segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Os direitos humanos e a esquerda / Concepções de violência e tortura nos marxistas



O presente texto visa discutir a emergência dos movimentos por direitos humanos no Brasil no bojo da repressão às guerrilhas contra o regime militar, nas décadas de 60 e 70. No período em questão, as forças repressivas do estado brasileiro lançaram mão de um sem número de métodos de tortura em interrogatórios, com o intuito de desbaratar guerrilhas urbanas e rurais que surgiam em oposição ao golpe civil-militar de 1964.

Ato contínuo, a esquerda brasileira se viu instada a recorrer aos direitos humanos para defender os prisioneiros do regime. Até então pouco se falava em direitos humanos no Brasil, tido como pauta liberal-burguesa, que as esquerdas rejeitavam por conta de uma concepção materialista dialética que naturalmente se alinhava mais à reivindicações classistas.

Nesse sentido, o encontro da esquerda com os direitos humanos pode ser encarado, por assim dizer, como o encontro de uma análise marxista mais geral com demandas do âmbito da micro-política.

A amarga experiência da tortura e a luta armada

Foi a ocasião severa da conjuntura política que fez com que militantes oriundos de classes mais abastadas fossem detidos pela repressão e submetidos a tratamentos normalmente dirigidos aos marginalizados da sociedade.
Não que o período anterior ao golpe de 1964 não tenha histórico de repressão a movimentos políticos e sociais tidos como subversivos pela ordem vigente. Em outros períodos, comunistas ou democratas já haviam sido conduzidos aos cárceres ou postos na clandestinidade.

Mas foi a partir da experiência de cárcere e tortura empregados após o golpe de 1964, com a vigência dos atos institucionais, sobretudo o quinto, de 1968, que recrudesceram as perseguições e hostilidades a quem ousava se insubordinar contra o governo.
Inúmeros grupos guerrilheiros surgiram na tentativa de impor resistência ao avanço dos militares, que por sua vez contavam com o financiamento e o treinamento de forças civis ou estrangeiras. O referido corte histórico configurou período conturbado na política nacional, com cassação de parlamentares, perseguição a membros das forças armadas que se opunham ao regime, etc.



Destaca-se a OBAN, Operação Bandeirantes, organização civil de empresários favoráveis ao regime, e toda uma gama de órgãos criados para o estabelecimento da ”ordem” política no país.
Em oposição, diversos partidos ou frações que aderiram à luta armada, se lançaram em operações de expropriação revolucionária de bancos e similares com a finalidade de financiar a compra de armas e a manutenção das organizações na clandestinidade.
Essa foi a conjuntura política que conduziu uma parcela da esquerda aos ”porões da ditadura”, locais onde militantes de classe média conheceriam a tortura, método até então reservado a presos comuns.
Por isso a emergência da pauta de direitos humanos pela esquerda. A esquerda, até então ambientada às análises de conjuntura mais abrangentes, aos balanços mais objetivos e à caracterização das forças sociais e políticas decisivas para os acontecimentos políticos, aprendeu, com o contato duro das prisões, a lidar com uma pauta até então colocada em segundo plano em função de uma concepção leninista de história, que via outras questões como secundárias ou simplesmente liberais. Fazer a experiência da violência policial destinada aos marginais foi, em síntese, o que sensibilizou a esquerda para o discurso dos direitos humanos, trabalho social antes executado por movimentos religiosos, como pastoral carcerária e afins, movimentos sobretudo capitaneados por adeptos da teologia da libertação.

A legitimidade da resistência

Entendemos que a violência empregada pela repressão legitima a violência que surgiu para se opor ao golpe e ao estado de exceção. Com o parlamento cassado, os sindicatos sitiados, a dura repressão à organização das massas trabalhadoras e às entidades estudantis, muitos grupos políticos optaram por se lançar na luta armada. Mas tais grupos mormente respeitavam convenções internacionais de guerra e tinham uma base ética que faltava aos militares brasileiros. Crimes como tortura e ocultação de cadáveres nunca foram cometidos por grupos revolucionários.
Há muitas coisas que podemos constatar. Muito se fala sobre execução de traidores, condenados por cortes revolucionárias, por exemplo; contradições inerentes à situações extremas, circunstâncias típicas de embates dessa magnitude e que invariavelmente despertam desmentidos, contestações, etc. Mas, verdade seja dita, a esquerda guerrilheira nunca se dobrou a métodos desonestos ou antiéticos como a tortura.
Muito embora a esquerda não fosse movida por moralismos, sempre se opôs à execução de prisioneiros ou civis e jamais admitiu tortura.
Luciano Oliveira, em seu livro Imagens da democracia, coteja autores como Lênin e Trotsky para trazer à tona a relação da esquerda com a ética e diversas resoluções históricas tomadas nessa esfera por governos operários. Com isso, Oliveira deseja retomar a história da militância marxista em sua relação com a violência e os interditos éticos. Interessantíssimo é rever que a revolução bolchevique aboliu a pena de morte, mas também não hesitou em apelar ao terror vermelho diante do terror branco, quando das investidas de tropas contra-revolucionárias contra o poder soviético.
Diante do rigor da violência exercida pela reação, autores e líderes marxistas sempre defenderam a igual oposição violenta ao estado e a suas instituições, sem titubear frente a valores morais.
Tal disposição à resistência violenta, por sua vez, no entendimento de históricos líderes revolucionários, nunca legitimou atos como a tortura, por ser esta entendida como um ato degenerado da moral burguesa, um desvario, algo abominável e injustificável.
Entre os clássicos do marxismo do início do século passado, a geração que logrou fazer a revolução russa, muito se escreveu sobre experiências de cárcere e exílio, mas pouco ou quase nada se fala de tortura.
Os bolcheviques do início do século não passaram pelo horror da tortura. Essa não era uma questão colocada naquele momento histórico. Ao contrário das esquerdas latino-americanas, que tiveram que passar por um regime de exceção que abriu mão de quaisquer escrúpulos éticos, a geração de marxistas do século 19 e início do 20 não chegou a se deparar com o método da tortura, em desuso na Europa desde fins do século 17.
Autores como Marx, Engels, Lênin e Trotsky chegaram a tocar em outras questões espinhosas, como execução de reféns e fuzilamentos, por exemplo, argumentando que toda violência empregada contra adversários de classe era legítima na medida em que esta ocorria para se contrapor à violência desferida contra os revolucionários e a classe trabalhadora.

O ex-guerrilheiro argentino Sorel, em texto clássico sobre a violência, publicado em 1908, condena os métodos da inquisição medieval e do terror jacobino na revolução francesa, e classifica a violência proletária como limpa. A luta revolucionária, segundo o autor, ocorreria com vistas a subjugar o inimigo irreconciliável, excluindo quaisquer abominações ou desonras.
Em livro sobre a história das organizações da esquerda revolucionária brasileira, publicado no ano de 1987, Jacob Gorender diz que a violência praticada pelos revolucionários acontecia de acordo com princípios éticos que visavam preservar-se da moral corrupta das classes dominantes.
Gorender admite que os grupos armados mataram, praticaram atos de terrorismo, seqüestraram e inclusive chegaram a executar traidores condenados por uma justiça revolucionária, mas argumenta que episódios de tortura jamais foram verificados nas guerrilhas .
A violência revolucionária não era uma violência gratuita, com finalidade de infligir dores ou castigos, muito menos com ranço revanchista. A violência era praticada com objetivo político. Era uma violência limpa, por assim dizer, que se precavia de atos moralmente degenerados e que, principalmente, encontrava sua razão de ser na luta por democracia, fazendo frente a todo tipo de barbárie que ocorria em instalações dos órgãos de repressão política.

Concepção marxista de direitos humanos

Como vimos, desde as décadas de 60 e 70, a pauta de direitos humanos foi assumida pela esquerda brasileira não mais como questão secundária sem movimento próprio, por ser enquadrada como contradição secundária específica, mas foi admitida e incorporada no conjunto de uma plataforma de direitos básicos do cidadão. O direito à integridade física será defendido como direito à vida, no mesmo patamar político dos direitos à saúde, à moradia, à educação, etc. O que configura um grande avanço no campo do direito social, haja visto que todo tipo de crime contra a humanidade era corriqueiramente praticado pelas forças de segurança contra pobres, moradores de periferia e pessoas marginalizadas. A partir de então, lutou-se e defendeu-se muito mais os direitos humanos no Brasil, sistematizando-se um movimento em sua defesa que até então não gozava de organicidade considerável.
Outra característica da inclusão dos direitos humanos na pauta da esquerda foi uma crítica ao que se julgava liberal-burguês ou individualista no que concernia à natureza da pauta, aproximando-a do combate por direitos sócio-econômicos.
Bem sabemos que a pauta dos direitos humanos pode ser facilmente instrumentalizada pela direita e pelas classes burguesas, que, em algumas ocasiões, lançam mão do termo direitos humanos associado ao direito à propriedade, por exemplo, ou reclamando direito à expressão ou liberdade de imprensa como forma de se blindar de medidas governamentais por gestores progressistas.
Mas, em suma, grande parte da militância por direitos humanos, no Brasil e na América Latina, surgiu vinculada à teologia da libertação e com um discurso de fortes críticas às premissas individualistas do liberalismo clássico.
Diversos autores surgirão com uma ácida crítica aos movimentos de individualismo burguês que se circunscrevem na defesa da ordem capitalista. Autores como estes criticarão os fundamentos do direito moderno, tido muitas vezes como avalizador formal de fenômenos típicos da sociedade capitalista, como circulação de mercadorias e a própria compra da força de trabalho do proletário pelo burguês.
Afinal, a crítica de Marx aos direitos humanos fazia sentido. O discurso jurídico pós- revolução francesa atomizou os homens para estes se relacionarem entre si com o intemédio do estado, como pontua o argentino Oscar Correas; permitindo que a vida, a liberdade ou a propriedade apareçam como direitos naturais. A declaração dos direitos do homem de 1789 é afiançadora do modo de produção capitalista; é a zeladora jurídica do status quo burguês.
Verdade que a promulgação de 1789 garante princípios de direitos universalmente caros à vida. Na verdade, um avanço progressivo que o marxismo irá caracterizar como mais uma das transições do homem ao sistema igualitário a ser visado.
Os novos movimentos sociais, movimentos de minorias e o próprio movimento por direitos humanos foram ganhando autonomia e vulto com o passar dos anos e dos processos de luta por visibilidade dentro da pauta geral dos movimentos. Muitos foram cooptados por matriz ideológica distinta da inclinação inicial à esquerda, e hoje se encontram em partidos ou filosofias alinhadas com o liberalismo ou mesmo com o conservadorismo.
Em geral, os movimentos foram aos poucos se tornando independentes de partidos ou movimentos supra-partidários, com pauta específica elaborada que muitas vezes se situa mais no domínio do sócio-cultural do que no econômico ou da luta de classes. Os próprios partidos acatam em seu seio setoriais de temas específicos, como movimentos pelo direitos das mulheres, dos lgbtt´s, etc, mas a tendência geral foi a independência política de tais movimentos.


Bibliografia
Imagens da Democracia, Oliveira, Luciano. Pindorama, 1995, Recife-PE

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