terça-feira, 29 de maio de 2018
O Processo
Ontem fui no cinema ver o filme do golpe. "O Processo" , da Maria Augusta Ramos. O nome não é à toa. Faz referência ao célebre romance do Kafka. O impeachment da Dilma foi praticamente uma peça kafkiana, e isso o documentário aponta com sobriedade. Não é um filme imparcial; não é um filme pra coxinhas. É um filme pra mostrar mesmo toda a sacanagem que foi o processo. A diretora focou seu trabalho no acompanhamento da bancada petista do senado, enquanto tramitava ali o indecoroso pedido de impeachment defendido pela advogada Janaina Pascoal. Aliás, esta senhora também foi filmada em sua estada pelos corredores do senado federal ao longo das arguições. A diretora Maria Augusta Ramos optou por esse enfoque: bancada petista versus Janaina Pascoal na votação do impeachment no senado. O filme só foge disso pra contextualizar em forma de legenda algumas movimentações vindas da câmara e pra mostrar a reação de manifestantes pró e contra golpe na esplanada dos ministérios; além do início do filme, que é um resumo de imagens da famosa tarde de votação do impeachment na câmara, comandada pelo bandido Eduardo Cunha. O filme começa assim: uma espécie de panorâmica da esplanada e logo em seguida o referido show de horrores no congresso. Evidente que, como assinalei acima, o filme não é imparcial. A edição do vasto material coletado converge para duas horas e meia de filme em que o telespectador é colocado diante do ardiloso plano executado por Cunha, PSDB e Janaina Pascoal para afastar ilegimamente a presidente Dilma. O filme desnuda toda essa maquinação. Fica claro o jogo de cartas marcadas no congresso, fica cristalino o cinismo de Janaina Pascoal. Chega a ser risível de tanta hipocrisia que é exposta da parte dos que comandaram o processo do golpe.
Fiz questão de ver o filme no cinema porque queria notar a reação do público. Tá ok que o filme tende a ficar restrito a um circuito alternativo; eu mesmo fui numa sessão na avenida Paulista, em um cinema frequentado por público mais ilustrado; mas queria ver a reação das pessoas. E não deu outra, a reação é de comicidade diante de tanta patifaria e cara de pau. As cenas da advogada Janaina são de longe as mais hilariantes. O cinema veio abaixo em risadas com uma cena da advogada tomando um Toddynho. A semiótica da cena não podia ser mais pertinente. Janaina Pascoal atuou como uma criança mimada, por pura birra. Maria Augusta fez questão de mostrar a ligação de Janaina à bancada evangélica, aos interesses conservadores; mostrando suas motivações ideológicas e sua paixão partidária. Mas Janaina começou tudo, é verdade, e é importante dizer, recebendo 45 mil reais do PSDB pra elaborar a peça acusatória.
Quer dizer, o impeachment foi mesmo um golpe deslavado, um golpe jurídico-parlamentar, com apoio midiático, pra sacar do poder por motivações políticas e econômicas uma presidente que já não era mais a primeira opção do mercado. Eduardo Cunha fez questão de acelerar ao máximo todo o trâmite, em retaliação pelo PT não tê-lo salvado da comissão de ética da câmara, que posteriormente o afastaria de suas funções na condução da casa por envolvimento em corrupção pesada. Ou seja, o processo todo é uma desmoralização completa.
O filme é bom mesmo. Eu recomendo. Fica meio arrastado lá pela metade, com tantas discussões de cunho burocrático que ao telespectador realmente não faz muito sentido. Digamos que é a forma burocrática contida na coisa. O que é determinante mesmo é o conteúdo político. Mas é um registro histórico. Bom pra ver como estamos imersos em jogos de aparência.
Obs 1: Interessante notar o brilhantismo da defesa de José Eduardo Cardoso. Praticamente impecável.
Obs 2: A senadora Gleisi Hoffman é uma gracinha. (Comentário meramente estético. As companheiras certamente ficarão com o charme cinquentão do Zé Eduardo Cardoso...rs)
domingo, 27 de maio de 2018
Hospício é deus / A vida é uma pancada
Um dia desses eu estava de passagem num movimentado prédio na Paulista em visita a uma repartição pública, pra ficar a par de um dos processos que acumulei com a militância no movimento estudantil. No hall de entrada do edifício me deparo com essas estantes de livros usados que o pessoal disponibiliza pros transeuntes. Fissurado em livro que sou, me detenho ali uma meia hora pra "garimpar" alguma leitura em meio a uma porção de livros não muito interessantes.
Pego um, pego outro, abro, folheio, fecho. Enxugo o suor do rosto, faz uma tarde quente em São Paulo. De repente me deparo com um título muito incomum, incomum demais: Hospício é deus. O título me intriga. Que porra é essa, livro espírita? O pessoal deveria parar de deixar livros espíritas pra circulação. O livro é de capa dura, uma capa muito simples, sem descrição alguma na contracapa. Mas afinal, que porra é essa?! Abro o livro e vejo uma citação do Sartre na primeira folha. Puxa, os espíritas agora deram pra citar Sartre! Pessoal invocado a sofisticado. Enxugo mais uma gota de suor que escorre pela testa. Estou cansado, as pernas ameaçam com uma inconveniente cãibra. Pego o livro e enfio na mochila. Ok, em casa eu vejo. Chego em casa e deixo o livro na estante. Devo confessar, esse livro deve ter ficado ali umas três semanas me esperando, aguardando uma outra leitura que a priori chamou mais a atenção. Mas a hora dele chega. Vou ver do que se trata, mais pela citação do Sartre no início. Tem hospício no nome. Curioso... Deixe-me ver do que se trata. E pum!, caio numa das leituras que mais me fascinou nos últimos meses. O livro não é espírita! A citação do Sartre não é desencontrada. Hospício no nome é hospício mesmo, não se trata de figura de linguagem.
Caríssimos, Hospício é deus é coisa de maluco. Mas de maluco com conteúdo e muito a dizer. A autora é Maura Lopes Cançado, escritora mineira radicada no Rio, colunista do antigo Jornal do Brasil, escritora talentosa e excêntrica que, acometida por distúrbios mentais, em uma de suas estadias num manicômio público do Rio, resolve, por sugestão de um colega da redação do JB, escrever um diário. A moça, ela era jovem, talentosíssima e lúcida, presenteada com uma Olivetti portátil, passa a narrar seus dias de interna numa instituição psiquiátrica. Isso no final da década de 50. A citação de Sartre tem tudo a ver com o contexto da época, período de ebulição do existencialismo do casal Sartre e Bevouir.
Mas, voltando ao livro, devo dizer, fiquei super impressionado, um pouco que me punindo por desconhecê -lo. Pesquisem no Google pra ver, Hospício é deus virou tema de pesquisas nas universidades, sobre a questão do escrever sobre si.
O livro é um diário. Em meio à narrativas de acontecimentos do dia, a autora recorre a digressões e conta episódios de infância, juventude, do casamento frustrado, do filho, da família, de suas saudades do pai falecido, de sua inadequação social, de sua sexualidade reprimida, de seu estranhamento do mundo. E Maura Lopes Cançado narra com sensibilidade todo o horror que observa e do qual é vítima ao mesmo tempo.
Os manicômios da década de 50 eram praticamente masmorras. As doentes eram punidas com quarto forte, as guardas corriqueiramente recorriam à violência física, o eletrochoque era coisa comum, as condições sanitárias eram precárias, a comida, intragável. Maura narra tudo com acidez cortante, criticando o sistema e a classe médica, com sarcasmo, debochando da cultura rasteira dos técnicos e médicos. Maura Lopes à época contava 24 anos, mas erudita, de uma inteligência fora do comum; jovem, muito bonita, atraente, despudorada, excêntrica. Em meio a surtos e crises depressivas, quebrava a monotonia rasgando as próprias roupas, entrando nua no escritório do diretor, pulando muros, dançando no telhado, pregando peças nas seguranças, elaborando e executando planos de fuga. Maura era o "terror" do complexo hospitalar. Uma figura. Personagem que colocaria no bolso o inusitado interno feito por Jack Nickolson em Um Estranho no Ninho, clássico do cinema que retrata cotidiano e desventuras de um pequeno hospício. Vejam, super recomendo esse livro. Tem coisas muito tristes, e a despeito da citação sartreana na primeira página, Maura Cançado estava muito mais inclinada para uma leitura nietzscheana da vida. Há niilismo de sobra, angústia; o livro alterna momentos divertidos ou de descrições afetuosas com quadros desesperadores de abandono e injustiça. Leiam esse livro. É um mergulho na condição humana, uma rica reflexão existencial. Depois tirem suas próprias conclusões.
Pego um, pego outro, abro, folheio, fecho. Enxugo o suor do rosto, faz uma tarde quente em São Paulo. De repente me deparo com um título muito incomum, incomum demais: Hospício é deus. O título me intriga. Que porra é essa, livro espírita? O pessoal deveria parar de deixar livros espíritas pra circulação. O livro é de capa dura, uma capa muito simples, sem descrição alguma na contracapa. Mas afinal, que porra é essa?! Abro o livro e vejo uma citação do Sartre na primeira folha. Puxa, os espíritas agora deram pra citar Sartre! Pessoal invocado a sofisticado. Enxugo mais uma gota de suor que escorre pela testa. Estou cansado, as pernas ameaçam com uma inconveniente cãibra. Pego o livro e enfio na mochila. Ok, em casa eu vejo. Chego em casa e deixo o livro na estante. Devo confessar, esse livro deve ter ficado ali umas três semanas me esperando, aguardando uma outra leitura que a priori chamou mais a atenção. Mas a hora dele chega. Vou ver do que se trata, mais pela citação do Sartre no início. Tem hospício no nome. Curioso... Deixe-me ver do que se trata. E pum!, caio numa das leituras que mais me fascinou nos últimos meses. O livro não é espírita! A citação do Sartre não é desencontrada. Hospício no nome é hospício mesmo, não se trata de figura de linguagem.
Caríssimos, Hospício é deus é coisa de maluco. Mas de maluco com conteúdo e muito a dizer. A autora é Maura Lopes Cançado, escritora mineira radicada no Rio, colunista do antigo Jornal do Brasil, escritora talentosa e excêntrica que, acometida por distúrbios mentais, em uma de suas estadias num manicômio público do Rio, resolve, por sugestão de um colega da redação do JB, escrever um diário. A moça, ela era jovem, talentosíssima e lúcida, presenteada com uma Olivetti portátil, passa a narrar seus dias de interna numa instituição psiquiátrica. Isso no final da década de 50. A citação de Sartre tem tudo a ver com o contexto da época, período de ebulição do existencialismo do casal Sartre e Bevouir.
Mas, voltando ao livro, devo dizer, fiquei super impressionado, um pouco que me punindo por desconhecê -lo. Pesquisem no Google pra ver, Hospício é deus virou tema de pesquisas nas universidades, sobre a questão do escrever sobre si.
O livro é um diário. Em meio à narrativas de acontecimentos do dia, a autora recorre a digressões e conta episódios de infância, juventude, do casamento frustrado, do filho, da família, de suas saudades do pai falecido, de sua inadequação social, de sua sexualidade reprimida, de seu estranhamento do mundo. E Maura Lopes Cançado narra com sensibilidade todo o horror que observa e do qual é vítima ao mesmo tempo.
Os manicômios da década de 50 eram praticamente masmorras. As doentes eram punidas com quarto forte, as guardas corriqueiramente recorriam à violência física, o eletrochoque era coisa comum, as condições sanitárias eram precárias, a comida, intragável. Maura narra tudo com acidez cortante, criticando o sistema e a classe médica, com sarcasmo, debochando da cultura rasteira dos técnicos e médicos. Maura Lopes à época contava 24 anos, mas erudita, de uma inteligência fora do comum; jovem, muito bonita, atraente, despudorada, excêntrica. Em meio a surtos e crises depressivas, quebrava a monotonia rasgando as próprias roupas, entrando nua no escritório do diretor, pulando muros, dançando no telhado, pregando peças nas seguranças, elaborando e executando planos de fuga. Maura era o "terror" do complexo hospitalar. Uma figura. Personagem que colocaria no bolso o inusitado interno feito por Jack Nickolson em Um Estranho no Ninho, clássico do cinema que retrata cotidiano e desventuras de um pequeno hospício. Vejam, super recomendo esse livro. Tem coisas muito tristes, e a despeito da citação sartreana na primeira página, Maura Cançado estava muito mais inclinada para uma leitura nietzscheana da vida. Há niilismo de sobra, angústia; o livro alterna momentos divertidos ou de descrições afetuosas com quadros desesperadores de abandono e injustiça. Leiam esse livro. É um mergulho na condição humana, uma rica reflexão existencial. Depois tirem suas próprias conclusões.
terça-feira, 8 de maio de 2018
Padre Maria Alice
A menina desce da van correndo, quase atropela um velho na
calçada e entra afoita em busca da mãe.
_Mãe, mãe, vem cá! Deixa eu perguntar uma coisa. Eu posso
ser o que eu quiser depois que crescer, né?
_Só depois que você tirar esse tênis sujo antes de entrar na
minha cozinha. Dá aqui um beijo na sua mãe.
A mulher beija a criança.
_Que foi que chegou toda serelepe?
_Mãe, quando eu crescer eu quero ser padre! - anunciou
animada.
_Padre?!
_É, mãe, padre, padre de igreja, pra fazer missa!
_Maria Alice, você é menina. Eu já te expliquei que você
nasceu com pepeca, menina. Esqueceu?! A gente teve esse conversa mês passado.
_Ah, mãe...mas eu quero ser padre, ficar em cima do altar
com aquela roupa branca bonita, ouvir o povo se confessando, saber dos pecados,
mandar eles rezarem dez ave-marias depois...
_Filha, você é menina. Você pode ser uma porção de coisas
legais quando crescer, pode até casar e ter um bebê bem fofo. Ou dois bebês
fofos, três, enfim...Já pensou?!- indagou a mãe esperando uma resposta
afirmativa da criança.
_Não, mãe, você tá fugindo do assunto. Eu não quero saber de
bebês.
A mãe desistiu de dissuadir a criança.
_ Então sobe e vai tomar o seu banho. Depois desce rápido
pra almoçar.
A menina fechou a cara, arrastou com desdém a mochila pesada
e entrou pelo corredor da casa, subiu emburrada pelas escadas. O assunto
ficaria pra depois. Contrariada a menina ficou reflexiva. E da escada ouviu a mãe falar sozinha:
_Daqui a pouco chega o João Lucas falando de ser freira...
De noite a mulher recebe o marido.
_Amor, você não vai acreditar no que a Maria Alice inventou
hoje.
_Hum, me fala.- perguntou o pai demonstrando interesse.
A mulher esboçou um sorriso e contou.
_Ela disse que quer ser padre-
O pai gargalhou.
_Ah, não. Era só o que faltava. Padre?! Você sabia que eu
venho de família anticlerical, Vera?
_Anti o que? – perguntou a esposa fazendo cara de que não
havia entendido.
_Anticlerical, que tem bronca de padre. Meu vô detestava
igreja, padre, qualquer coisa do tipo. Não deixou a mulher batizar os filhos,
proibia tudo que fosse relacionado à igreja.
_Puxa vida, esse seu vô era uma figura.
_Mas olha... pelo menos a Maria Alice quer ser padre. Nada
dessa coisa carola de ser freira, de véu, saia arrastando...Tem visão ela.
Parou um pouco de falar, pra morder um lanche assim que
sentara no sofá. Encostou as costas, esticou as pernas. Pensou um segundo e
retomou o raciocínio.
_A menina tem personalidade! Padre...- continuou rindo. _Ela é espirituosa. Essa menina deve ter um QI de 150. Tinha que ser minha
filha- gabou-se o pai enquanto mastigava.
Enquanto isso Maria Alice descia as escadas com pressa.
_Pai!
Se atirou do colo do pai e o abraçou com força.
_Pai, a mãe te falou que eu vou ser padre quando crescer?!
_Ah sim, falou. Tava falando agora. Tem certeza? É uma vida
que exige muita dedicação?
_Sei – respondeu a filha sem ligar pra ponderação do pai.
_ Você só tem nove anos, até lá dá pra pensar melhor, né.
Tem que estudar. Aí você vira o que você quiser.
_Tá bom, pai.
_Mas agora vamos jantar, minha filha, que por enquanto eu já
te mostro como é comer como um padre, tá certo?!
E foi a família pra mesa.
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