Às vezes parece que o Brasil anda em círculos, como se desse sempre a impressão de que está prestes a resolver seus velhos problemas, mas no fim das contas só muda a decoração da sala enquanto o alicerce continua rachado. Houve um tempo, recentemente , ali nos primeiros mandatos de Lula, em que a vida de muita gente melhorou um pouco. Não foi milagre, foi vento internacional soprando a favor e um governo tentando aproveitar o impulso pra puxar quem estava mais para baixo. A demanda chinesa por commodities dava ao país uma força artificial que parecia enorme, como se tivéssemos descoberto um motor novo quando, na verdade, só estávamos sendo empurrados por um tranco alheio. A pobreza caiu, a desigualdade encolheu um pouco, o salário mínimo cresceu, e muita gente respirou melhor, comprando carro, financiando imóvel e tal. Chegou luz no nordeste . Realmente muita coisa aconteceu. Mas esse respiro tinha prazo de validade, porque nunca mexeu no coração da desigualdade brasileira. A verdade é essa.
Quando a maré virou, porque ela sempre vira, a aparente dança harmoniosa entre capital e governo se transformou num tropeço coletivo. A burguesia brasileira, que aceita concessões sociais só enquanto isso não ameaça seu poder, puxou o tapete sem cerimônia. Depois da "marolinha" enfeiar a situação econômica, da Dilma perder a mão em Brasília e de 2013 ter sido orquestrado pra bagunçar o coreto, veio o golpe de 2016, vieram os anos de brutalidade política e social, com Ponte Para o Futuro, reforma trabalhista, da previdência, Temer com 2% de popularidade despejando maldades no brasileiro; e o país descobriu que seus pequenos avanços estavam apoiados num piso escorregadio.
A ascensão de Bolsonaro não surgiu do nada, foi o produto direto de uma crise de hegemonia, daquela fadiga estrutural de um pacto que nunca foi capaz de conciliar verdadeiramente as classes, apenas adiar conflitos. A violência institucional, o descaso com a vida e a volta da fome mostraram que, na prática, nada fundamental tinha mudado.
Quando Lula voltou e o Brasil saiu de novo do mapa da fome, houve um alívio geral, quase como abrir a janela depois de anos trancado num quarto abafado. Pouco se falou em filas do osso depois disso. A inflação foi controlada, as famílias voltaram a se alimentar melhor. Só que a paisagem lá fora continua praticamente a mesma. O agronegócio continua mandando na fronteira do país e no congresso, a economia segue dependente da exportação de coisas que tiramos da terra, a indústria anda minguada, e a desigualdade permanece de pé, firme, como uma velha árvore que se recusa a tombar.
A estrutura que produz a miséria continua intacta. A melhora da vida de milhões é real, mas se apoia num terreno movediço, sempre sujeito ao humor do mercado internacional e à disposição da elite local de tolerar algum bem-estar social desde que isso não abale sua fortaleza, suas notas promissórias, seus títulos da dívida.
O Brasil moderno, esse que o agronegócio gosta de celebrar com tratores gigantes e recordes de safra, convive com um Brasil que vive espremido entre bicos, aluguel atrasado, transporte lotado e muita economia na hora de fazer o supermercado. É como se duas épocas convivessem no mesmo território, ligadas por estradas que levam riqueza num sentido e precariedade no outro. A reprimarização da economia deu ao país um tipo de modernidade que brilha por fora e apodrece por dentro. A cada nova fronteira agrícola aberta, vem também a destruição ambiental, a expulsão de comunidades, a violência silenciosa que mantém a engrenagem funcionando. O capital global sabe exatamente o que quer do Brasil, e não é que nos tornemos uma potência industrial, e sim que continuemos entregando produtos baratos e recursos naturais abundantes.
Ao falar tudo isso, vejam, não se trata de pessimismo, mas de honestidade histórica. A democracia trouxe conquistas importantes, mas também conviveu com limites enormes. A nova república brasileira deixa muito a desejar. A redução da indigência, o aumento do acesso à escola, a ampliação de programas sociais, tudo isso é valioso. Mas são vitórias que sempre vieram acorrentadas às regras do jogo do capital. Uma economia dependente e financeirizada não entrega soberania, entrega migalhas condicionadas à estabilidade da rentabilidade. Quando o preço do minério sobe, o país respira, quando cai, o país sufoca um pouco. Ninguém constrói um futuro assim. Não tem continuidade de política de reindustrialização. O projeto Brasil fazendão é que tá vigorando. Alguma pujança em serviços, com empregos bem ruins, superexploração bombando. Nada que inspire otimismo.
Ou seja, o drama brasileiro é que as conquistas são reais, mas frágeis, muito frágeis, e a regressão é sempre rápida. É como construir uma casa sobre a areia da praia. A cada nova maré, um pedaço afunda. Enquanto a estrutura produtiva não mudar, enquanto a terra continuar concentrada nas mesmas mãos, enquanto o estado seguir de joelhos diante do capital financeiro e do agronegócio, seguiremos repetindo a mesma história, apenas com personagens diferentes.
O caminho que poderia quebrar esse ciclo não é milagre, é luta. Luta organizada, consciente, com horizonte claro. É a classe trabalhadora deixando de ser objeto da política e se tornando sujeito dela. Sem isso, o país continuará vivendo de pequenas ascensões e grandes quedas, sempre preso a essa contradição que já virou marca registrada. O Brasil parece uma anomalia, mas na verdade é o retrato fiel de um capitalismo dependente que nunca foi capaz de se libertar de suas próprias amarras. E enquanto não enfrentarmos isso de frente, politicamente, ideologicamente, organizando a classe trabalhadora e os partidos populares, estaremos sempre, de novo, no mesmo lugar. A questão, mais do que nunca, é criar e estabelecer uma gama de dispositivos políticos e organizativos da classe trabalhadora para fazer frente aos desafios de desenvolvimento nacional e libertação integral.
Não dá pra depender do PT e dos partidos acomodados ao regime político colocado, definitivamente. É preciso apontar para rupturas, ganhos qualitativos, organização operária e revolucionária para fazer frente ao que está colocado pelas conjunturas e pela lógica do capital em escala internacional. Em qualquer perspectiva, o que se exige é luta revolucionária, horizontes disruptivos para que se vislumbre progresso e bem estar do povo. Aí vão dizer que não há correlação de forças favorável... Pois é, mas correlação de forças se conquista, se forja. Esperar cair do céu não é a alternativa, enquanto se entabula uma série de acordos com elementos do centrão para compor governos de frente ampla fadados a serem permanentemente acossados pelos abutres do mercado.
A esquerda brasileira precisa reencontrar o horizonte estratégico da revolução. O que aconteceu hoje na câmara, com um mandato popular e socialista como o de Glauber sendo entregue a seis meses de suspensão para que não fosse cassado, evidencia que os limites da institucionalidade burguesa não devem e não podem ser os limites da política socialista. Isso parece tão evidente, mas fomos tragados por uma onda liberal e identitária, obscura, fatalista. Isso precisa ser superado com urgência.
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