sábado, 10 de novembro de 2018

Conheço o meu lugar


Um mergulho em Belchior


"O que é que pode fazer um homem comum neste presente instante senão sangrar?" É com essa frase, forte e cortante, que Belchior inicia sua canção "Conheço o meu lugar". Uma música lindíssima. Tava com essa música na cabeça esses dias. Resolvi pesquisar pra ver se encontrava algo sobre ela. Encontrei pouca coisa. Imaginei que fosse achar muito mais. Porque é uma letra realmente muito rica.

Queria tecer algumas reflexões em cima, tendo em perspectiva a obra de Belchior como um todo. Mas bora voltar à letra.

Resultado de imagem para Belchior. imagensApós essa primeira frase, Belchior conclui o verso dizendo o seguinte: "Tentar inaugurar a vida comovida, inteiramente livre e triunfante". Puta que pariu! Que verso maravilhoso! E tem tudo a ver com o nosso tempo, período de turbulências, de crises de todo tipo. Essa música Belchior lançou num tempo em que a crise não era muito diferente. Gravou-a em 1979, 6 anos antes do fim da ditadura militar no Brasil.

Mais pra frente a gente vai ver que Belchior fará referências ao regime político de então.

Também hoje não há muito mais a fazer senão sangrar. Estamos diante de uma conjuntura de sangramentos. Socialmente falando, psicologicamente, filosoficamente. A contemporaneidade, o mundo do pós Guerra Fria, do neoliberalismo, das fraturas sociais, do fim das utopias, enfim, o mundo, tal como se encontra, só nos rende mais e mais sofrimentos. Sofrimentos existenciais, de crises de perspectiva, depressão, uma série de patologias do sofrimento subjetivo; isso tudo em estreita correlação com as crises sociais de uma sociedade de classes em frangalhos, em profunda crise, atolada num pântano de capitalismo financeirizado e moribundo. Motivos não faltam para sangrar. Somos uma sociedade dessangrada.

Mas o que podemos fazer? Belchior diz que "Tentar inaugurar a vida comovida". Aqui estamos diante de um tema muito recorrente em Belchior. Sua poesia é de uma sensibilidade ímpar, de chamamento à  ternura, de apelo ao humanismo. Belchior era um sujeito introspectivo, sensível. Muito inteligente, crítico, mas sempre com essa perspectiva altruísta. Defendia justamente isso, uma vida comovida, "inteiramente livre e triunfante". Aqui a filosofia política de Belchior. O cara era de esquerda mesmo, um libertário.

Belchior era um camarada idealista. Não filosoficamente falando, porque Belchior tinha um pensamento materialista, e isso  apesar dos laivos religiosos expressos ao longo de sua obra. Mas era um camarada de grandes ideais. E isso permeia sua obra.

Durante muito tempo foi tido como só mais um cantor romântico, porque de fato sua obra carrega esse traço de romantismo. Mas é muito mais que isso. A poesia de Belchior traz em si significados muito mais abrangentes, de engajamento político, de contestação da ordem e da cultura estabelecidas. Belchior critica a hipocrisia, a superficialidade, a perversidade, enfim, Belchior é defensor do homem novo, da revolução não apenas social, mas da abertura ao outro, da fraternidade universal.

                 Coisas do porão


Na segunda estrofe da canção Belchior fala da juventude. É uma estrofe bonita também, mas vamos à próxima, a terceira estrofe. A letra diz o seguinte: "O que é que eu posso fazer, um simples cantador das coisas do porão?" Aqui a referência à ditadura militar. Cantador das coisas do porão porque foi aos porões que a ditadura relegou uma geração de músicos, artistas, intelectuais e opositores do regime. Porão que também é referência aos "porões da ditadura", onde milhares foram submetidos à tortura. Foi em meio a esse contexto nebuloso que Belchior abandonou a faculdade de medicina pra se dedicar à música.

Em 1976 lançou o álbum Alucinação, sua obra prima, um LP repleto de clássicos, certamente uma pérola da música popular brasileira, apesar de ser um disco de arranjos simples, que foi lançado às pressas pela gravadora após o sucesso de músicas de Belchior na voz de Elis Regina.

               Botas de sangue


Na terceira estrofe Belchior faz outra referência à sublevação diante de um regime ditadorial. Belchior faz referência ao poeta Federico Garcia Lorca, executado a tiros por tropas franquistas na guerra civil espanhola. A música diz: "Botas de sangue nas roupas de Lorca", fazendo referência ao sangue do poeta, que morreu declamando seu último poema.

                                Olho de frente a cara do presente...

"Olho de frente a cara do presente e sei que vou ouvir a mesma história porca", continua a letra. A mesma história porca porque Belchior escreve essa letra, como já mencionamos, no ano de 79, ano da anistia. Belchior prenunciava que, assim como os assassinos de Lorca não foram penalizados por sua morte, assim também ficariam impunes os carrascos da ditadura brasileira. E de fato não houve responsabilização direta dos torturadores, bem como responsabilização por assassinatos, omissão de cadáveres, etc. Indenizações foram efetuadas, o estado brasileiro foi obrigado a reconhecer seus crimes, mas nenhum torturador foi levado à prisão.

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* A segunda parte da música será analisada num segundo artigo.

                           

3 comentários:

  1. Análise muito boa! Mas não se esqueça que as canções vão além das letras e seus possíveis significados! Abraço, meu amigo!

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  2. É triste essa dicotomia direita-esquerda, essa polarização em tudo. Além do mais, a afirmação de que Belquior era realmente de esquerda, um libertário. Na vida prática, isso é uma contradição. Mas a canção em si, é muito boa, assim como quase tudo que Belchior compôs.

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