Mais um texto da série Crônicas da Vida Operária
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Três e meia da manhã, clima frio, a gente no meio da BR. A gente que eu digo era eu e o Treze. Os dois a caminho do trabalho. Arrumei esse trabalho de frentista de posto. Época de vacas magras, muito magras. Não pude recusar o emprego. Não tinha jeito. Nessa época eu tava morando numa desditosa cidade de interior, que prefiro nem mencionar o nome. Morava longe do posto, morava longe de tudo. Morava, como eles dizem por lá, no pau do urubu.
Uma vez comentei pra um forasteiro que morava no pau do urubu. O cara abriu os olhos em um esboço de sorriso e disse que nunca tinha ouvido um nome de bairro curioso daquele jeito. A turma do posto ouviu a conversa e caiu na gargalhada. O Mirandinha, gerente, ria também, meio acanhado, sem se misturar à peãozada.
Pois eu dizia, três e meia da manhã na BR, eu e o Treze. O Treze, um negão de um metro e noventa, esguio, canelinha fina, correu feito velocista e me deixou pra trás no breu da rodovia, tamanho o susto que tomamos. O fato é que vimos um vulto. Me arrepio só de lembrar.
A rodovia pouco movimentada, vínhamos conversando na caminhada, passos ritmados no acostamento de granizo. E vimos à meia distância uma silhueta, no mato à beira da estrada. Nem deu tempo de pensar, o reflexo condicionado foi correr. E corremos. O Treze correu como devia correr da polícia no áureo vigor físico dos seus tempos de trombadinha, seus tempos de garoto transviado. As histórias que o Treze me contava me arrepiavam como me arrepia agora a memória do vulto. Não lembro direito a história desse apelido dele. Lembro que era algo relacionado à sua passagem pela Febem. Não sei se um número de protocolo interno, ou se referente ao tempo que ele passou lá.
Passávamos longas horas na frente das bombas de gasolina, geralmente no primeiro turno, com o dia amanhecendo, até a hora do almoço. E entre papos de mulher e futebol o Treze ia me contando a sua história. Histórias de malocas, de biqueiras, de fugas da polícia, ou de quando as fugas não resultavam exitosas e os milicos judiavam dele...Histórias tristes, umas muito violentas. Poucas histórias tinham um final bom. Algumas eram inusitadas e engraçadas. Gostava de ouvir o negão contar. Ele com aquele sotaque meio matuto, carregado nos erres, tinha jeito pra contar histórias. Tinha ritmo de cronista, preciso, marcado. Sabia sugerir drama, medo, angústia, suspense. Ritmado, catártico, envolvendo o ouvinte.
Ouvi histórias inacreditáveis naquela rodovia. Outro passatempo nosso era observar os passarinhos, o Treze tinha um notável conhecimento das aves. E também brincávamos de imaginar a profissão das pessoas pelos carros com que chegavam no posto. Por exemplo, vinha um bigodudo num Del Rey prateado, limpinho, bem ajeitado; o Treze arriscava um palpite:
_ Médico. Certeza.
Cinco minutos depois encostava um Karmann Ghia vermelho, com um playboy ao volante.
_ Esse aí é filho de fazendeiro.
Se encostava um casal, a brincadeira às vezes era dizer se a mulher era esposa ou amante. E nesse ritmo, entre histórias de antigamente, passarinhos, brincadeiras ordinárias, comíamos a manhã adentro, entre goles de café e baforadas de cigarro paraguaio.
Fiquei um pouco mais de dois anos nesse posto. Depois disso vieram outros perrengues, outros trabalhos mal-pagos. E vez ou outra eu ficava desempregado. Numa dessas vezes surgiu concurso pra guarda municipal da cidade. A mãe queria que eu fizesse. Me encheu o saco. Eu fiquei tentado, não nego, mas resisti firmemente. A gente passando dificuldade em casa. Mas eu falei pra mãe que meganha eu não virava. Que eu tinha consciência das coisas.
A mãe insistia, dizia que guardinha de cidade pequena nem pega em arma, que não troca tiro com bandido nunca, que era aquele negócio de ficar tomando cafezinho em porta de repartição pública, ou separando briga de crianças na praça. Eu não caí no papo.
Vim pra cidade, me meti nuns serviços de entrega. Às vezes me tiravam de office-boy, me mandavam pagar conta, fazer depósito, buscar o almoço da turma. Não era tão ruim como pode parecer. Ficava na rua olhando a bunda das mulheres e observando as coisas. Nato observador, um flaneur de carteira assinada. Sempre dava pra dar uma escapada e tentar fugir da condição operária.
Jogava papo nas vendedoras das lojas, pegava telefone. Levava uns livros na pasta, lia nas pracinhas. A vida tinha seu sabor.
Fui trabalhar no centro e via as coisas mais interessantes. Uma vez tirei uma onda com um muçulmano e tomei o maior enquadro na firma. Tava eu lá na fila do banco e me aparece um cara com uma bata de linho que cobria o corpo todo, um gorrinho cobrindo a cabeça. Devia ser um clérigo, presumo. Veio numa tentativa de furar a fila, arrumando pretexto com a moça do caixa. E vinha com uma latinha de coca cola na mão.
_ Não pode tomar pinga mas pode tomar coca cola, né?! O que é pior, brimo?
Falei tirando uma onda. Pensando que o cara fosse levar na esportiva. Ele parou na minha frente e me deu uma medida da cabeça aos pés, sério, desafiador.
Depois me chamaram no RH e me deram uma advertência. O pessoal ficou sabendo do incidente. Me disseram que eu não podia queimar o filme da empresa.
Histórias como essa do banco eu vivi bem umas cinco. Andar na rua, interagir com as pessoas, com os clientes, é sempre ocasião de desentendimentos. As pessoas são imprevisíveis às vezes. Um que acha determinado comportamento normal, te trata bem. Aí você se comporta exatamente igual com uma outra pessoa e arruma bronca pro seu lado. Fiquei de saco cheio também. Tive saudades do interior, do posto, do pau do urubu, do Treze e dos outros meninos. Mas é sempre besteira cair nessa de nostalgia. Na época eu intuitivamente já desconfiava disso e tomei um bom caminho. Fui estudar e tentar outras profissões, olhando sempre pra frente.
Como na madrugada da BR, encarei outros fantasmas pelo caminho. Às vezes a gente corre, às vezes bate de frente. Os fantasmas sempre aparecem.
Queria poder contar que vi um ovni, que vi a loira do banheiro, qualquer coisa mais interessante. Meus fantasmas foram ordinários e corriqueiros. É quando a gente aprende a elaborar espiritualmente a vida. Simbolicamente, interiormente. Sábio é o homem introspectivo, que soube compreender os seus fantasmas, que soube sorver o que estes trazem de sentido.