Resenha do lendário texto de Sérgio Buarque
O brasileiro, segundo Sérgio Buarque de Holanda, é o homem
cordial, não tanto no sentido de cordialidade como sinônimo de afabilidade,
polidez, mas pelo sentido etimológico do termo, oriundo de coração. O brasileiro é o tipo de pessoa que se guia mais
pelo coração que pela razão, mais pela amizade e pela intimidade, que pela
impessoalidade e horizontalidade republicana.
Obviamente que isso configura um desvio de caráter de sérias conseqüências no trato da coisa pública, que mormente implica em relações
sociais balizadas por sentimentos de familiaridade, em detrimento do que
Holanda entende ser o correto, a saber, a impessoalidade mesma, o ideal de uma
sociedade regida por relações horizontalizadas de respeito à vontade geral dos
cidadãos, justa, com iguais condições para todos.
No Brasil, as coisas naro funcionam com a seriedade esperada
de uma nação civilizada nos padrões clássicos, a exemplo do mito grego de
Creonte, que encarnava a noção abstrata e impessoal de cidade.
O brasileiro tem um vicio peculiar, uma característica
degradante que o faz se aproximar com interesse dos seus concidadãos e
tratá -los com intimidade, para, assim, obter favores e benesses.
Muito disso guarda origem na questão da educação, por muito
tempo confiada às famílias, ao invés de ser competência do estado, o que,
segundo Hollanda, acostumou mal a maioria dos filhos de muitas das mais influentes
famílias do país.
O movimento de envio dos filhos para os grandes centros
urbanos, com o intuito de confiá-los às universidades, especialmente na função
de bacharéis em direito, dinamiza ainda mais a discussão em torno da questão da
educação.
Hollanda afirma que os rapazes, ao saírem de casa para se
instalar longe das famílias, se portavam com grande dificuldade, apresentando
características de infantilidade, de verdadeiro despreparo para lidarem
sozinhos com os desafios habituais da vida.
Logo, a educação confiada ao estado, desde cedo, ajudaria não só na unificação de um currículo prévio para o ingresso nos bancos de
universidade, como também na formação de homens forjados no convívio comum, na
sociabilidade que os jovens não podem encontrar no âmbito exclusivo da família,
que em muitos casos impede o pleno
desenvolvimento de seus filhos.
Hollanda então defende teses de pensadores contemporâneos,
sobretudo das áreas de pedagogia e psicologia, enfatizando que a educação deve
ter por finalidade estimular as crianças
no reconhecimento de foyrmulas razoáveis, para superar os erros dos pais ao
passo que criam suas próprias individualidades, se adequando às necessidades de
iniciativa pessoal e concorrência honesta entre cidadãos.
Todos esses argumentos traçam a necessidade de uma educação
vocacionada a distinguir o público do privado. O grande mal do brasileiro seria se
apropriar do público como se este fosse privado. Por isso a necessidade de uma
educação que delineie muito bem a zona limítrofe de ambos.
Como a definição de Weber, que separa o funcionário
patrimonial do puro burocrata, distinguindo com firmeza o sujeito que apropria-se
do cargo para beneficiar-se, do funcionário objetivo, especializado. Existe a
necessidade de imprimir a característica de um estado com cargos lotados por
ordenação impessoal.
Tal estrutura administrativa, com predomínio de um corpo de
funcionários dedicados a interesses objetivos e coletivos, nunca houve no
Brasil. Ao contrário, o que sempre predominou foi o aparelhamento do sistema
administrativo do Estado, em círculos
particulares, com especial destaque para as associações familiares.
No homem cordial, como bem salienta Hollanda, a vida em
sociedade é uma libertação para as exigências individuais, para o fracasso
particular. O homem cordial busca na alteridade aquilo que não é capaz de
conseguir por seus próprios méritos. Trata-se de uma fuga, de um apoiar-se em
uma estrutura externa a si próprio, um acomodar-se.
Por isso o jeito expansivo de ser do brasileiro, a tendência
a abolir formalismos e imprimir intimidade, por interesses, afagando o ego de
outrem na tentativa de conquistar seu coração, seu afeto, para, em
contrapartida, beneficiar-se com a reciprocidade alheia.
Não há esforço individual aqui, boa vontade ou espírito
ético e equânime, mas sim arcos de alianças interesseiras e superficiais, ao
passo que a cordialidade e o sentimento do coração não passam de formas ocas de
sentido, de interesses mesquinhos e imediatos.
Todos esses hábitos, arraigados na cultura do brasileiro,
trariam dificuldades ao espírito provido de raciocínio abstrato. O convívio
ditado por éticas de fundo emotivo é o que há de mais característico no
brasileiro.
Mesmo na religiosidade do povo é possível perceber essa
inclinação para a familiaridade, como que para conquistar a simpatia dos santos
de devoção e assim alcançar graças suplicadas.
O brasileiro tende, no seu excesso de intimidade, a até mesmo suprimir a hierarquia habitual entre o elemento humano e divino, carnal e
espiritual, o que configura uma característica ímpar, em contraposição ao modo
palaciano como os portugueses reverenciavam suas entidades, por exemplo.
O basileiro não se apega ao ritual, pelo contrário,
afrouxa-o, o que parece, aos olhos dos mais criteriosos, quase que uma falta de
respeito; certamente, uma falta de zelo. Importante observar que o modo de se
portar do brasileiro seja tão característico, tão arraigado, ao ponto de tomar
corpo uma micro-querela religiosa, uma discussão em torno do modo adequado ou não de portar-se perante o divino, de exercer a espiritualidade.
Em contraposição aos rigorismos do calvinismo inglês, do
palacianismo português, o homem cordial, aos modos típicos dos trópicos, exibe
um modo de ser que flexibiliza até mesmo a piedade religiosa. A inclinação do
brasileiro às festividades, às devoções populares de cunho mais supersticioso,
todos esses elementos culturais traduzem bem o tipo brasileiro; são expressão
genuína de um modo de ser e viver que subestima a racionalidade, em benefício da interioridade e do subjetivo, o que parece ser prova inconteste da personalidade
indisciplinada e inveterada do brasileiro.
Nossa visão de Brasil
Este capítulo específico de Raízes do Brasil faz uma análise sem dúvida interessante sobre determinada peculiaridade da psicologia do brasileiro e de sua forma de interação social e mesmo política; mas é uma análise subjetiva. Não que seja inválida para pensar o Brasil e o brasileiro, tem sua importância e pertinência, mas escapa de uma análise mais objetiva, das condições materiais, etc. Nossa visão, em contrapartida, parte dos pressupostos do materialismo dialético, do marxismo.
Outros autores tidos como intérpretes do Brasil partiram de uma análise marxista, que, embora controversas entre si, detém metodologia que se pretende marxista. É o caso de Werneck Sodré e Caio Prado Júnior, por exemplo. Deste último temos muitas convergências, principalmente na análise das classes sociais na sociedade brasileira e na caracterização do operariado como sujeito social da revolução brasileira.
A grande obra de Caio Prado, A Revolução Brasileira, data do ano de 1966, época em que o autor já havia amadurecido sua polêmica com a cúpula dirigente do PCB, que por sua vez defendia a tese soviética de aliança com as burguesias nacionais para alavancar revoluções democrático-burguesas. Os dirigentes do Partidão alegavam que no Brasil havia traços de feudalismo que só haveriam de ser superados em uma etapa burguesa da revolução, onde os operários e seu partido deveriam se aliançar a uma burguesia nacionalista e desenvolvimentista. Caio Prado Júnior acertadamente pontuou que não havia feudalismo no Brasil, mas um capitalismo surgido imediatamente do escravismo; que não havia campesinato, mas um proletariado do campo, cuja luta não era a posse da terra, e sim uma política de reivindicações salariais e trabalhistas. E tampouco havia uma burguesia nacional na qual os setores populares poderiam depositar a confiança de liderar o processo revolucionário.
A burguesia nacional sempre foi tacanha e subserviente ao imperialismo. A tarefa colocada é a revolução socialista tocada por operariado da cidade e do campo.
Hoje, conforme se pode ver por pesquisas, a classe trabalhadora da cidade é a esmagadora maioria da classe trabalhadora. O êxodo rural e a mecanização do campo, que caminham em estreita correlação, conformaram uma sociedade urbana. Há o elemento da desindustrialização, que é determinante no desenvolvimento nacional, mas que no limite não altera a estrutura da luta de classes. Há burguesia e classe trabalhadora; este é o eixo da economia, independente da classe trabalhadora ser formada por maioria de operários de fábrica, por exemplo, ou estar majoritariamente alocada no setor de serviços, como é o caso atualmente.
O sujeito revolucionário por excelência é o trabalhador, e este deve ser dirigido por um partido revolucionário marxista. Assim, independente das particularidades subjetivas que podem ser levantadas e debatidas, há um programa de revolução brasileira que está encarnado no seio do partido operário, um programa materialista dialético, encarregado de elaborar a análise da realidade e apontar um horizonte de superação do atual regime político e econômico.