domingo, 9 de outubro de 2016

O carpideiro

                                                                                        conto

Tio Álvaro sempre foi um sujeito atípico. A vó sentava a família na mesa da fazenda e passava horas contando suas peripécias de criança, suas dúvidas de adolescente ou seus arroubos de juventude. Os olhinhos da matrona brilhavam ao falar do caçula, filho mais chegado, rebento que por nada no mundo abandonava a barra da saia da mãe. Tio Álvaro era mesmo muito carinhoso, afeito à vida familiar, zeloso de seus afazeres no rancho.
A vó sentava lá e desandava a falar das memórias que tinha. E a gente adorava. Em dias de chuva o tédio não nos abatia. Eram dois palitos pra gente preparar um chocolate quente com bolinho e cobrar da vó um ''causo''. A gente sabia que a velha daria um jeito de falar das histórias do filho predileto, mas ninguém falava nada. No fundo a gente ia nutrindo admiração pelo espírito sensível e peculiar do tio. E no fundo a gente também não via problema algum na predileção da vó por ele.
Curiosa essa minha lembrança de infância. Isso não tem exatamente a ver com a história  que vou contar mas sublinha um elemento que pode fazer todo sentido mais adiante.
Pois bem, acontece que semana passada estive com tio Álvaro, por conta de um desses eventos em que se reúne a família inteira. Sentei ao seu lado numa das refeições e conversamos longamente sobre muitas coisas. Muitas coisas mesmo. Há um bom tempo eu não encontrava o tio, e, pra ser sincero, nem me lembrava das excentricidades da figura.
Ele principiou a falar sobre sua nova vida de aposentado e logo me espantou. É até difícil de acreditar, mas, na falta do que fazer, o cara acorda cedo, e, enquanto engole o café, trata de procurar na sessão de obituários do jornal algum velório pra visitar.
_ Mas por que isso, tio?- perguntei de cara.
_ Ah, filho, velório é lugar de muito respeito. O luto, o respeito ao luto, à dor, ao sentimento...
_ Hum, redargui eu como quem gostaria de ouvir mais pra entender melhor.
E o tio prosseguiu:
_ Então, eu vejo no enterro uma coisa bonita que não se vê por aí todo dia. A morte une as pessoas, as famílias, coisa que a gente só vê em época de natal, ano novo...
Não resisti e comecei a indagar sobre os detalhes mais picarescos, se ele conversava com a família do morto, se se aproximava do caixão, e, nesse caso, se encostava no defunto, essas coisas.
Ele disse que às vezes até chorava junto com o pessoal, que rezava, que se emocionava, que, quando ficava mais à vontade com o grupo, ou era deixado a sós com o corpo, que se aproximava e tocava na mão do falecido.
Me falou de algumas particularidades dos velórios, das diferenças entre funerais católicos e protestantes, enterros convencionais e crematórios. Falou sobre a má impressão que tinha dos cemitérios verticais, de sua admiração pelo estilo neoclássico das campas de um cemitério x, da opulência das jazidas do cemitério y...
Tio Álvaro, pasmem, passou mais de meia hora me falando de antigas e novas tendências no ramo do sepultamento.

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