sábado, 23 de novembro de 2024

Aparecida é nossa! Que engulam o choro os reacionários!


Sábado passado, dia 16 de novembro, estive em Aparecida com os irmãos da Rede Nacional de Católicos LGBT. Foi a segunda vez que estive com eles em Aparecida. Na primeira vez, em abril, estávamos em apenas poucos núcleos da rede. Dessa vez foi feita uma romaria nacional, com a presença mais completa dos grupos. 

Conheci a rede em 2022, através de um de seus grupos em São Paulo. Um amigo me chamou e eu fiquei muito curioso. Fui lá e saí comovido. Nesse dia tava uma pessoa muito especial, a Sílvia Kreus, que é mãe de uma moça lésbica e que contou seu testemunho. A Sílvia escreveu um livro, vale a pena ir atrás. Vejam lá. Ela sempre foi de igreja e sofreu preconceito em sua paróquia depois que a filha revelou publicamente a homoafetividade. 

A partir desse primeiro contato com a rede, entrei em seu grupo de whatsapp e passei a acompanhar suas atividades. Me mudei pra Santos e em 2023 ajudei a fundar o Diversidade Católica Baixada Santista. Isso tudo sendo heterossexual. As pessoas se espantam do interesse de um heterossexual em se ajuntar com os homossexuais e empunhar a bandeira. Explico. Acredito firmemente que esse movimento é bastante importante e relevante no âmbito da igreja, e não só, mas da sociedade também. 

Vivemos um momento determinante de disputa ideológica na sociedade, disputa que veio pro interior das igrejas e que, em especial na igreja católica, coloca conservadores e liberais em uma situação de duros embates. Entendo que, como católico progressista, militante de esquerda que sou, devo me posicionar e me manter engajado com meus pares. E a rede de católicos lgbt's é um movimento especial nessa conjuntura de polarização. 

Tem gente que pode dizer: "Ah, mas esse pessoal é teleguiado pela cultura woke, é lobby estadunidense, é decadência ocidental, coisa festiva, sem elo com as periclitantes questões sociais do nosso tempo, etc, etc". 

Notem, poderia haver um fundo de verdade nisso, mas não há. Conheço de dentro o movimento e sou testemunha de se tratar de algo realmente inspirador e necessário. Não conheço o movimento em nível internacional, mas do que conheço, do pessoal aqui do Brasil, afirmo com serena segurança se tratar de um coletivo de pessoas muito religiosas, pessoas que a vida inteira participaram de comunidades católicas, em pastorais, nas paróquias, muitas delas na vida religiosa, em seminários e congregações. São pessoas que a vida inteira sofreram com o peso do preconceito, da culpa. E de uma culpa que não faz sentido. Se a pessoa nasce com uma determinada orientação sexual, não tem absolutamente nenhuma culpa a respeito. É da natureza da pessoa. É o que ela é. Aí vem a sociedade e diz que é pecado, que é coisa do diabo, que quando morrer vai pro inferno e tal. É um massacre psicológico. Tanto que muitos se suicidam, porque o peso é terrivelmente insuportável caso a pessoa seja muito religiosa. Acha que Deus não ama mais, que seria melhor não ter nascido, e por aí vai...

Pois bem, em pleno século 21, depois de tanta evolução cultural, societária, ainda faz algum sentido que a sociedade exerça uma pressão sobre as pessoas por conta de sua forma de viver a sexualidade? Evidente que não. E nem nas igrejas. Esse negócio de ficar falando que vai pro inferno, essa ladainha punitivista, não passa de um comportamento anacrônico, que salta aos olhos por seu primarismo e que expõe uma arrogância e uma crueldade que passam bem longe do propósito cristão, que é de acolhimento, de compreensão, de ternura, de amor. 

Só acredita no inferno pro homossexual quem é muito simples, de pouca instrução mesmo, ou a pessoa que perdeu sua alma para o reacionarismo. Só sendo muito reacionário, de coração duro, sem caridade alguma, pra dizer que alguém vai pro inferno por ser gay. E quem são as figuras que tem feito isso, essa barbaridade, essa agressão inconsequente? Ora, são as mesmas pessoas que apoiam Bolsonaro, que dizem ter saudade da ditadura militar, que estimulam o golpismo e o ódio de classe, que fazem festa quando a polícia faz chacina nas favelas, que acham que pobre tem mais é que morrer, etc. São fascistas, protofascistas, gente perversa, canalha, gente de extrema direita, gente que faz o mundo ser um lugar pior.

Ora, amados, o que fazer nessa correlação de forças que está colocada? Simples, a gente que se importa com os outros e que espera um mundo mais fraterno, como o papa Francisco, e os movimentos sociais, de direitos humanos, etc e tal, a gente se junta e cria uma trincheira contra os brutamontes. As trincheiras são materiais, políticas, de proposições para a economia; mas também são culturais, podendo ser literárias, nas artes, enfim, e também na religião. 

Gays também tem religião. Não são infiltrados nas igrejas! Eles estão nas igrejas desde sempre. A igreja católica, por exemplo, verdade seja dita, é uma igreja gay. Não se escandalizem. É isso mesmo, a igreja católica é uma igreja gay. Quem não é católico talvez não tenha ideia de como tem gay nas igrejas. Boa parte dos padres é gay. Estão por aí celebrando missas, casamentos  atendendo confissão  dando conselhos. São pessoas normais, pessoas com sentimentos religiosos, sentimentos nobres, sentimentos humanitários. São gays. Essas pessoas existem e estão agora se assumindo, à medida que os tabus vão sendo superados, que paradigmas são quebrados. Quem entende minimamente de ciências humanas sabe que os códigos morais são datados, que vão mudando com o tempo, que o anormal de ontem é o normal de hoje, que o anormal de hoje talvez seja o normal de amanhã. 

Esse meu amigo que me levou pela primeira vez numa reunião da Rede de Católicos LGBT, por exemplo, é meu conhecido de muitos anos. A gente frequentava grupo de jovens. Uns 10 ou 12 anos atrás ele me procurou dizendo ser gay, estava aflito, queria um direcionamento, uma opinião. Eu não sabia o que dizer. Falei pra ele procurar o padre da paróquia. Não sei o que o padre falou. Sei que esse rapaz andou por uma igreja evangélica inclusiva e que voltou à igreja católica, que felizmente encontrou a rede de apoio. É uma rede de apoio, ele agora está assistido, pode procurar seu espaço quando confrontado com algum percalço em sua vida. O que dizer disso? Glória a Deus que esses núcleos existem. São núcleos de resistência, núcleos que vão consolidando seus espaços. E vão pra Aparecida, claro. Glória a Deus que vão pra Aparecida, que existem e que celebram seus 10 anos de rede, com estatuto, com bases sólidas, com orientação teológica, com o pastoreio da igreja. Eu me alegro de estar engajado com eles. Tenho meus engajamentos, tenho uma posição política, ideológica. E tenho religião. E se tenho religião, posso ter minhas posições. Minha posição é totalmente teologia da libertação. A teologia da libertação, na minha opinião, é uma das coisas mais bonitas que existiu na história. Hoje não tem CEB's, o movimento tá recuado. Tomara que a coisa melhore. Vejo nos núcleos da rede de católicos LGBT uma boa opção de engajamento. Por isso que fui com esses irmãos pra Aparecida e pretendo ir sempre. Aparecida é nossa. Nós sempre teremos Aparecida.







terça-feira, 8 de outubro de 2024

Os partidos brasileiros em 24

Algumas notas sobre os partidos na eleição de domingo. Pequenos comentários. Apenas uma síntese. 


PT 


O PT tá se recuperando aos poucos do tranco do golpe de 2016. Mas se engana ao achar que vai reaver seu posto de maior força política no país. A direita tá hegemônica na sociedade, e o PT amarga a ressaca depois de um tempo inaudito, que ficou marcado pelos dois primeiros mandatos de Lula como presidente. Aquele tempo passou e o PT espera ingenuamente que volte. Não vai voltar. A tendência não é essa. O PT fica agora identificado pelos lunáticos direitistas como se fosse um partido de esquerda. Enquanto isso, toca uma política de direita, de frente ampla, e sem eliminar as medidas de ajuste de Temer e Bolsonaro. Ou seja, o PT é um caso sério. É como aquele tipo de pessoa que a gente diz que não se ajuda. Para usar uma linguagem gramciana, o PT deveria optar por uma guerra de movimento. Foi atacado torpemente,  semi-esmagado. Precisaria de um movimento contrário em igual medida para reaver terreno. Ao invés disso opta por uma batalha em firmar posições no interior da institucionalidade burguesa. Inutilmente. O partido agora começa a perder base eleitoral no nordeste, o que era considerado impossível de acontecer. 


Psol


O Psol já era. O Psol virou o partido identitário. Ideologia aguada, fim de carreira, a cara de uma esquerda oportunista, eleitoreira, que não consegue se sustentar em tempos de crise do capital. Vai desmoronar numericamente. Politicamente já se perdeu. É, na verdade, um balaio de gatos desencontrados, sem rumo teórico, sem identidade de classe. Agora sem um programa mínimo de ruptura com o sistema. O neoliberalismo tragou a esquerda também. O Psol é uma expressão inequívoca de tudo isso.


PSDB 


O PSDB acabou, né. Game over. Perdeu os prefeitos e perdeu os vereadores. Ou seja, perdeu tudo o que tinha. O PSDB é um partido sem militância. Seu militante número 1 era o empresário, mas o empresário se bolsonarizou. A sociedade se bolsonarizou, não sobrou espaço pra terceira via. Eles esperam que esse movimento retroceda. Muito difícil de acontecer isso. O que guia a política são as movimentações da economia e da geopolítica. O PSDB é carta fora do baralho.


PSB


O PSB é um partido que opera como um PSDB. Mas o fenômeno da acirrada polarização ideológica joga contra a legenda. Por incrível que pareça, o nome do partido, com "socialismo" no meio, é o suficiente pra limar a agremiação do jogo político que é jogado pra valer. 


PDT


O brizolismo manda lembranças. Há muito tempo que não dá pra esperar nada do PDT. É outro partido significativo da redemocratização que vai sumindo aos poucos, vítima de si mesmo, de sua inaptidão política e da diluição de identidade das esquerdas. 


PL


O partido de Bolsonaro não conseguiu operar a manobra política que estava pronta em suas mãos. Maior fundo partidário (que é capaz de ter sido drenado em grande parte por corrupção) e sem o aumento de prefeituras que esperava ter, o PL perdeu o pique e foi superado por outros partidos de direita do dito Centrão. Mesmo assim o PL cresceu, fazendo um número impressionante de vereadores. O fator "gado político" de seu público ajuda muito nisso. Os caras são fanatizados, o pastor manda votar, eles vão lá e votam... Enfim, é fácil pra eles a tarefa de fazer vereador. É um fenômeno alucinante de movimento fascista de massas que ainda vai aterrorizar muito o cenário político. 


Centrão (PMDB, PSD, União Brasil, PP, Republicanos, Podemos, Cidadania, etc)


O lixo se prolifera a uma velocidade assustadora. O brasileiro é enganado com muita facilidade por partidos fisiológicos e sem caracterização política de classe ou ideologia. Já vi muita gente aparentemente ilustrada que vota nos caras, que trata como se fossem gente normal. Esses partidos são a imagem política mais acabada da alienação e da ignorância; são símbolos de um mundo sem razão de ser, um caos, uma fantasia grotesca. Em suma, são o fruto do atraso e do depauparamento cultural. E fazem qualquer negócio por dinheiro. São marionetados com muito êxito pelo poder econômico.


Ou seja...

O quadro geral da política brasileira inspira preocupação. Nada de muito novo no entanto. Tá a mesma merda da eleição passada, com pequenos novos detalhes.




Obs: Falo em perspectiva com o número de políticos eleitos na eleição passada e nessa, conforme o índice de desempenho; e também com relação ao peso dos partidos no debate público.

Tem no UOL um bom gráfico sobre o crescimento ou diminuição dos partidos. O PT aumentou as prefeituras. O PSDB diminuiu drasticamente, além de ter saído apagado no congresso e nas deliberações de relevância da política nacional. 




segunda-feira, 1 de julho de 2024

O cara que morava no cemitério

 

Por algum acaso, você já conheceu alguém que mora no cemitério? Eu conheci. Meu amigo Raul. O Raul faleceu esse ano. Tava me lembrando dele ontem quando recebi em um dos meus grupos de whatsapp uma reportagem sobre pessoas que moram em cemitérios. O Raul morava no cemitério do Araçá. Pra quem não conhece, é um antigo e bonito cemitério na região da Avenida Paulista, em São Paulo.

Conheci ele na gloriosa rua Augusta. Um amigo em comum me apontou o Raul e disse: Sabia que esse cara mora no cemitério?

Falei com o Raul depois e ele confirmou a história. O Raul morou lá 20 anos. Como eu disse, faleceu esse ano. 

A casa do Raul consistia em 4 ou 5 capelas do cemitério. Capelas são túmulos grandes, com aqueles espaços exíguos entre as colunas de concreto onde ficam as gavetas, em que se depositam os caixões. O Raul conhecia as famílias donas das capelas e ficava com uma chave. As famílias confiavam as chaves porque o Raul se comprometia a manter tudo em ordem. Cada uma das capelas servia como um recinto de uma casa. Tinha a capela-cozinha, a capela-quarto de dormir, a capela banheiro. Tinha a capela certa pra levar mulheres, outra capela que ele usava pra depósito das coisas do trabalho. Enfim, o Raul se virava lá.

Ele tinha amizade com o pessoal da administração, então ele circulava lá entre os trabalhadores e podia tomar cafezinho e pegar água gelada no escritório. Os caras confiavam nele e pediam favores, como pagamentos no banco ou na lotérica, porque o Raul era idoso e  pegava fila preferencial. O Raul tinha um gato também. Era a casa dele lá. O problema é que de noite ele tinha que pular a grade do cemitério pra entrar em casa. Eu tô falando isso porque fui lá visitar ele. Era impressionante. Saí de lá realmente muito impressionado.

Ele me disse que vivia bem, que os vizinhos não reclamavam do barulho e que também tinha se acostumado a viver rodeado de muitas baratas. Cemitério é lugar de muitos insetos, sobretudo baratas. Vi em algum lugar, não me lembro onde, que as baratas ajudam a comer os tecidos dos cadáveres em seu processo de decomposição. Não sei se é verdade. Vou pesquisar no Google qualquer hora dessas.

O Raul era meio estranho, bebia, era muito doido, mas era boa pessoa quando tava sóbrio e de bom humor. Ele tocava trombone mas não lia partitura. Dizia que gostava de praticar seu instrumento nas madrugadas do cemitério. Tinha cabelos lisos e muito pretos (apesar da idade) caindo quase pelos ombros, um nariz grande e uma feição meio de índio, na pele queimada de sol. Ele era gaúcho, torcia pro Inter, tinha filhos e tinha também boas histórias que não posso saber da veracidade. Era um desses personagens inusitados que mereceriam um filme, sei lá, pelo menos uma boa reportagem de revista ou televisão. Pelo que soube, morreu no anonimato mesmo.

Ele havia me dito que muita gente propunha fazer matérias sobre sua situação. Ele nunca quis. No fim da vida o Raul chegou a passar algumas breves temporadas fora dos muros do Araçá, por circunstâncias da vida, como da vez em que foi atropelado e passou alguns meses em uma cadeira de roda. Nessa ocasião o Raul ficou hospedado num asilo da prefeitura. 

Ele sempre se queixava das novas administrações do cemitério, de quando aparecia algum diretor querendo tirá-lo de lá. Isso o angustiava.

Mas também tinha os momentos adversos que o Raul transformava em histórias engraçadas. Disse ele que uma vez, na madrugada, viu uma viatura de polícia vindo numa das ruazinhas do cemitério. Ele saiu do meio dos túmulos e acenou pros guardas, pensando que eram amigos. Aconteceu que era uma equipe nova e o Raul tomou um enquadro, teve que ficar lá se explicando pros caras. Ele contava essas histórias e a gente caía na gargalhada.

A gente tinha um grupo de amigos. Um deles ajudou muito o Raul, com comida e algum dinheiro. 

Eu sempre quis trazer essa história pro blog. Trago agora que o Raul já é finado. Espero que do além ele não se importe de eu estar contando sua história. 

Que Deus o tenha, Raul, figura excêntrica.  Soube de sua morte no mesmo dia que soube da morte de um outro conhecido nosso que também morava num lugar, digamos, inadequado. Esse camarada morava num centro acadêmico dentro da USP. 

Não me oponho que o universo continue a me apresentar essas figuras das ruas, figuras desviantes, outsiders do sistema, andarilhos, malucos-belezas, etc. A gente faz amizade, não tem problema!




segunda-feira, 20 de maio de 2024

60 anos do golpe militar

Compreendendo o regime militar brasileiro 



Neste ano de 2024, o golpe militar completa 60 anos. Muito tem se falado na imprensa, nas mídias, na academia, etc, sobre esse período da história nacional; muito em vista também das movimentações políticas recentes, depois da ascensão da extrema-direita, a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república, seu conturbado governo, sua derrota e, posteriormente, as tentativas golpistas envolvendo novamente os militares. Militares que tiveram papel muito ativo no último governo, onde Bolsonaro louvava o regime de exceção que vigorou no país entre 64 e 85, chegando inclusive a exaltar os métodos sanguinários perpetrados pelos militares daquele período.

Uma década atrás, por exemplo, o país assistia e discutia os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, em que a lei de anistia de 1979 foi muito contestada por não ter responsabilizado os culpados por crime de tortura. Outros países da América Latina que passaram por ditadura militar julgaram, condenaram e levaram ao cárcere os responsáveis por violações aos direitos humanos. No Brasil não houve penalização. A lei de anistia como que passou uma borracha jurídica por sobre a questão; permitiu que os exilados regressassem ao país, os guerrilheiros, aqueles que assaltaram bancos, que ficaram na clandestinidade, que sequestraram, etc. E simplesmente não autuou os militares que praticaram torturas, estupros, execuções e ocultação de cadáveres. 

Pois bem, nas décadas subsequentes ao regime militar muito se falou sobre as barbaridades cometidas pelo sanguinário regime dos generais, inclusive, como dito, contestando a lei de anistia de 1979. A sociedade brasileira ao longo dos anos elaborou de diversas maneiras o duro período de repressão imposto pelos militares. Muitos filmes foram feitos, muitos livros, publicados; muita água correu por sob a ponte da discussão política a respeito do período em questão. O consenso na sociedade era de que o golpe havia sido um crime contra a nação, e que o regime militar fora um castigo, uma lástima a ser deplorada em todos os sentidos. Assim foi até que uma dura conjuntura política de direitização abateu novamente o país, na esteira das jornadas de junho de 2013 e no subsequente movimento de reacionarismo que se seguiu, desfechando na sequência daqueles anos o golpe contra a presidente Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a eleição do ultradireitista Bolsonaro, que se notabilizava exatamente por reclamar a herança do golpe de 64 e do regime militar. 

A partir de então o país mergulhou numa frenética polarização política, com o aparecimento e o estabelecimento de um fenômeno reacionário de massas, com o desrecalque de manifestações de psicologia fascista e com movimentos políticos declaradamente partidários de um novo golpe militar.

Tendo pois em vista os 60 anos do golpe de 64, as controversas posições perante a questão, diante dos últimos acontecimentos no país, e a elaboração política e teórica dos movimentos, da academia e da sociedade como um todo diante das últimas manifestações, pretendemos neste breve artigo revisitar o regime militar, passando por suas motivações e origens, as classes sociais e as forças externas que o engendraram, suas políticas econômicas, as implicações sociais de tais políticas, com suas drásticas mudanças, o regime de violenta repressão, com seus atos institucionais cerceadores de direitos, que por mais de 20 anos usurparam as garantias cidadãs da população. 

Os teóricos que aqui usamos como referência, se propuseram a caracterizar o regime militar brasileiro e o fizeram com muita competência. O Brasil tem farto material à disposição em se tratando de ditadura militar. Se há uma nova problematização a ser feita, esta é justamente a questão do país ter recentemente passado pelo risco de um novo golpe, em virtude do aparecimento desse novo movimento de extrema direita. Neste sentido, é possível estabelecer uma interessante comparação entre o período que propiciou o golpe militar de 64 e o período político pelo qual passamos agora. Os dois períodos se caracterizam pela conturbada situação da geopolítica internacional, com o imperialismo americano reordenando táticas com o intuito de garantir o domínio do mercado brasileiro, e para isso se valendo de métodos de manipulação ideológica das massas, de guerra híbrida e infiltração das instituições para a consecução de uma política geral alinhada a seus interesses regionais.

Tanto no início da década de 60 como agora, o cenário é de tentativa dos EUA e do capital financeiro em fazer do Brasil uma segura plataforma de suas políticas, viabilizando mercados, insumos, mão de obra barata. Neste sentido, vale ressaltar os aprendizados históricos para que determinados episódios não se repitam. Apesar de que os Estados Unidos, justiça seja feita, não se posicionaram pelo golpe que Bolsonaro e alguns generais tramavam em fins de 2022. Isso porque a política de Bolsonaro foi demasiadamente conturbada, e também porque em fins de 2022 o presidente norte-americano Joe Biden não deu aval para o movimento de Bolsonaro, que é vinculado ao movimento internacional de extrema-direita que tem nos Estados Unidos a representação do ex-presidente Donald Trump, arqui-adversário de Biden. Há que se pontuar que evidentemente não é tão simples hoje em dia se lançar o expediente de um golpe militar, como em 64, com todas as implicações políticas que traria tal movimento. Hoje a política é mais sutil, mais complexa, com outras determinações, num outro cenário, muito embora haja crise internacional e necessidade de rever estratégias de acumulação, que foram as motivações materiais por detrás do golpe de 64.

Abordamos aqui o fenômeno ocorrido há seis décadas levando em conta os anos decorridos. Tendo por base as referências bibliográficas que abaixo apresentamos, e reiterando suas teses, que são deveras pertinentes, o que seria possível acrescentar de comentários? Pensamos que há novos apontamentos a serem feitos, observando a história recente e cotejando os últimos acontecimentos com as movimentações pré-golpe e com o desenvolvimento histórico e político dos anos de chumbo. A própria Comissão Nacional da Verdade é um material que pode ser analisado e entendido à vista da correlação política de sua época. É notório e de extraordinário pasmar que os militares que cometeram as torturas tenham passado impunes a todas essas décadas. Os crimes foram tão vis, tão horripilantes. Em todo mundo há responsabilização de crimes parecidos. Como foi possível que estes senhores tenham conseguido viver suas vidas sem pagar minimamente pelas atrocidades cometidas? E por que os militares continuaram ativos na cena política brasileira no período da Nova República? Por que o poder civil ficou desmesuradamente tutelado pelos generais? Há inclusive resquícios disso na carta constitucional de 88. Enquanto redigimos estas páginas, o Supremo Tribunal Federal se ocupa de esclarecer que um dos artigos da Constituição (o famigerado artigo 142) não dá aos militares poder moderador algum, que não é prerrogativa das forças armadas intervir no poder público. 

Isso faz parte do desenrolar de uma complicada e intrincada trama política fomentada pelo bolsonarismo, que nos últimos anos, após a Comissão da Verdade, mais de 50 anos após o golpe, quase 30 depois de proclamada a Constituição, ensejou na discussão política nacional a possibilidade de uma intervenção a depender de alguma crise que pudesse criar caos público e institucional.


Movimentações do golpe


Os militares conspiraram por muito tempo contra a democracia brasileira. Desde Getúlio havia por parte de determinados setores militares o desejo de intervir na política. As coisas escalaram à medida que as circunstâncias da conjuntura política desagradavam ao espírito reacionário de parte considerável das forças armadas. Getúlio havia segurado o ímpeto golpista com a cartada do suicídio. A comoção foi grande e os militares não quiseram intervir no calor dos acontecimentos. Mas estavam à espreita. O furor reacionário da classe média embalada por figuras como Carlos Lacerda, a posição de destaque na sociedade de setores da política mais alinhados ao progressismo, como o próprio Partido Comunista Brasileiro, liderado por Prestes, os sindicatos em evidência, o desejo do presidente João Goulart de dar uma guinada desenvolvimentista após assumir o cargo com tamanha dificuldade (o Brasil tinha passado por um momento de parlamentarismo, que havia sido rechaçado pela população em plebiscito), após a renúncia do conservador Jânio Quadros, enfim, com todos esses fatores internos, somados aos externos, com o decisivo apoio e o fomento norte-americano, lançaram-se os militares brasileiros à aventura golpista. 

Os direitistas haviam pintado Jango de comunista. Artifício muito parecido ao atual da extrema-direita. Usavam de um palavrório pretensamente religioso e patriótico quando na verdade se batiam por interesses que não eram os do povo brasileiro. A classe trabalhadora, que vinha em progressivo movimento do campo para as cidades, se estabelecendo em funções fabris, no bojo das transformações que se encaminhavam desde Getúlio, passando pelo governo também desenvolvimentista de Juscelino Kubichek, tinha a necessidade de um governo que atendesse aos seus anseios por serviços públicos condizentes com a transição social que se operava, com políticas sociais e com obras públicas que organizassem o espaço citadino e também o campo. Havia a premente necessidade de obras de urbanização, com moradia, esgotamento, eletrificação, etc, enquanto no campo havia já a velha reivindicação por reforma agrária. João Goulart e seus pares tinham ciência de que o desenvolvimento nacional dependia desse conjunto de medidas administrativas que ensejassem as condições necessárias ao desenvolvimento com alguma justiça social e com harmonia. De forma alguma Jango tinha aspirações socialistas. Era um estancieiro do Rio Grande do Sul, um político populista, mas tradicional, sem o menor apetite por mexer com a propriedade privada e a estrutura geral do capitalismo. Pelo contrário, havia nesse movimento de desenvolvimento social justamente o desejo de modernizar o capitalismo brasileiro, de colocar o Brasil num outro patamar na estrutura produtiva mundial. E tais desejos foram frustrados por políticos conservadores aliados ao imperialismo. 

A classe média mais reacionária serviu como testa de ferro para uma atividade retrógrada e antinacional, lançando-se em falsa operação moralizante. Falava-se em corrupção, o bordão que nunca saiu da boca dos políticos profissionais e que tão bem serve até hoje para ludibriar incautos. A semelhança com o movimento bolsonarista não é à toa. Os movimentos de 2013 já apontavam para isso. E no desenvolvimento dos acontecimentos políticos, com Lava-Jato, Sérgio Moro, Deltan Dalangnol, prisão de Lula, etc, foi possível notar toda uma orquestração política e social que dava às elites e ao imperialismo condições de intervir no processo institucional, de modo a frear políticas nacionais, ao passo em que colocavam políticos fisiológicos no poder com o intuito de passar medidas de ajuste fiscal, retirada de direitos trabalhistas, privatizações, etc. 

A diferença da guinada reacionária de 2013 é que esta não se lançou no expediente militar explícito. Os militares, na verdade, ficaram na retaguarda dos acontecimentos, na vice-presidência de Jair Bolsonaro. Em 64, desde o início os militares foram a figura de proa. Se mantiveram no poder político, fecharam o regime e a muito custo foram sair depois, após longos anos de arbítrio e depois de muito sangue corrido.

Mas nosso assunto aqui é mais especificamente o golpe de 1° de abril. Golpe que passou a ser tramado pelos militares após a efervescência política que tomou o país no mês de março de 64. O clima era de insatisfação popular com a inflação, que vinha galopante no período, e de radicalização dos movimentos sociais e trabalhistas. O ápice da agitação política se deu quando Jango, acenando para os sindicatos e setores mais progressistas da sociedade, passou a defender novas reformas constitucionais, entre as quais, controlar remessas de dinheiro ao exterior e permitir o voto aos analfabetos. 

É bom ter claro que Jango buscava soluções para acabar com a fome e a miséria. A oposição política, sob ordens das elites e do governo norte-americano, classificava Jango como um fomentador de greves, articulador da luta de classes e inimigo do capitalismo. 

Os trabalhadores rurais, mobilizados pelo processo de transformação social que se desenhava, eram despertados contra a secular miséria do campo. A perspectiva de pequenas mudanças num país de grandes desigualdades reacendeu ilusões, por assim dizer. A correlação de forças não se mostrou favorável às classes trabalhadoras. No entanto, por um tempo, milhares de pessoas do povo tiveram em Jango sua utopia de um Brasil desenvolvido e livre da pobreza. Havia essa esperança.

A crise econômica, contudo, com as taxas de inflação que iam a pique, era um dos freios do avanço social. CGT, PTB, Brizola e UNE, entre as demais forças políticas do campo da esquerda, exigiam as reformas de base como solução imediata. Os economistas do governo buscavam o saneamento e o controle da economia com um plano que permitisse as reformas. Mas não havia consenso entre as forças políticas no entorno de Jango (que havia ampliado sua base governista justamente no intuito de salvar seu governo) e acabou não saindo do papel.

A oposição transferia a capital para Washington, os empréstimos em dólar negados ao governo brasileiro financiavam os estados governados pela direita brasileira, que assim conseguia tocar obras e reunir algum prestígio popular. Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e outros políticos hostis a Jango transitavam pela Casa Branca. O momento era de fortíssima polarização política e ideológica. E os EUA se articulavam com os liberais para enfraquecer quaisquer tentativas de governos nacionalistas em seu quintal traseiro, a América Latina.

Uma das questões mais ousadas do governo Jango foi na política externa, e desagradou bastante aos EUA. O Itamaraty estabeleceu a diplomacia do não-alinhamento, desatando assim os nós que atrelavam as decisões brasileiras às decisões norte-americanas. O governo reatou relações com a URSS, votou contra a política colonialista na África e apoiou o direito de Cuba à autodeterminação. A política externa esbarrou nas fronteiras da dependência econômica. Os Estados Unidos pressionavam o Brasil por conta de sua dívida externa, e os diplomatas brasileiros precisavam dar satisfação de muitas das decisões na esfera econômica. Além de Jango contrariar interesses americanos à medida em que cogitava a nacionalização de alguns ramos da indústria. Jango alegava a necessidade de controlar os lucros excessivos dos monopólios, que não permitiam que o desenvolvimento nacional se desse com sustentabilidade no médio e longo prazo. Sendo assim, o governo buscava criar novos acordos, na tentativa de ajustar os interesses conflitantes.

A conspiração militar contra Jango se desenvolveu de um modo que o presidente não pôde conter. Buscou inutilmente aproximação e acordo com os militares. Seria necessária alguma outra tática. No âmbito das tratativas palacianas Jango não poderia debelar o golpe que se anunciava. Prestes a ser deposto, lhe foi sugerido um mea culpa, espécie de autocrítica seguida da renúncia do programa político que tinha em mente. Jango preferiu cair de pé. Não renegou seus propósitos de aplicar uma política nacional e desenvolvimentista com as reformas que vinha anunciando.

Em Janeiro de 64 Jango resolveu regulamentar a lei de remessa de lucros, que tinha sido aprovada pelo congresso havia mais de um ano. O fantasma das reformas, que apavorava as classes médias reacionárias, ganhou corpo em março daquele ano, com amplas mobilizações populares que precederam o comício da Central do Brasil. Militares mais hostis ao governo tentaram inclusive buscar formas de evitar que houvesse o ato da Central do Brasil. Jango, a essa altura, só tinha a mobilização popular como carta na manga. A situação se tensionava abertamente; Jango acenava cada vez mais consistentemente para as reformas.

O ponto alto foi sem dúvida o discurso no famoso comício da Central do Brasil, de 13 de março. O comício tinha como organizadores movimentos sociais e partidos políticos. Destaque para o CGT ( Comando Geral dos Trabalhadores), a central sindical da época, e o Partido Comunista, além das demais agremiações do campo democrático e popular, tendo o PTB, partido de Jango, à frente das mobilizações. Do alto do palanque, em um evento tomado de tensão, inclusive com ameaças de atentados, Jango pronunciou uma contundente fala que incluía as promessas de reforma agrária, diminuição dos aluguéis e nacionalização de refinarias.

As forças reacionárias reagiram de pronto. No mesmo mês reuniram num ato em São Paulo cerca de 500 mil pessoas, evento que ficou conhecido como Marcha da Família com Deus pela Liberdade. O destaque da organização ficou por conta do empresariado e de setores  conservadores, tendo a cúpula da Igreja Católica como importante baluarte.

A insurreição militar não demoraria. O movimento inicial foi em Minas Gerais. Militares do Exército de São Paulo e Rio de Janeiro se juntaram ao motim e em menos de 24 horas já haviam encaminhado o golpe para depor Jango. Reprimiram as primeiras manifestações e mobilizaram tropas no Rio de Janeiro, residência oficial do presidente. Jango se deslocou para Brasília e posteriormente para seu estado de origem, o Rio Grande do Sul, onde seu cunhado, o deputado federal Leonel Brizola prometia resistência aos golpistas. Porém Jango não quis resistir, e fugiu para o Uruguai. Os militares empossaram provisoriamente presidente da república o deputado que presidia a Câmara dos deputados, e em 9 de abril editaram o ato institucional número 1, que depôs formalmente João Goulart. No mesmo mês assumiria a presidência o marechal Castelo Branco, em mandato temporário estipulado para terminar em 1967. Dali em diante o Brasil passaria por 21 anos de ditatura militar. 


O quadro geral da política econômica aplicada pelos militares


O regime militar no Brasil beneficiou algumas classes e setores da sociedade em detrimento de outros. É preciso ter claro isso. Há uma racionalidade no golpe de estado. A bem dizer, tal golpe já vinha se prefigurando havia tempo. Mas o fato é que todo movimento político na sociedade, seja golpe, tentativa de golpe, conspiração, ou mesmo os movimentos mais normais dos tempos democráticos, todos eles expressam a correlação de forças das classes sociais em jogo. A ditadura militar brasileira evidentemente contemplou os anseios de determinadas classes sociais em prejuízo de outras.  As classes beneficiadas incluíam grandes empresários, latifundiários, setores ligados à indústria pesada e multinacionais. O regime implementou políticas econômicas que favoreciam esses grupos, com incentivos fiscais, subsídios e políticas de proteção à indústria nacional.

Por outro lado, trabalhadores, movimentos sociais, pequenos agricultores e outros grupos marginalizados enfrentaram forte repressão, perda de direitos e dificuldades econômicas durante esse período. A concentração de poder e benefícios em determinadas classes foi uma característica marcante do regime militar brasileiro. Essas dinâmicas econômicas e sociais tiveram um impacto significativo no desenvolvimento do país e na desigualdade social que ainda enfrentamos hoje.

Durante o regime militar no Brasil, os índices de concentração de renda aumentaram significativamente. As políticas econômicas implementadas durante esse período contribuíram para acentuar a desigualdade social e a concentração de riqueza nas mãos de poucos. Essa disparidade na distribuição de renda e riqueza resultou em índices de pobreza e exclusão social durante o período, contribuindo para um cenário de injustiça econômica muito acentuado.

Tais impactos econômicos e sociais do regime militar tiveram consequências duradouras para a estrutura social e econômica do Brasil, moldando a realidade do país dali em diante.

Uma característica determinante do regime militar foi que houve a continuação do período de forte desenvolvimento industrial, com intenso êxodo rural e uma urbanização acelerada no Brasil. Muitas famílias migraram das áreas rurais para as regiões urbanas, especialmente para o Sudeste do país, em busca de oportunidades de trabalho e melhores condições de vida. Essa migração em massa resultou em um significativo aumento da população urbana nas grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e outras metrópoles do Sudeste. Muitos migrantes rurais acabaram se instalando em favelas e áreas periféricas das cidades, enfrentando condições precárias de moradia e trabalho.

Essas famílias frequentemente serviam como mão de obra barata para as indústrias que se desenvolviam na região, contribuindo para o crescimento econômico do Sudeste, mas enfrentando desafios relacionados à exploração e condições de trabalho desfavoráveis.

A urbanização acelerada e o êxodo rural durante o período do regime militar tiveram um impacto profundo na configuração demográfica e socioeconômica do Brasil, influenciando a dinâmica das cidades e as condições de vida de milhões de pessoas.

De modo geral, o regime militar acelerou o desenvolvimento industrial com a forte intervenção do estado, mas em benefício das elites. Os trabalhadores e os pobres não viram o seu patrimônio prosperar. Muito pelo contrário, foi um tempo de arrocho salarial, em que uma enorme massa de trabalhadores foram parar em favelas e outros tipos similares de sub-moradia.

A intelectual Lélia Gonzalez, importante pensadora e ativista brasileira, analisou as consequências do regime militar para a população negra sob uma perspectiva muito crítica e engajada. Lelia apontou que o período da ditadura militar teve impactos significativos na vida das pessoas negras no Brasil, exacerbando desigualdades sociais e raciais já existentes. Lelia argumentou que durante o regime militar, as populações negras foram ainda mais marginalizadas e submetidas à condições de vida precárias, que políticas públicas discriminatórias resultaram em maior exclusão econômica, social e política para os negros, perpetuando assim um quadro de desigualdade estrutural.

É importante destacar que houve uma relação muito estreita entre setores empresariais e o governo durante esse período. Muito embora o regime militar tenha centralizado no estado as políticas econômicas, visando certo desenvolvimento industrial e crescimento econômico, alguns empresários apoiaram ativamente o regime militar, seja por compartilhar de sua ideologia anticomunista, seja por se beneficiarem das políticas econômicas implementadas pelo governo.

Essa associação entre empresários e o regime militar muitas vezes resultou em benefícios econômicos para esses setores, através de contratos com o governo, isenções fiscais e outras vantagens. Além do financiamento e apoio à repressão política promovida pelo regime, contribuindo para a manutenção do autoritarismo e da violação dos direitos humanos.

Essa colaboração entre setores empresariais e o regime militar é um aspecto importante da história do Brasil durante esse período, e ainda é objeto de debates e reflexões sobre a responsabilidade do setor privado na manutenção de regimes autoritários. Há historiadores que inclusive optam por chamar o movimento de 64 como golpe civil-militar. Nosso entendimento é que o golpe teve características militares por hegemonia. Tanto que foram os generais que se revezaram na presidência. O regime foi violento, policialesco, e por muitos anos extremamente fechado e sufocador dos anseios democráticos da sociedade civil. Outros elementos se associaram. E quem deu efetivamente o aval foram os Estados Unidos. Ou seja, foi um golpe militar clássico que enveredou o estado brasileiro em políticas que garantiram a espoliação do capital estrangeiro, com a associação e o beneplácito do capital nacional, antipatriota e sabujo dos interesses americanos no país. 

O livro "Pequena História da Ditadura Brasileira", de autoria de José Paulo Netto, que apresenta uma abrangente e sistemática análise do período da ditadura militar no Brasil, destaca com muita competência os diferentes aspectos desse período histórico. Dentre as principais teses e abordagens do autor, podemos destacar a contextualização histórica e o desenho geral do conflito de classes por detrás do regime de exceção. Netto situa a ditadura militar dentro de um contexto histórico amplo, destacando as origens, com o cenário mundial de guerra fria e de extrema polarização ideológica entre os blocos capitalista e socialista (polarização que internamente é também muito acirrada, na esteira das disputas políticas que vinham do tempo de Getúlio), com o imperialismo americano envidando esforços para consolidar sua área de influência no continente, expandindo seus negócios com o capitalismo em desenvolvimento nos países ao sul. E os desdobramentos e as consequências desse período autoritário para a sociedade brasileira.

Zé Paulo Netto faz a perfeita análise das estruturas de poder. O autor examina as estruturas de poder político, econômico e social que sustentaram o regime militar, evidenciando as relações entre as elites políticas, empresariais e militares durante esse período.

Quanto aos empresários que se associaram ao regime militar, é importante destacar que houve uma relação estreita entre setores empresariais e o governo durante esse período. 


Arbítrio e repressão. E a resistência 


O governo militar perdeu logo a mão de manter a situação sob controle, sob alguma estabilidade, e nos primeiros anos de sua gestão passou a lançar mão de sucessivos atos institucionais. Houve o período mais tenebroso, com o combate às guerrilhas e à resistência que optara pela clandestinidade. Muitos anos depois que o regime militar passou a afrouxar as rédeas, com o avanço dos movimentos sociais e o clamor público pela anistia e o retorno à democracia. Até lá, o Brasil haveria de passar por longos anos de violência e repressão política.

Se há algo que marcou a ditadura militar, e que permaneceu na memória da população e sobre o que não há a mínima dúvida, este algo é a violência. Sobre a violência e a repressão desencadeadas, José Paulo Netto aborda a deliberada violência estatal e a repressão política promovida pelo regime militar, o que incluía a perseguição a opositores, o exílio de lideranças políticas, a censura à imprensa e as práticas de tortura. Sobre a resistência e luta pela democracia, o autor destaca também a resistência popular e as lutas pela redemocratização do país, ressaltando o papel dos movimentos sociais, sindicatos, estudantes e demais atores que se opuseram ao regime autoritário.

Um capítulo curioso da ditadura militar brasileira, e que endossa seu caráter de classe e reacionarismo foi a Operação Bandeirantes, também conhecida como OBAN. Foi uma organização paramilitar criada durante o regime militar com o objetivo de reprimir e combater ações consideradas subversivas pelo governo. A OBAN atuou de forma violenta, realizando prisões arbitrárias, torturas e execuções de opositores políticos. A OBAN tinha uma lista de capitalistas que se associavam ao movimento golpista e que se cotizavam para o mantenimento das operações. 

No período em questão, as forças repressivas do estado brasileiro lançaram mão de um sem número de métodos de tortura em interrogatórios, com o intuito de desbaratar guerrilhas urbanas e rurais que surgiam em oposição ao golpe civil-militar de 1964. Ato contínuo, a esquerda brasileira se viu instada a recorrer aos direitos humanos para defender os prisioneiros do regime. Até então pouco se falava em direitos humanos no Brasil, tido como pauta liberal-burguesa, que as esquerdas rejeitavam por conta de uma concepção materialista dialética que naturalmente se alinhava mais à reivindicações classistas.

Nesse sentido, o encontro da esquerda com os direitos humanos pode ser encarado, por assim dizer, como o encontro de uma análise marxista mais geral com demandas do âmbito da micro-política. Foi a ocasião severa da conjuntura política que fez com que militantes oriundos de classes mais abastadas fossem detidos pela repressão e submetidos a tratamentos normalmente dirigidos aos marginalizados da sociedade. Não que o período anterior ao golpe de 1964 não tenha histórico de repressão a movimentos políticos e sociais tidos como subversivos pela ordem vigente. Em outros períodos, comunistas ou democratas já haviam sido conduzidos aos cárceres ou postos na clandestinidade.

Mas foi a partir da experiência de cárcere e tortura empregados após o golpe de 1964, com a vigência dos atos institucionais, sobretudo o quinto, de 1968, que recrudesceram as perseguições e hostilidades a quem ousava se insubordinar contra o governo.

Inúmeros grupos guerrilheiros surgiram na tentativa de impor resistência ao avanço dos militares, que por sua vez contavam com o financiamento e o treinamento de forças civis ou estrangeiras. O referido corte histórico configurou período extremamente conturbado na política nacional, com cassação de parlamentares, perseguição a membros das forças armadas que se opunham ao regime, etc.

Em oposição, diversos partidos ou frações que aderiram à luta armada, se lançaram em operações de expropriação revolucionária de bancos e similares com a finalidade de financiar a compra de armas e a manutenção das organizações na clandestinidade. Essa foi a conjuntura política que conduziu uma parcela da esquerda aos ”porões da ditadura”, locais onde militantes de classe média conheceriam a tortura, método até então reservado a presos comuns.

A esquerda, até então ambientada às análises de conjuntura mais abrangentes, aos balanços mais objetivos e à caracterização das forças sociais e políticas decisivas para os acontecimentos políticos, aprendeu, com o contato duro das prisões, a lidar com uma pauta até então colocada em segundo plano em função de uma concepção leninista de história, que via outras questões como secundárias ou simplesmente liberais. Fazer a experiência da violência policial destinada aos marginais foi, em síntese, o que sensibilizou a esquerda para o discurso dos direitos humanos, trabalho social antes executado por movimentos religiosos, como pastoral carcerária e afins, movimentos sobretudo capitaneados por adeptos da teologia da libertação.

Entendemos que a violência empregada pela repressão legitima a violência que surgiu para se opor ao golpe e ao estado de exceção. Com o parlamento cassado, os sindicatos sitiados, a dura repressão à organização das massas trabalhadoras e às entidades estudantis, muitos grupos políticos optaram por se lançar na luta armada. Mas tais grupos mormente respeitavam convenções internacionais de guerra e tinham uma base ética que faltava aos militares brasileiros. Crimes como tortura e ocultação de cadáveres nunca foram cometidos por grupos revolucionários.

Há muitas coisas que podemos constatar. Muito se fala sobre execução de traidores, condenados por cortes revolucionárias, por exemplo; contradições inerentes à situações extremas, circunstâncias típicas de embates dessa magnitude e que invariavelmente despertam desmentidos, contestações, etc. Mas, verdade seja dita, a esquerda guerrilheira nunca se dobrou a métodos desonestos ou antiéticos como a tortura. Muito embora a esquerda não fosse movida por moralismos, sempre se opôs à execução de prisioneiros ou civis e jamais admitiu tortura.

Lélia Gonzalez abordou a questão da repressão e violência policial direcionadas de forma desproporcional contra a população negra durante o período da ditadura. Ela ressaltou como a militarização do Estado afetou de maneira desproporcional as comunidades negras, ampliando a vulnerabilidade e a violação dos direitos humanos desses grupos. De fato, há que se fazer menção que a ditadura desencadeou nas polícias e na própria sociedade um ambiente mais propício à violência. É o caso dos ''esquadrões da morte'', milícias paramilitares que se encarregavam de executar marginais em nome da defesa do bem estar e da segurança pública. 

Ou seja, em todos os sentidos o regime militar escalou a violência e o arbítrio. Violência que foi sendo desmobilizada à medida que a sociedade retomava seu espaço, com o declínio político dos militares e com o movimento de abertura e redemocratização. Mas a ditadura deixou profundas marcas na sociedade como um todo. Não só aos militantes que haviam caído nas teias da dura repressão aos movimentos políticos da oposição e da resistência armada e clandestina. As polícias militares, por exemplo, são um legado deste tenebroso período. O próprio corpo social, com tamanha desigualdade, com bolsões de miséria, pessoas à margem da sociedade, é sintoma de um longo período em que vicejou o pouco caso com os direitos democráticos da população, um sistemático desprezo pelos direitos humanos e pelo bem estar geral do povo.


Anistia e redemocratização


A Lei de Anistia, Lei nº 6.683, promulgada em 28 de agosto de 1979 durante o processo de abertura política, teve como resultado conceder anistia política tanto para aqueles que foram perseguidos e punidos pelo regime militar, quanto para os agentes do Estado que cometeram violações de direitos humanos durante esse período.

A Lei de Anistia foi um marco importante na transição do Brasil para a democracia, sem dúvida, pois permitiu o retorno ao país de exilados políticos, assim como a libertação de presos políticos que haviam sido detidos pelas autoridades militares. No entanto, a legislação também gerou naturais controvérsias, uma vez que concedeu anistia ampla e geral, sem fazer distinção entre os crimes políticos cometidos por agentes do Estado e aqueles que lutavam contra o regime. Essa abrangência da Lei de Anistia levantou questionamentos sobre a impunidade para os responsáveis por violações de direitos humanos durante o regime militar. Até hoje, a interpretação e aplicação dessa lei geram debates e demandas por justiça e reparação às vítimas desse período da história brasileira.

O problema da anistia em fins da década de 70 foi que os militares, de posse do poder, calculando que correriam o risco de serem punidos ao final do regime, fizeram toda a manobra política necessária para passarem uma lei que anistiasse os dois lados. Foram os presidentes militares que definiram o ritmo da abertura política, sobretudo Geisel e Figueiredo. Evidente que a ascenção do movimento operário do ABC paulista, do movimento estudantil, dos círculos artísticos, etc, todo o movimento democrático da sociedade, jogavam peso e competiam no sentido de acelerar a volta à democracia, de permitir o retorno dos exilados, de permitir o retorno à vida pública de tantos políticos e militantes cassados durante os primeiros anos de golpe militar. Todavia, eram os militares que estavam no poder. A última palavra era deles, e foram astutos em abrir o regime ao passo em que ameaçavam não anistiar os que classificavam como terroristas: os militantes que sequestraram embaixadores e assaltaram bancos. As esquerdas e o movimento democrático encamparam ações por uma anistia ampla e irrestrita, ao que os militares foram cedendo. E no final ficou todo mundo anistiado. Convencionou-se o entendimento de que as tratativas pela anistia envolviam crimes de ambos lados. Mas a esquerda, como bem tratamos acima, não lançou mão de métodos de tortura. Então concluí-se que os militares saíram ganhando. Foram desonestos, praticaram crimes contra a humanidade e ao cabo do regime de exceção se valeram de sua posição política para anistiar seus membros que incorreram no método sistemático e regular da tortura. Afora todo o arbítrio, de anos de um regime político que fez de tudo para usurpar direitos democráticos da nação.

E, também há que se dizer, os militares só aparentemente saíram de cena com a redemocratização do país. Ao longo de toda a Nova República mantiveram-se próximos ao poder político, em atitude que configura achaque político, ao passo em que mantiveram privilégios materiais e se hospedaram no condomínio do poder onde, às vezes mais, às vezes menos, ocuparam definitivamente uma posição de Minerva, de informal poder regulador, isto porque constituídos em armas e em natural condição de se sublevar caso quisessem. E quiseram com Jair Bolsonaro.


60 anos depois...


Sem dúvida que o entendimento que temos da história é bastante condicionado pelo momento político que vivemos. Não há como revisitarmos o golpe e o período da ditadura sem levarmos em consideração toda a questão política atual. E essa foi a nossa tônica ao longo destas páginas. Não poderia ser diferente. Entendemos assim. A conjuntura de golpes, tentativas de golpe, protagonismo militar na política e reacionarismo é, por assim dizer, uma repetição dentro de um ciclo em espiral que deve voltar a acontecer se o povo brasileiro não depurar a questão militar e a questão mais geral do desenvolvimento da luta de classes. 

Havia até poucos anos atrás o entendimento de que a democracia brasileira estava consolidada, e de que uma possível reedição da aventura militar seria algo muito pouco provável. Ledo engano, e que tão amargamente o povo brasileiro precisou constatar no desenrolar dos acontecimentos políticos que culminaram no impeachment imerecido de Dilma e na orquestração toda para limar Luís Inácio da disputa presidencial seguinte.

A partir daí os militares assumiram papel de destaque na política e de lá só foram sair porque seu candidato (e o próprio time militar) se envolveu em tamanho número de desentendimentos e gafes que sua situação política foi se tornando insustentável, o que ensejou o quadro do retorno petista ao poder. Dessa vez com menor margem de poder, numa coalizão de frente ampla, com o leque político ainda mais estendido que em 2002, e tendo que pisar em ovos no tratamento com os militares; o que Lula particularmente faz com muito jeito e habilidade. 

A questão militar é varrida para debaixo do tapete e pode voltar à pauta antes que se imagine. A questão da luta de classes tampouco será alvo de alguma intervenção. O possível imposto sobre grandes fortunas, o controle do capital de juros, do spread bancário, do serviço da dívida, e tantas outras questões que poderiam combater o que compõe o arcabouço do rentismo e da hiperacumulação, não serão tocados por este governo. 

Ainda há poucas semanas o presidente Lula disse que a questão da ditadura militar era coisa do passado e que não havia necessidade de se voltar a ela. Tentativa de apagamento histórico que veio justamente no sentido de colocar panos quentes sobre a discussão da sociedade em torno da memória histórica sobre o regime, em oposição às comemorações militares  que se dão a cada 31 de março. 

Ou seja, quer sobre a questão militar, mais particularmente, quer sobre a questão da secular estrutura social de desigualdades, o governo pouco fala. Sinal de que são questões que acirram os ânimos, que estão no âmago da situação nacional e que invariavelmente voltarão, posto que competem ao histórico quadro da formação nacional e subjazem no solo social da disputa entre capital e trabalho. 

A questão fica em aberto e, a depender do andamento das crises internacionais, de seus rebatimentos em território brasileiro, dos interesses imperialistas para o país, e de como internamente as coisas se darão, os 70 anos do golpe, daqui a 10 anos, poderão ser algo muito novo, com uma perspectiva que seja diferente da nossa. Muita coisa pode acontecer em 10 anos. Assim o temos constatado. Tudo o que é sólido desmancha no ar. De certo só sabemos que há questões em aberto. A ditadura militar brasileira é uma chaga aberta. De nossa perspectiva, do alto destes 60 anos, é o que podemos cravar. Os últimos acontecimentos, desta década particularmente, são a prova histórica disso.








Referências:

José Paulo Netto. Pequena História da Ditadura Brasileira, Cortez Editora, 2004, São Paulo 

Lelia González. O golpe de 64 e a situação do povo negro no Brasil

Luciano Oliveira. Imagens da Democracia, Pindorama, 1995, Recife-PE

domingo, 14 de abril de 2024

Nós e o Marxismo

Uma resenha crítica dos escritos de Florestan 


"Nós e o Marxismo" é uma importante obra do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes. Livro pequeno, de síntese, Nós e o Marxismo explora e debate as ideias do marxismo e sua relevância para a compreensão e transformação da sociedade. Florestan discute a aplicação do programa do marxismo como possibilidade real e científica para a transição ao socialismo. Em outras obras ele fala mais sobre a perspectiva  revolucionária para a realidade brasileira, abordando questões prementes da situação nacional, sempre abordando questões como desigualdade social, estratificação e luta de classes.

Florestan analisa (como intelectual orgânico, ou seja, militante político) de forma crítica as contradições e desafios do marxismo em relação à prática política e social. Sua obra é uma contribuição significativa para o entendimento do pensamento marxista e suas implicações na sociedade.

Em "Nós e o Marxismo", especificamente, Florestan Fernandes explora conceitos-chave do marxismo como alienação e objetificação do trabalhador, em relação à realidade vivida pela classe laboral em sua relação com o trabalho, com a ideologia e com os aparelhos ideológicos de estado.  Florestan nesta obra não usa o termo althusseriano de "aparelhos ideológicos de estado. Colocamos aqui porque entendemos que o conceito expressa bem o conjunto da questão ideológica no âmbito da discussão marxiana.

A alienação, por exemplo, conforme discutida por Marx, refere-se à perda da capacidade de os indivíduos se identificarem com o processo de trabalho e, por extensão, com os produtos do seu trabalho. Isso ocorre devido à separação entre os trabalhadores e os meios de produção, devido à separação da função do trabalhador em uma ponta da produção em relação ao conjunto completo da produção. O que leva a uma sensação de desvinculação e falta de controle sobre suas vidas.

Quanto à objetificação da pessoa, relaciona-se à transformação dos indivíduos em meros objetos dentro do sistema capitalista, onde são tratados como recursos descartáveis ou mercadorias, em vez de serem reconhecidos como seres humanos completos, capazes de dominar todo o processo produtivo. 

Florestan explora como esses conceitos se manifestam na sociedade, especialmente no contexto das relações de trabalho e das estruturas de poder. Busca demonstrar como o marxismo pode oferecer compreensões importantes para enfrentar as formas de alienação e a exploração do homem pelo homem.

Neste sentido, cumpre apontar que o conceito chave do texto é luta de classes, um conceito central para o marxismo e que descreve o conflito entre os diferentes grupos sociais, especialmente entre a classe trabalhadora (proletariado) e a classe proprietária dos meios de produção (burguesia). De acordo com Marx, a história das sociedades humanas é caracterizada por essa luta constante, na qual os interesses e objetivos desses grupos frequentemente entram em conflito.

Marx argumentava que a exploração econômica e a desigualdade social eram inerentes ao sistema capitalista, onde os trabalhadores vendem sua força de trabalho aos donos dos meios de produção em troca de salários, enquanto estes últimos obtêm lucro através da mais-valia, ou seja, da diferença entre o valor criado pelo trabalho dos operários e o salário pago a eles.

A luta de classes, segundo Marx, era impulsionada pela busca do proletariado por emancipação e igualdade, visando à superação das condições opressivas e desiguais impostas pelo sistema capitalista. Marx via nessa luta a força motriz para a transformação da sociedade rumo a um sistema mais justo e igualitário.

Essa visão da luta de classes influenciou significativamente o pensamento social e político ao longo do tempo, sendo um conceito fundamental no entendimento das dinâmicas sociais e das mudanças históricas propostas pelo conjunto do movimento operário, que é o grupo social que mais tem interesse na emancipação humana. 

Engels, na obra "Do socialismo utópico ao socialismo científico", traça a evolução do pensamento socialista desde suas origens utópicas até o surgimento de uma abordagem mais científica e materialista, conforme desenvolvida por Marx e ele próprio.

Esta obra de Engels talvez seja o texto mais clássico sobre a questão do marxismo como ferramenta de luta dos trabalhadores, à medida em que a evolução do socialismo caminha por um entendimento sociólogico sobremaneira científico, e se estabelece como ideologia crítica às correntes utópicas do socialismo idealista, que idealizava a sociedade perfeita e buscava reformas baseadas em concepções abstratas, sem considerar as condições materiais e econômicas reais. 

Em sua obra, Engels argumenta que o socialismo científico, baseado nas análises de Marx, representa uma compreensão mais profunda das leis que regem o desenvolvimento histórico e das contradições inerentes ao sistema capitalista, e destaca a importância da abordagem materialista e dialética do socialismo, que busca compreender as relações de produção, a luta de classes e a dinâmica histórica como elementos fundamentais para a transformação revolucionária da sociedade. 

Marx e Engels, de posse de uma  apreensão crítica da filosofia hegeliana, apontam para o materialismo histórico e dialético. Esta é a escola de Florestan; é disso que Florestan fala quando aponta para questões concretas, e para a ação concreta da organização política do proletariado.

No marxismo, a abordagem do concreto como a síntese de múltiplas determinações da realidade é fundamental para a compreensão da realidade. De acordo com Marx, o concreto não é apenas a soma mecânica de partes separadas, mas sim a resultante de um processo complexo de interconexões e relações entre estas partes.

Na dialética marxista, a síntese do concreto surge da compreensão das contradições e das interações dinâmicas entre os diversos elementos que compõem uma situação ou fenômeno. Marx enfatiza que o concreto é o resultado da unidade e luta dos opostos, onde as contradições internas e as tensões dialéticas são essenciais para a compreensão da realidade em sua totalidade.

Essa abordagem dialética busca captar a dinâmica e o movimento inerente aos processos sociais, econômicos e históricos, reconhecendo que as situações e fenômenos estão em constante transformação. Portanto, a síntese do concreto na dialética marxista implica uma compreensão profunda das relações sociais, das forças em conflito, das classes sociais em disputa e das contradições subjacentes que moldam a realidade.

Tanto na obra de Florestan Fernandes quanto no marxismo, a revolução social desempenha um papel central nesta transformação das estruturas sociais e na busca por uma sociedade diferente da anterior.

Florestan, intelectual de primeira qualidade, mas também militante socialista, defendia a necessidade da revolução social (em seu caso a revolução operária) como um instrumento de superação do modo de reprodução social. A revolução operária varreria as desigualdades e injustiças presentes na sociedade capitalista. 

Em suas análises, Florestan destacava a importância da mobilização e da conscientização (de "classe em si" para "classe para si", como no jargão de Marx) da classe trabalhadora para a conquista de seus direitos e para a transformação radical das estruturas sociais opressivas. O marxismo é isso, quando a revolução social é concebida como o momento em que a classe trabalhadora, consciente de suas condições e interesses, se organiza para derrubar as relações de produção capitalistas e estabelecer um novo modo de organização social. Marx via a revolução como o ápice da luta de classes, onde as contradições do sistema capitalista atingiriam seu ponto máximo e a classe trabalhadora tomaria o controle dos meios de produção.

A revolução social representa, portanto, um processo de ruptura com as estruturas opressivas e exploradoras, visando a construção de uma sociedade pós capitalista, onde a evolução dos acontecimentos rumaria a reprodução social para um modelo livre do capital, e por conseguinte, da exploração.

Em sua época, 40 anos atrás, Florestan via no socialismo da União Soviética uma possibilidade real de transição. A queda do muro de Berlim e o fim da URSS representaram o regresso dos sonhos operários a uma fase anterior. Mais à frente falaremos disso.

Cumpre pontuar outra preocupação de Florestan na famosa brochura em questão, a questão da contrarrevolução. Tanto Florestan quanto Marx abordaram a questão da contrarrevolução social em seus escritos, embora em contextos e perspectivas diferentes. Florestan, em suas análises sobre a sociedade brasileira, destacou a presença de forças conservadoras que se opunham às transformações sociais e à emancipação da classe trabalhadora. Ele identificou a existência de uma elite dominante (as burguesias) que buscava preservar seus privilégios e impedir a mobilização e a conscientização das classes populares. Essa elite, segundo Florestan, atuava como uma força de contrarrevolução social, utilizando mecanismos de controle e repressão para manter a ordem vigente e impedir mudanças estruturais significativas. 

Para o operariado seria de se pensar uma aliança política com a burguesia nacional, por exemplo, para a libertação do imperialismo e para criar um caminho de desenvolvimento próprio. Mas a burguesia nacional nunca teve esse interesse. Isso será objeto de reflexão em suas obras. Outros intelectuais, com destaque para Caio Prado Júnior, também levantaram essa questão. Mas este debate iria longe demais caso quiséssemos aprofundar.

Para Marx, a contrarrevolução social era representada principalmente pelas forças do capitalismo que buscavam preservar as relações de produção baseadas na exploração da classe trabalhadora. Ele identificava o Estado como um instrumento de dominação da classe dominante, capaz de reprimir levantes populares e preservar a ordem estabelecida em favor dos interesses burgueses.

De Marx para cá, as burguesias aprimoraram de diversas formas o controle do aparelho estatal.

Em suma, em ambas as perspectivas, de Florestan e de Marx, a contrarrevolução social representa as forças que se opõem à emancipação e à transformação revolucionária da sociedade. Tanto Florestan quanto Marx reconheciam a existência de obstáculos significativos para a realização de mudanças profundas nas estruturas sociais, destacando a resistência das classes dominantes e das instituições estabelecidas.

Em diversas de suas obras, Florestan abordou a questão dos mecanismos utilizados pela burguesia para retardar ou impedir a tomada do poder pelo proletariado e para manter sua dominação de classe. Em "A Revolução Burguesa no Brasil", por exemplo, Florestan analisa como a classe dominante, representada pela burguesia, desenvolve estratégias de controle e perpetuação de seu poder, destaca que a burguesia, detentora dos meios de produção e do poder econômico, utiliza uma variedade de mecanismos para preservar seus interesses e impedir a ascensão do proletariado. Entre esses mecanismos estão a manipulação ideológica por meio da educação e da mídia, a cooptação de lideranças populares, a repressão policial e o uso do estado como instrumento de preservação da ordem vigente.

Essas estratégias visam desarticular movimentos sociais e sindicais, desmobilizar a classe trabalhadora e impedir a conscientização das massas sobre suas condições de exploração. Florestan ressalta que tais mecanismos contribuem para a manutenção da desigualdade social e para o retardamento das transformações estruturais necessárias para uma sociedade mais justa.

Com efeito, o fim da URSS foi um duro golpe contra a classe trabalhadora mundial. Embora o gigante soviético já estivesse em seus estertores enquanto Florestan escrevia as páginas do artigo em análise, havia no socialismo real a objetivação de algo que (embora precisasse de uma revolução social interna à revolução social) se podia chamar de socialismo, de experiência de transição ao socialismo, e que jogava peso extraordinário no movimento operário internacional.

István Mészáros em suas análises abordou a situação do movimento operário após o declínio e dissolução da União Soviética sob uma perspectiva crítica e atenta às transformações estruturais no contexto global.

Segundo Mészáros, a dissolução da União Soviética teve impactos significativos sobre o movimento operário em escala mundial. A perda da influência política e ideológica do bloco soviético alterou as dinâmicas das lutas de classes e reconfigurou as relações de poder no cenário internacional. Após esse período, o movimento operário enfrentou desafios profundos em sua organização e capacidade de resistência, porque, diante do colapso do socialismo real, as forças do capitalismo se fortaleceram e intensificaram sua ofensiva contra os direitos trabalhistas, os sindicatos e as conquistas sociais historicamente associadas ao movimento operário. A emergência de uma lógica neoliberal que buscou desmantelar as proteções sociais e enfraquecer a capacidade de mobilização dos trabalhadores, a fragmentação e a precarização do trabalho, impulsionadas pela globalização econômica, representaram novos desafios para o movimento operário. A expansão das relações de produção capitalistas em escala global reconfigurou as condições de trabalho, tornando mais complexa a organização e a solidariedade entre os trabalhadores.

Nesse contexto Mészáros enfatiza a necessidade de repensar as estratégias e formas de organização do movimento operário diante das novas condições impostas pelo capitalismo globalizado. Ele destaca a importância da unidade e da resistência coletiva dos trabalhadores em face das transformações estruturais e das investidas do capital contra seus direitos e condições de vida. São considerações que Florestan certamente apontaria caso tivesse vivido para assistir às transformações com o fim da URSS e com o estabelecimento do capitalismo neoliberal.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Fui na missa do padre Marcelo Rossi

Essa semana fui na missa do padre Marcelo Rossi, gente. Bom, o padre é muito famoso, dispensa apresentações. 

Vou falar aqui das impressões que tive. Achei que essa experiência merecia um comentário, uma análise. Então lá vai.


Padre Marcelo pop star


Tô agora com 39 anos e me lembro bem da ascensão do padre Marcelo. No fim dos anos 90 virou uma febre no Brasil. Era um fenômeno religioso inusitado. Outros padres já faziam esse trabalho midiático, com música, mas nada na proporção do que o Marcelo Rossi alcançou. Padre Marcelo estourou porque trabalhava com bonitas músicas do mundo gospel que tinham apelo catártico. O Brasil, de população católica e carente, num momento delicado socialmente, abraçou o carisma pop do padre novo e bonito que trazia alento religioso e místico, numa mensagem popular, fácil de ser assimilada, democrática. 

Depois disso muitas águas rolaram, mas o padre Marcelo se consolidou como a grande figura midiática do catolicismo.

Acompanhei essa trajetória de modo crítico. Sou católico praticante mas o padre Marcelo evidentemente não é o meu estilo preferido de padre. Tenho um amigo que frequenta as missas dele e que ficava de me levar lá pra conhecer. Demorei uns anos pra me animar a ir e fui agora, nesse último fim de semana. Segue então o relato do que vi lá. 


O lugar. A estrutura 


O lugar é estranho. Não muito, mas não é como um templo religioso convencional. É um espaço aberto, um imenso galpão sem paredes, com cadeiras de plástico dispostas em frente a um altar muito alto, distante do povo. Em frente a esse imenso altar fica um altar menor, improvisado, que é utilizado em algumas celebrações menores. O lugar é muito grande, tem alguns jardins, é espaçoso e facilita o trânsito da multidão. Na missa que eu fui calculei estarem presentes entre 4 e 5 mil pessoas. É gente pra caramba. Sério. No local tem várias lojinhas de produtos do padre Marcelo e de itens religiosos em geral; tem uma lanchonete bem grande e banheiros realmente imensos. Tem um estacionamento também. A estrutura é muito boa. 

Circulei pelo espaço e fui observando. O que mais me chamou a atenção, como católico, é que o santuário não tem capela. O sacrário, que para nós católicos é o lugar mais importante e precioso de uma igreja, fica ao lado do grande altar mencionado, ou seja, inacessível ao povo. É um sacrário bonito. Pelo menos isso. O templo também conta com bonitos painéis, de um artista italiano, me disseram. Não pesquisei pra ver. De perto eles não são muito interessantes. À média e longa distância eles ficam muito bonitos. São imensos, pra fazer jus, naturalmente, ao tamanho do lugar. Dentro do espaço há ainda algumas imagens de Nossa Senhora e jardins e árvores pequenas. Podia ser mais arborizado. O som do templo é muito bom mas há eco da bateria ao fundo do terreno, onde um muro separa o santuário de um corredor que serve de trânsito a automóveis que adentram suas dependências.

O que mais me chamou atenção depois foram as lojinhas. Ou melhor, os produtos das lojinhas. Além de terços, bíblias e imagens de santos, as lojinhas tem lá os livrinhos do padre e camisetas dele também. 

É horrível o sujeito comprar camiseta de padre. Imagina! Tinha uma lá que superava a cafonice toda da coisa; uma do padre Marcelo rodeado de uma bola de fogo, e embaixo os seguintes dizeres: "treino abençoado por Jesus". Exatamente, isso mesmo que você pensou, a camiseta do marombeiro de Jesus... rs. Uma camiseta pro sujeito mostrar na academia que gosta do padre Marcelo.

O padre Marcelo virou uma mercadoria, né. Imagino as vultosas somas de dinheiro que caem ali. O negócio tem forte apelo comercial. O que é meio natural nos dias de hoje também. Verdade seja dita. O lugar lembra a Canção Nova, que é também uma famosa plataforma católica de comercialização da fé. 


A missa. Os fiéis. O padre


A missa em si é bonita. Não nego. Com muita música, num ambiente que leva o sujeito à espiritualidade, à oração. Mas tudo sem reflexão crítica, claro. Tudo muito no nível do senso comum. O padre mesmo não fala muitas coisas. Ele é tipo um animador, puxando as músicas, antecipando as letras pra multidão cantar junto.

Padre Marcelo é um sujeito claramente limitado intelectualmente. Isso aí qualquer pessoa nota. É um sujeito de platitudes, de senso comum, que revela nas suas poucas palavras sinais de uma fé de certa forma infantil e fantasiosa. E o seu público é imagem direta disso. São pessoas simples do povo, muitas delas cobertas de terços e outras referências e adornos religiosos. Muitas famílias, muitos idosos. Arrisco dizer que mais da metade ali eram idosos. Enfim, pessoas simples, inclusive malucos. Com todo o respeito que eu tenho pelos malucos, gente. Maluco pra mim às vezes é o melhor tipo de gente.

Mas, enfim a sensação é essa, de uma multidão trabalhadora e oligofrênica, gente de vida funcional, teleguiada, uma manada praticamente. Isso é triste. Um povo sem educação, sem formação, ovelhas de um rebanho que fica refém do mais do mesmo.

Curioso que o próprio padre Marcelo é um sujeito claramente tutelado. Isso desde sempre. Ele não celebra as missas. Está sempre acompanhado do seu bispo. Nessa vez que fui, o bispo estava viajando. Quem presidiu a missa foi o bispo aposentado. Ou seja, a igreja não dá nem permissão pra ele presidir as missas. Queria entender melhor o porquê disso. O padre Marcelo não faz as pregações. Ele é só um animador de auditório num evento em que o povo aparece por sua causa. É impressionante.


É isso então 


Saí de lá com essas impressões. Difícil eu voltar. Essa minha incursão no mundo do padre Marcelo aconteceu na semana em que o padre foi interpelado por internautas a fazer a defesa do padre Júlio Lancellotti, que foi ameaçado de se tornar alvo de uma CPI na Câmara Municipal de São Paulo. O padre Marcelo não quis se posicionar. Claramente está no espectro político oposto ao do padre Júlio. Tudo indica que possa ser bolsonarista, não se coloca sobre questões sociais prementes, como é comum a religiosos fazerem. É um isentão, um conformista, um cara que lava as mãos. Ou seja, é um cara complicado. Não esperem muito dele. Creio que as pessoas não esperam mesmo.





segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Cuidado com a matrix!


"BBB pra mim é uma oportunidade de estar milionária. E pra eu ganhar, alguém precisa perder"


Frase clichê que poderia sair da boca de qualquer um desses garotos bolsonaristas ou agro-boys que participam anualmente do Big Brother, né. Mas não. A frase foi dita na chamada da tv por uma participante apresentada como assistente social. Uma moça de 24 anos, de Maceió. Uma menina com uma história triste. Começou a apresentação na chamada da tv dizendo que teve uma infância difícil, com muitas limitações materiais, etc. 

Essa moça me chamou a atenção porque é minha colega de Serviço Social. Tô indo agora pro quarto ano da graduação. Estou fazendo estágio já e planejando prestar concursos pra área. 

Muita gente não conhece, mas o Serviço Social é uma área muito progressista. A categoria é hegemonizada por uma diretriz teórica marxiana, primando por um discurso muito crítico do capitalismo e das relações sociais estabelecidas; tem um código de ética muito avançado; tem cursos universitários e pesquisadores que chamam atenção por sua vanguarda teórica arrojada e idealista. Existem, claro, os resquícios do passado conservador da profissão, que no seu início se caracterizava por um arranjo teórico doutrinário que mesclava positivismo, funcionalismo e o neotomismo da igreja católica (a principal origem da profissão). Mas esse passado, contudo, é cada vez mais relegado à defenestração. As novas gerações da categoria são formadas nos bancos das universidades com bastante empenho dos professores para o esclarecimento das questões sociais e das contradições econômicas do capitalismo. 

Por isso que me chamaram a atenção as duas frases finais da apresentação da jovem assistente social. Afinal, como uma pessoa que passou por quatro anos de graduação, num curso que tanto repisa as injustiças desse sistema de morte, pode cair no senso comum ordinário e fajuto de querer ser milionária numa sociedade de tamanha miséria social? Ou como tem a coragem de reafirmar um princípio egoísta da contemporaneidade neoliberal ao dizer que pra chegar a seu objetivo outras pessoas vão perder mesmo? Esse tipo de coisa soa estranha na boca de uma jovem assistente social.

O mundo é cheio de contradições, claro. Mas vale aqui o comentário, o apontamento. Não se trata também de eu querer participar no cancelamento da moça. É capaz que ela seja cancelada. Os tempos são de cancelamento. Eu me oponho frontalmente a isso. A crítica tem que ser ponderada e contextualizada. A moça é jovem e pode amadurecer as ideias nos próximos anos. 

O que me ocorre, e quero deixar claro aqui, é que tenho observado um duro travar de ideias na bolha esquerdista entre aqueles que se batem pelo marxismo stricto sensu (crítico aos moldamentos neoliberais na sociedade, cultura, etc) e aqueles que tem optado aberta ou indiretamente pelas ideologias liberais (um liberalismo de esquerda, identitário na esmagadora maioria das vezes, que tem pouca identificação com o movimento revolucionário dos trabalhadores e se aproxima ou se alia mais diretamente aos movimentos do campo da subjetividade pós-moderna e de classe média).

Tenho observado muito isso na faculdade. Na universidade isso fica mais patente mesmo. Noto isso no convívio com a molecada, observando suas ideias, as coisas com que se importam, suas prioridades e suas reações perante as discussões que são colocadas no cotidiano. 

O caso da jovem Giovana Letícia (é esse o nome da sister do BBB 24) é representativo dessa guerra ideológica travada, do duro assédio dos aparelhos ideológicos que captam a consciência inclusive de pessoas que por sua formação costumam estar mais protegidas de seus tentáculos. Ideologia é coisa séria. Ou a gente toma cuidado ou o sistema traga a gente pra matrix... É assim que funciona.