segunda-feira, 1 de julho de 2024

O cara que morava no cemitério

 

Por algum acaso, você já conheceu alguém que mora no cemitério? Eu conheci. Meu amigo Raul. O Raul faleceu esse ano. Tava me lembrando dele ontem quando recebi em um dos meus grupos de whatsapp uma reportagem sobre pessoas que moram em cemitérios. O Raul morava no cemitério do Araçá. Pra quem não conhece, é um antigo e bonito cemitério na região da Avenida Paulista, em São Paulo.

Conheci ele na gloriosa rua Augusta. Um amigo em comum me apontou o Raul e disse: Sabia que esse cara mora no cemitério?

Falei com o Raul depois e ele confirmou a história. O Raul morou lá 20 anos. Como eu disse, faleceu esse ano. 

A casa do Raul consistia em 4 ou 5 capelas do cemitério. Capelas são túmulos grandes, com aqueles espaços exíguos entre as colunas de concreto onde ficam as gavetas, em que se depositam os caixões. O Raul conhecia as famílias donas das capelas e ficava com uma chave. As famílias confiavam as chaves porque o Raul se comprometia a manter tudo em ordem. Cada uma das capelas servia como um recinto de uma casa. Tinha a capela-cozinha, a capela-quarto de dormir, a capela banheiro. Tinha a capela certa pra levar mulheres, outra capela que ele usava pra depósito das coisas do trabalho. Enfim, o Raul se virava lá.

Ele tinha amizade com o pessoal da administração, então ele circulava lá entre os trabalhadores e podia tomar cafezinho e pegar água gelada no escritório. Os caras confiavam nele e pediam favores, como pagamentos no banco ou na lotérica, porque o Raul era idoso e  pegava fila preferencial. O Raul tinha um gato também. Era a casa dele lá. O problema é que de noite ele tinha que pular a grade do cemitério pra entrar em casa. Eu tô falando isso porque fui lá visitar ele. Era impressionante. Saí de lá realmente muito impressionado.

Ele me disse que vivia bem, que os vizinhos não reclamavam do barulho e que também tinha se acostumado a viver rodeado de muitas baratas. Cemitério é lugar de muitos insetos, sobretudo baratas. Vi em algum lugar, não me lembro onde, que as baratas ajudam a comer os tecidos dos cadáveres em seu processo de decomposição. Não sei se é verdade. Vou pesquisar no Google qualquer hora dessas.

O Raul era meio estranho, bebia, era muito doido, mas era boa pessoa quando tava sóbrio e de bom humor. Ele tocava trombone mas não lia partitura. Dizia que gostava de praticar seu instrumento nas madrugadas do cemitério. Tinha cabelos lisos e muito pretos (apesar da idade) caindo quase pelos ombros, um nariz grande e uma feição meio de índio, na pele queimada de sol. Ele era gaúcho, torcia pro Inter, tinha filhos e tinha também boas histórias que não posso saber da veracidade. Era um desses personagens inusitados que mereceriam um filme, sei lá, pelo menos uma boa reportagem de revista ou televisão. Pelo que soube, morreu no anonimato mesmo.

Ele havia me dito que muita gente propunha fazer matérias sobre sua situação. Ele nunca quis. No fim da vida o Raul chegou a passar algumas breves temporadas fora dos muros do Araçá, por circunstâncias da vida, como da vez em que foi atropelado e passou alguns meses em uma cadeira de roda. Nessa ocasião o Raul ficou hospedado num asilo da prefeitura. 

Ele sempre se queixava das novas administrações do cemitério, de quando aparecia algum diretor querendo tirá-lo de lá. Isso o angustiava.

Mas também tinha os momentos adversos que o Raul transformava em histórias engraçadas. Disse ele que uma vez, na madrugada, viu uma viatura de polícia vindo numa das ruazinhas do cemitério. Ele saiu do meio dos túmulos e acenou pros guardas, pensando que eram amigos. Aconteceu que era uma equipe nova e o Raul tomou um enquadro, teve que ficar lá se explicando pros caras. Ele contava essas histórias e a gente caía na gargalhada.

A gente tinha um grupo de amigos. Um deles ajudou muito o Raul, com comida e algum dinheiro. 

Eu sempre quis trazer essa história pro blog. Trago agora que o Raul já é finado. Espero que do além ele não se importe de eu estar contando sua história. 

Que Deus o tenha, Raul, figura excêntrica.  Soube de sua morte no mesmo dia que soube da morte de um outro conhecido nosso que também morava num lugar, digamos, inadequado. Esse camarada morava num centro acadêmico dentro da USP. 

Não me oponho que o universo continue a me apresentar essas figuras das ruas, figuras desviantes, outsiders do sistema, andarilhos, malucos-belezas, etc. A gente faz amizade, não tem problema!




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