quarta-feira, 2 de março de 2022

Brasilândia - São Bernardo

Um texto da série Crônicas da Vida Operária

                                

                                     ☆ 


Todo dia era a mesma coisa. Acordava antes das cinco. O pão dormido me aguardando na mesa pequena da cozinha. Os móveis apertados, espaço reduzido pra gente andar. Mas a casa era nossa, a gente construiu em esquema de mutirão. Era uma casa pequena, mas razoavelmente confortável. Uma casa bonitinha, quase uma casinha de boneca, as portas pequenas, um jardim florido na porta. A gente costumava fazer as refeições juntos sempre que possível. A Maria fazendo os nossos pratos, organizando a reza antes da comida. O café da manhã eu tomava meio corrido, sempre sozinho, ouvindo o canto dos galos na vizinhança, vendo a aurora em sua beleza pela janelinha da nossa cozinha. Eram muito bonitas as manhãs da Brasilândia. Lá de casa via as árvores da vizinhança que eram atravessadas pelas primeiras luzes do dia; belo contraste das folhas verdes com os feixes multicoloridos que vinham se consumar no terreno. 

Engolia rápido o café e corria pro ponto. Um abundante número de trabalhadores esperavam o seu transporte. O sono patente nos rostos, e a resignação de mais um dia na luta pela subsistência. Com sorte não esperava muito. Mas aí passava um tempão no coletivo. Isso era líquido e certo. Primeiro a Linha Brasilândia-Correio, saltava ali no ponto final e caminhava até o ônibus da empresa. De lá eu não caminhava mais, o ônibus deixava a gente já no pátio da firma. E eu ia pelo caminho observando a cidade pelo vidro, um vidro meio seboso, embaçado com a respiração da peãozada dentro, tudo fechado. Um frio de rachar lá fora, quase sempre garoa, neblina na Anchieta, chegando em São Bernardo. O ABC cheio de operários vindos de todos os lados. Os apitos das fábricas, aquela multidão batendo cartão nas máquinas barulhentas, puxando a alavanca de ferro pra prensar os cartõezinhos de papel cor de abóbora. Envergava meu macacão azul escuro e um boné com a bota que eu já vinha calçado de casa. Oito horas da manha as engrenagens já estavam à toda, as fábricas espirrando toneladas de fumaça nos ares, os operários disciplinados nas linhas de produção, os chiados de máquinas e ferramentas, eu pegando o torno do companheiro da madrugada. Dizia bom dia e o cara me respondia boa noite com um sorriso irônico, me dando palmadinhas nos ombros, caminhando alquebrado na direção do banheiro, com as mãos no bolso já manuseando o maço de cigarro. Eu prendia os olhos no torno e ali me alienava do mundo até a hora do almoço. Um protetor de vista, um protetor de ouvido. E ficava ali absorto no trabalho. Os pensamentos insistiam em ir distante. Mas isso envolvia riscos, e era necessário disciplinar a mente para que ela se resumisse ao que o corpo estava empregado, como numa meditação em que o camarada vai se desligando do mundo externo para se concentrar na essência do espírito. 

Na pausa principiava também pelo caminho do banheiro, o mesmo gesto dos dedos alcançando os cigarros, uma mijada relaxante, ouvindo a barulhada do pessoal, lendo as piadinhas que os mais malandros escreviam nos azulejos do mictório, a cabeça voltando pra terra.  Mãos lavadas, caminhava pro refeitório torcendo por um rango decente. Como eu trabalhava em multinacional, costumava comer coisa boa. Quase sempre os mesmos peões à mesa, nosso pequeno grupo de amigos do setor. As tias passavam recolhendo as bandejas e a gente já sacando o baralho pra uma breve jogatina de meia hora. Jogando a cigarro, que dinheiro era do nosso feitio não apostar. Tinha gente que atravessava o pátio e ia encarar uma caninha nos comércios; e tinha até quem encarasse jogar um pouco de bola. Sem medo de congestão, sem receio de encarar o sol do meio dia. Esses aí eram os mais malucos. Sabendo que até cinco, seis da tarde estaríamos a maioria em pé nas operações da fábrica, as pernas já doloridas, a coluna pedindo o arrego de um assento. E tinha o peso da refeição no estômago. Porque comida quando entra é bom, mas pede energia ao estômago pra processar e digerir aquilo.

Lá pelas duas e meia liberavam o cafezinho, desde que tomado rápido, sem enrolação. Alguns pegavam o copinho e iam pro banheiro, pra acompanhar um cigarro. E tinha sempre que ter um a mando do chefe pra esvaziar o banheiro e colocar a turma de volta aos postos de trabalho. O chefe marcando serrado, com um caderninho pra anotações que metia medo na peãozada. Dali era para o olho da rua, e pegar emprego certo seria difícil. Ninguém queria as fabriquetas. Era bom estar em empresa grande. E era de bom alvitre dar duro pra mostrar disposição, pra não figurar nas listas de corte quando a produção na empresa reduzia

No fim da tarde a longa viagem de volta, o mesmo esquema. Só que rezando pra encontrar lugar pra sentar no ônibus. Mal dava pra passar um tempo com as crianças, com a Maria, na frente da tv preto e branca, nas novelas. Tinha que deitar pra dormir porque a gente tinha que trabalhar. A gente vivia em função de trabalhar, pra colocar comida na mesa. E vivia em função de trabalhar e de esperar o fim de semana. O fim de semana era a redenção. Metíamos a família no carro e íamos pra algum parque público, comer pipoca, tomar sorvete. Eu lá pra aguentar a Maria pendurada no meu pescoço, 24 horas por dia me pedindo atenção. Brincava com as crianças nos gramados, cansava e voltava pra Maria, ela me puxava para si, a me alisar os cabelos e o rosto, abaixando minha camisa pra me espremer os cravos das costas. Tinha que ter esperteza pra olhar as moças bonitas, que a Maria marcava em cima também, tão austera quanto feitor de fábrica do ABC.

E a Maria era bonita. Pegou um pouco de barriga depois das crianças, os seios já não eram tão firmes, não tinham o encanto dos primeiros meses do namoro. Mas era uma mulher admirável a Maria. Carente, ciumenta, mas muito ciosa das coisas da casa, excelente mãe, pessoa responsável e de confiança. 

Conheci a Maria numa festa na casa do Ribamar e da Selma. Eu recém chegado em São Paulo, me enturmando ainda com o pessoal, rapaz meio intimidado com a fúria do meio urbano. Era se não me engano um domingo. Almoço com churrasco na casa do Ribamar. Ribamar era um alemãozão de olhos brilhantes, encarregado do nosso setor na fábrica. Morava num sobradinho bem arranjado, num bairro tranquilo, tinha uma vista boa do bairro, situado num lugar alto. A casa repleta de gente da firma, as crianças no quintal da frente, os homens caminhando entre as salas, o jardim; as mulheres subindo e descendo as escadas, curiando a casa da Selma, ou na cozinha, em torno do fogão, arrumando as coisas da festa na mesa, organizando pro pessoal comer. O Ribamar nas carnes, operando com habilidade as grelhas. No toca disco rodava um LP do Raul Seixas quando tive a primeira conversa com a Maria. Ela muito arrumadinha num vestido verde com detalhes coloridos, cheirosa, com seus olhos grandes, expressivos. Era uma das moças mais atraentes, quase da minha altura. Reparei que ela me olhava furtivamente. Me aproximei em poucos minutos, puxei conversa, tomando coragem. Tentava arrumar assunto, falar de mim, que era novato ali, que tinha saudades de algumas coisas deixadas pra trás, que me assustava com a loucura no centro da cidade, essas coisas. Deu certo. Acabou o Raul Seixas e colocaram um disco horroroso do Roberto Carlos. E o papo foi ganhando novos temas; afinidades surgiam. Vinham as mulheres com as bandejas de salgadinhos e carnes, a cerveja, o refrigerante. Foi caindo a tarde e chamaram o parabéns. Um bolo quase do tamanho da mesa. O pessoal apagou as luzes. "Parabéns pra você, é hora, é hora. Rá tim bum! Um alvoroço. A selma apagando as velinhas... E a Maria me olhou. Olhei de volta, sorrimos. Saí de lá planejando casamento. 


                                     ☆


A gente cresceu na Brasilândia. Década de 80. Bons tempos, apesar das agruras da periferia. Mas a gente nem era tão pobre assim. Não pagávamos aluguel, andávamos de carro. Um carrinho popular, meio batido, mas que nos servia bem, nos levava ao clube e aos passeios que a mãe sempre fazia questão de organizar. A mãe era ótima, uma típica dona de casa da periferia. Dona Maria era porreta, no dizer do povo do pai. O pai que era meio bruto às vezes, teve um tempo que deu pra beber. A gente tinha dificuldade com ele. Era um cara muito metido na política, trabalhava duro. Eu entendo que ele veio de outra realidade, que teve que comer o pão que o diabo amassou, que veio de outra cultura, e que é natural haver um certo embate entre as gerações. É verdade...procuro não julgar. Procuro compreender.

A vida na Brasilândia era boa pra criançada. Naquele tempo quase não tinha prédios. Eram ruas de casa, ou as favelas. E a gente podia brincar pro lado de fora do portão, chutar bola no asfalto até esfolar o dedo ou correr na rua até a mãe mandar entrar e tomar banho. Não podia ir pra favela. Ordens expressas de dona Maria. Na favela às vezes tinha tiro, e tinha o preconceito. Favela não podia. A gente observava de longe os morros, os barracos de tábua, a iluminação precária nos gatos que se entrecruzavam em indiscerníveis emaranhados. A imaginação da gente que era criança ia longe, pressupondo como seria a vida daquele povo, tentando visualizar suas casinhas por dentro. Havia um contato na escola. Os amiguinhos da favela muito pobrezinhos. Tinha uma diferença grande entre as condições das famílias, muito embora as famílias todas fossem no máximo de operários. A coisa mais difícil era encontrar gente com dinheiro na Brasilândia. Gente com dinheiro se via a alguns quilômetros dali, a medida que se aproximavam os bairros mais centrais.

Ali onde a gente morava ainda tinha resquícios de mato, a urbanização incipiente. Muitas famílias tinham galinheiro, algumas tinham cavalos em casa. Cavalos dos mais pangarés, naturalmente. No terreno ao lado de casa tinha um burrico que passava os dias a comer capim e olhar entediado pra quem passava na calçada. Muito bonitinho de longe. O burro era brabo. Uma vez, isso era comecinho da década de 90 já, esse burro quase arrancou a mão de uma namoradinha minha. Tava velhinho já, consideravelmente mais ranzinza e antissocial. Era meio acizentado esse bicho. Não lembro se tinha nome, infelizmente não lembro.

Aí na década de 90 fui trabalhar. Minha mãe em casa cuidando da minha irmã. Minha irmã, veja só, é a única pessoa que eu conheço que tem rinite, sinusite, bronquite e asma. Tudo junto. Campeã das doenças. Eu e o pai trabalhando. Não mudava muita coisa. Meu salário minguado no primeiro emprego de office-boy era todo meu, não tinha necessidade de ajudar em casa. Gastava com as coisas da rua. Mulher, cachaça, farra aqui e acolá. Acabava logo o dinheiro. Uma merda ser office-boy. O interessante era conhecer a cidade. Mas tinha hora que não tinha mais o que se conhecer também. Meu sonho mais imediato era ter o famigerado nokia tijolão. Um celular que todo mundo andava, um trambolho. Os cafonas andavam com aquela merda pendurada pro lado de fora da calça. Aí dava até gosto quando os trombadinhas passavam a milhão e levavam. Isso aí foi quase na mesma época do bipe, um aparelhinho que se usava pra encaminhar mensagens de texto. O negócio era tão primário que a gente tinha que ligar pra uma central de atendimento e ditar o texto pra telefonista. Acho que foi nessa que começaram os call-centers.

Enfim, tinha umas coisas curiosas naquele tempo. É mais ou menos disso que eu me lembro do tempo da Brasilândia. 


                                    ☆


Minha família veio do Paraná na década de 60. Filhos de alemães. Eu era muito criança quando viemos. Não lembro do Paraná daquele tempo. Voltei depois de mais velha, isso por muitas vezes. Minha família se instalou no extremo da zona norte em São Paulo, num terreno que o meu pai negociou com o dinheiro de uma terra que vendeu no Paraná. Depois moramos em Santo André, Diadema, São Bernardo. Mas voltei pra zona norte. Construímos lá eu e o Alcino. A turma ajudando e meu pai dando muitas coisas, além do principal que era o terreno. 

"Mas, pai, o Alcino ainda trabalha no ABC. Vai morar a duas horas de distância? Vai dar certo?"

E o velho me tranquilizava, dizendo que tinha ônibus da firma, que a gente ia economizar com aluguel, e tal e tal. Topamos. Eu trabalhava no bairro em meio período. Tinha uma creche da prefeitura que os meninos frequentavam. O Alcino saía cedo e voltava tarde, era difícil; não vou dizer que eu gostava. E era o que a gente tinha de melhor. O salário do Alcino era bom. Não faltava nada em casa, pelo contrário. Isso me dava tranquilidade pra olhar os meninos: o Wesley e a Mônica. A Mônica veio de sete meses, fraquinha. Vivia tendo febre, com peito chiando, doenças frequentes. Muito magrinha, não ganhava peso. A gente tinha que ficar de olho. Era sempre uma bateria de exames a se fazer, médicos a consultar. Minha mãe ajudava, a gente levava ela nas benzedeiras. Depois ela cresceu bem. Não cresceu muito, que a Mônica é tipo mulher baixinha. Tem uns 15 ou 20 centímetros a menos que eu. O Wesley cresceu bastante. Teve uma época que espichou e tinha jeito pra ser atleta, desses esportes que os altos se dão bem. Mas virou professor. A Mônica, jornalista. 

E aí arranjam namoro, noivado. Ficam grandes e vão pra longe, o Wesley com a esquisita da Fernanda, a Mônica sim com um rapaz bom, que o meu genro César é médico e ganha muito bem, obrigada. Dá uma vida muito tranquila pra Mônica. Isso me deixa tranquila. Quando a idade chega é bom não precisar ter preocupação, saber que as coisas estão arranjadas, que nada vai faltar.

Eu aqui com o Alcino vivo de passado. O homem só sabe falar de coisas de 30, 40 anos atrás. Fala das greves, fala que lembra do Lula na Vila Euclides, tal, tal, tal. Conta sempre a mesma história. Eu escuto e quase não reclamo. A gente parece mãe e filho às vezes. Ele contando histórias fantásticas, eu ouvindo e cuidando dele.

"Alcino, vem almoçar. Alcino, bebe água, amor. Alcino, o remedinho da pressão. Vamos!" E o Alcino obedece. O pessoal fala que a mulherada manda. Aqui em casa eu mando mesmo. E a gente tem uma vida gostosa. 

Ah, eu conheci o Alcino no ABC. Era operária. Trabalhava em montadora. E eu era das boas. Tinha muito operário bronco, eu botava eles pra trabalhar.  Protegia dos patrões quando precisava. Passava um pano porque quase todos tinham família pra sustentar. Mas exigia sempre que prestassem um bom serviço. A gente tinha que fazer bem a nossa parte, né.

Mais tarde eu preferi rescindir o contrato. Trabalhar em empresas menores, trabalhar menos, pra engravidar e pra ajudar a cuidar do meu pai. Sim o velho ficou doente mais ou menos na época que nasceram o Wesley e a Mônica. Os meninos não lembram do avô. 

Mas o ABC era bom. Fiz faculdade. Só tinha eu de moça na sala. A gente entrava às 19h pra sair às 23h. Cansativo demais, de dia a jornada na fábrica. Fiz faculdade de letras. E eu era muito paquerada naquele tempo. Mas era exigente. O Alcino eu achei muito bonitão. Tinha mãos bonitas, um caimento diferente no cabelo. Não sei, é difícil falar. O Alcino era o marido que eu pedi a Deus. Eu que apresentei o ABC a ele. A gente subia e descia aquela rua da matriz, tomando sorvete, apostando pra ver quem comia mais paçoquinha. Passeios nos parques aos fins de semana, nos teatros, nos cinemas, nas exposições. O Alcino muito inteligente, mas me dava oportunidade de falar dos clássicos pra ele, de ciceroniar nos museus que eu conhecia bem. Curiosamente não o conheci nos corredores da faculdade, mas na montadora. 

O Wesley e a Mônica puxaram pro pai. Pessoas práticas, mas com o coração sintonizado em grandes ideais. Até que foi boa a vida. Não posso reclamar.






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