ser o motivo da minha depressão. Sem desconsiderar eventuais fatores endógenos, características de personalidade, tendências atuais. Mas o motivo de fundo, aquilo que entendo ser determinante no meu quadro, julgo ser a debilidade material.
Minha analista diz que eu não me implico enquanto sujeito. Ela deve ter razão. Eu sou um cara acomodado. Reconheço. Isso me faz depender materialmente da minha família. Acontece que minha família é pobre. E eu não consigo viver sem vez ou outra me ver em condições materiais precárias, o que me deixa chateado, apreensivo, preocupado, e, por consequência, deprimido. Ou seja, se o leitor acompanhou o encadeamento lógico, concluirá comigo: esse cara é depressivo de pobre que é. Pode haver um elemento ou outro a ser considerado como agravante, mas a pobreza, a miséria material por assim dizer, é que explica tal desarranjo existencial.
Talvez algum interlocutor objetasse: Não seria a preguiça?! Sim, concluiria, o Mário é pobre porque não trabalha, e não trabalha porque é preguiçoso, é um indolente inveterado. Seria uma outra forma de encarar a questão, uma forma mais ideológica, certamente.
A gente vive num mundo de gritante utilitarismo. A ideologia do momento é a tal da meritocracia. Desde a literatura de auto-ajuda até os manuais que regem o meio corporativo, a idéia mais batida é a de que o sujeito pra ser bem sucedido tem que ser produtivo, determinado, abnegado. Tem o tal do "foco". Nunca se usou tanto esse termo como agora. Sobrevive ao ambiente empresarial quem é forjado em metas, quem subsiste apesar das adversidades e crueldades do mercado de trabalho. Eu, como nunca me adaptei em tal estrutura, me vejo dissituado, tendo que me ver com a contradição de ser improdutivo num mundo em que os improdutivos não servem. E tenho que me ver com a contradição de não estar apto ao consumo num mundo de consumismo.
Não é o fim do mundo. Desajustados existem aos montes por aí. Mas como ser desajustado sem sofrer? Dá pra ser desajustado sem ser excluído? Dá pra ser desajustado sem sofrer preconceito? Dá pra ser desajustado sem ser estigmatizado? No limite, tendo em consideração o modo de produção no qual estamos inseridos, com todas as contradições que o mesmo implica, daria pra ser desajustado sem ser depressivo? O mal estar na civilização já está dado. Que dirá o mal estar dos que ousaram não se adequar ao sistema!
Gênesis 3, 19
Quando eu tô deprimido, escrevo menos. E escrever menos não é interessante pra mim, haja visto que mantenho esse blog. Ou seja, depressão atrasa bastante o meu lado. Até porque o blog tem poucas visualizações; e se eu posto menos conteúdo, as visualizações caem ainda mais. E aí eu fico deprimido. É um círculo maldito.
Então, pra tentar matar dois coelhos em uma cajadada só, pensei: Bom, vou escrever sobre depressão. Mas depressão implica muita coisa. E outra, depressão pode ter várias causas. Então vou falar de mim. Eu sou narcisista o bastante pra fazer isso sem me preocupar muito.
A depressão no meu caso chegou há uns quatro anos e meio. Depois de uma crise de abstinência de rivotril. Tomei o tarja preta por sete anos. Isso mesmo. Sete longos anos. Rivotril é uma delícia. Comecei a tomar por conta de uma síndrome de pânico que me acompanha desde os 17. Pois então, fui tentar parar com o rivotril e dei uma surtada. O que era pânico virou pânico e depressão, muita ansiedade, pensamentos suicidas, etc. Mudaram meu diagnóstico pro cid F-41, transtorno misto de ansiedade e depressão. Por esses dias fui pegar um encaminhamento pra ser atendido mais perto de casa e observei no prontuário que o último psiquiatra que tinha me visto resolveu alterar o cid; colocou F-39, transtorno de humor.
Mas enfim, o fato é que sou um transtornado. Não que isso faça muita diferença. Meio mundo é, muita gente já surtou, outros tantos estão surtando e muitos outros irão surtar. O surto é parte integrante da contemporaneidade e a gente vai empurrando com a barriga, antidepressivos ( também podem ser ansíoliticos, reguladores de humor, benzodiazepínicos, anti-psicóticos nos casos mais graves, etc ) e sessões de análise. A impressão que eu tenho, e eu julgo que minha impressão faz muito sentido, é que nada disso realmente resolve.
Tomo antidepressivos há mais de 15 anos, faço análise há quase cinco; cheguei à conclusão, empírica mesmo, com conhecimento de causa, de que os sintomas só melhoram mesmo quando a vida melhora, as condições materiais da vida, o conforto material, o nível de sossego, essas coisas.
Eu falei mais ou menos o seguinte há uns meses atrás: não dá pra entender esse mundo em que a gente vive sem ler Marx e Freud. Mas nessa sequência, primeiro leiam o Marx e depois o Freud. O materialismo dialético é insuperável. Porque são as coisas materiais que determinam tudo nesse mundo.
Mas, voltando ao tema, e justificando o desvio, chego aqui ao que julgo ser o motivo da minha depressão. Sem desconsiderar eventuais fatores endógenos, características de personalidade, tendências atuais. Mas o motivo de fundo, aquilo que entendo ser determinante no meu quadro, julgo ser a debilidade material.
Minha analista diz que eu não me implico enquanto sujeito. Ela deve ter razão. Eu sou um cara acomodado. Reconheço. Isso me faz depender materialmente da minha família. Acontece que minha família é pobre. E eu não consigo viver sem vez ou outra me ver em condições materiais precárias, o que me deixa chateado, apreensivo, preocupado, e, por consequência, deprimido. Ou seja, se o leitor acompanhou o encadeamento lógico, concluirá comigo: esse cara é depressivo de pobre que é. Pode haver um elemento ou outro a ser considerado como agravante, mas a pobreza, a miséria material por assim dizer, é que explica tal desarranjo existencial.
Talvez algum interlocutor objetasse: Não seria a preguiça?! Sim, concluiria, o Mário é pobre porque não trabalha, e não trabalha porque é preguiçoso, é um indolente inveterado. Seria uma outra forma de encarar a questão, uma forma mais ideológica, certamente.
A gente vive num mundo de gritante utilitarismo. A ideologia do momento é a tal da meritocracia. Desde a literatura de auto-ajuda até os manuais que regem o meio corporativo, a idéia mais batida é a de que o sujeito pra ser bem sucedido tem que ser produtivo, determinado, abnegado. Tem o tal do "foco". Nunca se usou tanto esse termo como agora. Sobrevive ao ambiente empresarial quem é forjado em metas, quem subsiste apesar das adversidades e crueldades do mercado de trabalho. Eu, como nunca me adaptei em tal estrutura, me vejo dissituado, tendo que me ver com a contradição de ser improdutivo num mundo em que os improdutivos não servem. E tenho que me ver com a contradição de não estar apto ao consumo num mundo de consumismo.
Não é o fim do mundo. Desajustados existem aos montes por aí. Mas como ser desajustado sem sofrer? Dá pra ser desajustado sem ser excluído? Dá pra ser desajustado sem sofrer preconceito? Dá pra ser desajustado sem ser estigmatizado? No limite, tendo em consideração o modo de produção no qual estamos inseridos, com todas as contradições que o mesmo implica, daria pra ser desajustado sem ser depressivo? O mal estar na civilização já está dado. Que dirá o mal estar dos que ousaram não se adequar ao sistema!
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