domingo, 14 de abril de 2024

Nós e o Marxismo

Uma resenha crítica dos escritos de Florestan 


"Nós e o Marxismo" é uma importante obra do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes. Livro pequeno, de síntese, Nós e o Marxismo explora e debate as ideias do marxismo e sua relevância para a compreensão e transformação da sociedade. Florestan discute a aplicação do programa do marxismo como possibilidade real e científica para a transição ao socialismo. Em outras obras ele fala mais sobre a perspectiva  revolucionária para a realidade brasileira, abordando questões prementes da situação nacional, sempre abordando questões como desigualdade social, estratificação e luta de classes.

Florestan analisa (como intelectual orgânico, ou seja, militante político) de forma crítica as contradições e desafios do marxismo em relação à prática política e social. Sua obra é uma contribuição significativa para o entendimento do pensamento marxista e suas implicações na sociedade.

Em "Nós e o Marxismo", especificamente, Florestan Fernandes explora conceitos-chave do marxismo como alienação e objetificação do trabalhador, em relação à realidade vivida pela classe laboral em sua relação com o trabalho, com a ideologia e com os aparelhos ideológicos de estado.  Florestan nesta obra não usa o termo althusseriano de "aparelhos ideológicos de estado. Colocamos aqui porque entendemos que o conceito expressa bem o conjunto da questão ideológica no âmbito da discussão marxiana.

A alienação, por exemplo, conforme discutida por Marx, refere-se à perda da capacidade de os indivíduos se identificarem com o processo de trabalho e, por extensão, com os produtos do seu trabalho. Isso ocorre devido à separação entre os trabalhadores e os meios de produção, devido à separação da função do trabalhador em uma ponta da produção em relação ao conjunto completo da produção. O que leva a uma sensação de desvinculação e falta de controle sobre suas vidas.

Quanto à objetificação da pessoa, relaciona-se à transformação dos indivíduos em meros objetos dentro do sistema capitalista, onde são tratados como recursos descartáveis ou mercadorias, em vez de serem reconhecidos como seres humanos completos, capazes de dominar todo o processo produtivo. 

Florestan explora como esses conceitos se manifestam na sociedade, especialmente no contexto das relações de trabalho e das estruturas de poder. Busca demonstrar como o marxismo pode oferecer compreensões importantes para enfrentar as formas de alienação e a exploração do homem pelo homem.

Neste sentido, cumpre apontar que o conceito chave do texto é luta de classes, um conceito central para o marxismo e que descreve o conflito entre os diferentes grupos sociais, especialmente entre a classe trabalhadora (proletariado) e a classe proprietária dos meios de produção (burguesia). De acordo com Marx, a história das sociedades humanas é caracterizada por essa luta constante, na qual os interesses e objetivos desses grupos frequentemente entram em conflito.

Marx argumentava que a exploração econômica e a desigualdade social eram inerentes ao sistema capitalista, onde os trabalhadores vendem sua força de trabalho aos donos dos meios de produção em troca de salários, enquanto estes últimos obtêm lucro através da mais-valia, ou seja, da diferença entre o valor criado pelo trabalho dos operários e o salário pago a eles.

A luta de classes, segundo Marx, era impulsionada pela busca do proletariado por emancipação e igualdade, visando à superação das condições opressivas e desiguais impostas pelo sistema capitalista. Marx via nessa luta a força motriz para a transformação da sociedade rumo a um sistema mais justo e igualitário.

Essa visão da luta de classes influenciou significativamente o pensamento social e político ao longo do tempo, sendo um conceito fundamental no entendimento das dinâmicas sociais e das mudanças históricas propostas pelo conjunto do movimento operário, que é o grupo social que mais tem interesse na emancipação humana. 

Engels, na obra "Do socialismo utópico ao socialismo científico", traça a evolução do pensamento socialista desde suas origens utópicas até o surgimento de uma abordagem mais científica e materialista, conforme desenvolvida por Marx e ele próprio.

Esta obra de Engels talvez seja o texto mais clássico sobre a questão do marxismo como ferramenta de luta dos trabalhadores, à medida em que a evolução do socialismo caminha por um entendimento sociólogico sobremaneira científico, e se estabelece como ideologia crítica às correntes utópicas do socialismo idealista, que idealizava a sociedade perfeita e buscava reformas baseadas em concepções abstratas, sem considerar as condições materiais e econômicas reais. 

Em sua obra, Engels argumenta que o socialismo científico, baseado nas análises de Marx, representa uma compreensão mais profunda das leis que regem o desenvolvimento histórico e das contradições inerentes ao sistema capitalista, e destaca a importância da abordagem materialista e dialética do socialismo, que busca compreender as relações de produção, a luta de classes e a dinâmica histórica como elementos fundamentais para a transformação revolucionária da sociedade. 

Marx e Engels, de posse de uma  apreensão crítica da filosofia hegeliana, apontam para o materialismo histórico e dialético. Esta é a escola de Florestan; é disso que Florestan fala quando aponta para questões concretas, e para a ação concreta da organização política do proletariado.

No marxismo, a abordagem do concreto como a síntese de múltiplas determinações da realidade é fundamental para a compreensão da realidade. De acordo com Marx, o concreto não é apenas a soma mecânica de partes separadas, mas sim a resultante de um processo complexo de interconexões e relações entre estas partes.

Na dialética marxista, a síntese do concreto surge da compreensão das contradições e das interações dinâmicas entre os diversos elementos que compõem uma situação ou fenômeno. Marx enfatiza que o concreto é o resultado da unidade e luta dos opostos, onde as contradições internas e as tensões dialéticas são essenciais para a compreensão da realidade em sua totalidade.

Essa abordagem dialética busca captar a dinâmica e o movimento inerente aos processos sociais, econômicos e históricos, reconhecendo que as situações e fenômenos estão em constante transformação. Portanto, a síntese do concreto na dialética marxista implica uma compreensão profunda das relações sociais, das forças em conflito, das classes sociais em disputa e das contradições subjacentes que moldam a realidade.

Tanto na obra de Florestan Fernandes quanto no marxismo, a revolução social desempenha um papel central nesta transformação das estruturas sociais e na busca por uma sociedade diferente da anterior.

Florestan, intelectual de primeira qualidade, mas também militante socialista, defendia a necessidade da revolução social (em seu caso a revolução operária) como um instrumento de superação do modo de reprodução social. A revolução operária varreria as desigualdades e injustiças presentes na sociedade capitalista. 

Em suas análises, Florestan destacava a importância da mobilização e da conscientização (de "classe em si" para "classe para si", como no jargão de Marx) da classe trabalhadora para a conquista de seus direitos e para a transformação radical das estruturas sociais opressivas. O marxismo é isso, quando a revolução social é concebida como o momento em que a classe trabalhadora, consciente de suas condições e interesses, se organiza para derrubar as relações de produção capitalistas e estabelecer um novo modo de organização social. Marx via a revolução como o ápice da luta de classes, onde as contradições do sistema capitalista atingiriam seu ponto máximo e a classe trabalhadora tomaria o controle dos meios de produção.

A revolução social representa, portanto, um processo de ruptura com as estruturas opressivas e exploradoras, visando a construção de uma sociedade pós capitalista, onde a evolução dos acontecimentos rumaria a reprodução social para um modelo livre do capital, e por conseguinte, da exploração.

Em sua época, 40 anos atrás, Florestan via no socialismo da União Soviética uma possibilidade real de transição. A queda do muro de Berlim e o fim da URSS representaram o regresso dos sonhos operários a uma fase anterior. Mais à frente falaremos disso.

Cumpre pontuar outra preocupação de Florestan na famosa brochura em questão, a questão da contrarrevolução. Tanto Florestan quanto Marx abordaram a questão da contrarrevolução social em seus escritos, embora em contextos e perspectivas diferentes. Florestan, em suas análises sobre a sociedade brasileira, destacou a presença de forças conservadoras que se opunham às transformações sociais e à emancipação da classe trabalhadora. Ele identificou a existência de uma elite dominante (as burguesias) que buscava preservar seus privilégios e impedir a mobilização e a conscientização das classes populares. Essa elite, segundo Florestan, atuava como uma força de contrarrevolução social, utilizando mecanismos de controle e repressão para manter a ordem vigente e impedir mudanças estruturais significativas. 

Para o operariado seria de se pensar uma aliança política com a burguesia nacional, por exemplo, para a libertação do imperialismo e para criar um caminho de desenvolvimento próprio. Mas a burguesia nacional nunca teve esse interesse. Isso será objeto de reflexão em suas obras. Outros intelectuais, com destaque para Caio Prado Júnior, também levantaram essa questão. Mas este debate iria longe demais caso quiséssemos aprofundar.

Para Marx, a contrarrevolução social era representada principalmente pelas forças do capitalismo que buscavam preservar as relações de produção baseadas na exploração da classe trabalhadora. Ele identificava o Estado como um instrumento de dominação da classe dominante, capaz de reprimir levantes populares e preservar a ordem estabelecida em favor dos interesses burgueses.

De Marx para cá, as burguesias aprimoraram de diversas formas o controle do aparelho estatal.

Em suma, em ambas as perspectivas, de Florestan e de Marx, a contrarrevolução social representa as forças que se opõem à emancipação e à transformação revolucionária da sociedade. Tanto Florestan quanto Marx reconheciam a existência de obstáculos significativos para a realização de mudanças profundas nas estruturas sociais, destacando a resistência das classes dominantes e das instituições estabelecidas.

Em diversas de suas obras, Florestan abordou a questão dos mecanismos utilizados pela burguesia para retardar ou impedir a tomada do poder pelo proletariado e para manter sua dominação de classe. Em "A Revolução Burguesa no Brasil", por exemplo, Florestan analisa como a classe dominante, representada pela burguesia, desenvolve estratégias de controle e perpetuação de seu poder, destaca que a burguesia, detentora dos meios de produção e do poder econômico, utiliza uma variedade de mecanismos para preservar seus interesses e impedir a ascensão do proletariado. Entre esses mecanismos estão a manipulação ideológica por meio da educação e da mídia, a cooptação de lideranças populares, a repressão policial e o uso do estado como instrumento de preservação da ordem vigente.

Essas estratégias visam desarticular movimentos sociais e sindicais, desmobilizar a classe trabalhadora e impedir a conscientização das massas sobre suas condições de exploração. Florestan ressalta que tais mecanismos contribuem para a manutenção da desigualdade social e para o retardamento das transformações estruturais necessárias para uma sociedade mais justa.

Com efeito, o fim da URSS foi um duro golpe contra a classe trabalhadora mundial. Embora o gigante soviético já estivesse em seus estertores enquanto Florestan escrevia as páginas do artigo em análise, havia no socialismo real a objetivação de algo que (embora precisasse de uma revolução social interna à revolução social) se podia chamar de socialismo, de experiência de transição ao socialismo, e que jogava peso extraordinário no movimento operário internacional.

István Mészáros em suas análises abordou a situação do movimento operário após o declínio e dissolução da União Soviética sob uma perspectiva crítica e atenta às transformações estruturais no contexto global.

Segundo Mészáros, a dissolução da União Soviética teve impactos significativos sobre o movimento operário em escala mundial. A perda da influência política e ideológica do bloco soviético alterou as dinâmicas das lutas de classes e reconfigurou as relações de poder no cenário internacional. Após esse período, o movimento operário enfrentou desafios profundos em sua organização e capacidade de resistência, porque, diante do colapso do socialismo real, as forças do capitalismo se fortaleceram e intensificaram sua ofensiva contra os direitos trabalhistas, os sindicatos e as conquistas sociais historicamente associadas ao movimento operário. A emergência de uma lógica neoliberal que buscou desmantelar as proteções sociais e enfraquecer a capacidade de mobilização dos trabalhadores, a fragmentação e a precarização do trabalho, impulsionadas pela globalização econômica, representaram novos desafios para o movimento operário. A expansão das relações de produção capitalistas em escala global reconfigurou as condições de trabalho, tornando mais complexa a organização e a solidariedade entre os trabalhadores.

Nesse contexto Mészáros enfatiza a necessidade de repensar as estratégias e formas de organização do movimento operário diante das novas condições impostas pelo capitalismo globalizado. Ele destaca a importância da unidade e da resistência coletiva dos trabalhadores em face das transformações estruturais e das investidas do capital contra seus direitos e condições de vida. São considerações que Florestan certamente apontaria caso tivesse vivido para assistir às transformações com o fim da URSS e com o estabelecimento do capitalismo neoliberal.

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